Quatro Estações em Havana – Passado Perfeito

Nota: ★★★☆

Passado Perfeito, o filme, ainda não tem 4 dos seus 90 minutos quando o tenente da polícia Mario Conde (interpretado pelo ator que é a cara do cinema cubano, Jorge Perugorria), reencontra pela primeira vez em muitos, muitos anos, o grande amor da sua vida.

É uma sequência forte, impressionante. Toda a abertura do filme – co-produção Espanha-Cuba de 2016, dirigida pelo espanhol Félix Viscarret – é forte, impressionante.

A primeira tomada é um close-up de dois pés andando trôpegos no asfalto. Mario Conde está bêbado, bastante bêbado. Chega em casa, abre a porta com alguma dificuldade, caminha troncho até o quarto, começa a abrir o cinto – e é só. Cai literalmente feito um pacote bêbado na cama.

Na sequência seguinte, já é dia, e o bicho dorme ainda bêbado do rum da véspera – e o telefone toca sem parar. – “Chefe, é meu dia de folga!”, ele tenta argumentar, mas não há argumentos contra uma ordem do chefe, e logo um Mario Conde com uma cara tão amarfanhada quanto sua roupa está chegando perto da bela Maruchi (Pilar Mayo), a secretária do major Rangel (Enrique Molina), o chefe da Polícia de Havana.

Maruchi liga para o major para avisar que Conde chegou, e aponta para o relógio de pulso, tipo “Você está atrasado!” Conde faz um muxoxo, tipo “Pois é, paciência” – e esses pequenos detalhes, os dois gestos silenciosos, são aquela demonstração cabal de que estamos diante de um bom filme, bem dirigido, com bons atores.

“Temos que encontrar o figurão que desapareceu”

O major Rangel não manda seu subordinado entrar em sua sala – ao contrário, ele sai da sala e se põe de pé diante de Conde. E o que vê é desagradável. Dá uma bronca nele, arruma a gola da camisa do tenente, que estava amarfanhada depois da noite na cama. E explica o caso para Conde, de quem gosta muito, por quem tem um amor paternal, além de respeito e admiração por ele ser seu melhor detetive:

– “Recebi um telefonema do presidente da Corporação Nacional da Indústria. E lá dentro está o gerente. Mais a esposa de um figurão desaparecido. Este país está louco. Agora as pessoas desaparecem e vira um pandemônio. (Faz uma pausa, olha nos olhos de Conde.) Temos que encontrar o figurão que desapareceu.”

E aí o major Rangel abre a porta do seu próprio gabinete, enquanto vai dizendo: – “Este é o inspetor de que lhes falei. O tenente Conde.”

A câmara focaliza o tal gerente da Corporação Nacional da Indústria e a mulher do alto funcionário que desapareceu. É uma mulher linda. Arregala os olhos quando ouve o nome “tenente Conde”.

O major Rangel continua nas apresentações: – “O gerente Fernández. E a senhora…”

Close-up no rosto belo de Jorge Perugoria-Mario Conde. Ele diz: – “Como vai, Tamara? O que aconteceu com ele?”

Choque total para o gerente Fernández, para o major Rangel, para o espectador: Mario Conde e Tamara se conhecem. Ah, e como se conhecem!

A bela Tamara tinha se casado com um puxa-saco do governo

Tinham estudado juntos no pré-vestibular, ali pelo início dos anos 1970 – o hoje, o tempo em que a ação deste Passado Perfeito acontece, é 1989. O pré-vestibular havia sido a época mais marcante da vida de Mario Conde: foi quando ele se apaixonou louca, perdidamente, por Tamara – que, no entanto, acabaria namorando e se casando com Rafael Morin, um sujeito que parecia fadado a ser bem sucedido na vida, e já era uma liderança do movimento estudantil, pró-governo, é claro. Só se é bem sucedido na vida em uma ditadura sendo pró-governo desde sempre.

Todos os grandes amigos que Mario Conde tinha na vida, ali na idade madura, inclusive Carlos, o Magro, o maior de todos (Luis Alberto García), ele os conhecera no pré-universitário. E tinha sido lá também que ele havia visto ir para o brejo seu sonho de virar um escritor: o conto que publicou na revista literária da escola foi considerado anti-revolucionário, reacionário, com perigosas tendências pró-burguesia.

E então, sem saber bem por que, havia virado policial. E Tamara, o grande amor da vida, havia se casado com Rafael Morin, e Morin, puxa-saco do governo, tinha tido uma bela carreira na Corporação Nacional da Indústria, e vivia muito bem – até que, logo depois da festa de réveillon de 1989, desaparecera da face da terra.

Como era um figurão, gente do alto do governo exigia que a polícia fizesse todo o possível para localizá-lo, para descobrir o que havia acontecido.

E então o chefe da polícia havia chamado seu melhor investigador – para descobrir, estupefato, quando o filme chega perto dos 4 minutos, que Mario Conde conhecia o desaparecido – e a mulher do desaparecido, linda de morrer.

Tamara é interpretada por Laura Ramos, cubana de La Habana assim como Mario Conde, nascida em 1978, uns 5 ou 6 anos depois que ele.

Ao se aprofundar na investigação do desaparecimento do marido de Tamara, Conde e seu parceiro, o sargento Manuel Palacios (Carlos Enrique Almirante), vão achar diversas evidências de que o figurão da Corporação Nacional da Indústria não era um funcionário de ficha absolutamente perfeita, de maneira alguma – e de que, naquele braço de Ministério, há, exatamente como nos países capitalistas decadentes e sujos, muita corrupção.

Quatro filmes independentes – não uma série de quatro episódios

Passado Perfeito é um dos filmes da tetralogia Quatro Estações de Havana – quatro filmes de cerca de 90 minutos cada, todos produzidos pelas mesmas empresas espanholas em 2016, dirigidos por Félix Viscarret, baseados nos quatro livros escritos pelo cubano Leonardo Padura entre 1991 e 1998, cada um deles passado em uma das estações de 1989. Todos eles com roteiro assinado pelo próprio Padura, sua mulher Lucia Lopez Coll e o diretor Viscarret.

Os quatro filmes foram colocados à disposição dos assinantes da Netflix, e, muito provavelmente por isso, são tratados pelo IMDb como uma minissérie de quatro episódios. Não vejo sentido em considerá-los como uma série de TV: são quatro belos filmes, baseados em quatro belos livros. Cada um com um caso policial que o tenente Mario Conde investiga.

Uma tetralogia – não uma série de quatro episódios.

É interessante notar que Passado Perfeito foi o primeiro dos quatro livros de Leonardo Padura com o tenente Mario Conde – mas é tido como o segundo filme da série, após Quatro Estações em Havana – Ventos de Havana.

Quando escrevi sobre Ventos de Havana, fiz uma tabelinha, que repito aqui; na verdade, repito aqui várias informações que estão no texto sobre aquele que é o primeiro filme da série, embora seja baseado no segundo livro de Padura.

 

Título e estação do ano Escrito em Copyright em Cuba
1 Passado Perfeito/Pasado Perfecto (Inverno) 7/1990 a 1/1991 2000
2 Ventos de Quaresmo/Vientos de Cuaresma (Primavera) 1992 2001
3 Máscaras/Máscaras (Verão) 1994 a 1995 1997
4 Paisagem de Outono/Paisaje de Otoño (Outono) 11/1996 a 3/1998 1998

 

É muito impressionante como todas as obras de Leonardo Padura têm uma visão absolutamente crítica do regime castrista – e, apesar disso, ele continua vivendo na sua Havana natal, sem ser preso, torturado, paredonado. E é igualmente impressionante que o governo permita que suas histórias sejam filmadas lá mesmo, em Cuba.

Não que os livros com o tenente Mario Conde sejam anti-Revolução, anti-regime castrista de forma sistemática, ferrenha, uma coisa assim de firme oposição ideológica. Não é isso. Mas, aqui e ali, ao falar da vida das pessoas comuns, do dia-a-dia, Padura vai expondo com clareza, com firmeza, as mazelas do regime.

Há, volta e meia, referências a essa coisa de que a arte, todo tipo de arte, precisa necessariamente ser alinhada com o governo, com o Partido, com a construção del Hombre Nuevo. Há, aqui e ali, referências ao fato de que o socialismo cubano tem sua classe social privilegiada, a nomenclatura, os homens ligados ao Partido, ao governo. Aquela mancha terrível de que, no socialismo da vida real, uns poucos têm do bom e do melhor, assim como no nojento capitalismo.

Há, de vez em quando, referências à coisa de que quem não reza direitinho pela cartilha do Partido é perseguido. Há, em alguns momentos, referências explícitas à fuga em massa de cubanos rumo aos Estados Unidos.

O próprio Mario Conde está bem longe de ser um revolucionário convicto, um batalhador pela implantação do Paraíso Socialista, um perfeito exemplo del Hombre Nuevo. Nascido em 1953 (dois anos antes que seu criador, que é de 1955), estava com apenas 5, 6 anos quando a revolução liderada por Fidel Castro derrubou a sanguinária ditadura de Fulgêncio Batista; criou-se portanto já sob o novo regime, e, na juventude, tinha grande simpatia por ele.

Mas foi-se distanciando um tanto dos ideais revolucionários. Exatamente como Leonardo Padura, Mario Conde gostava de ler autores gringos, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, e era apaixonado por rock. Prezava demais a liberdade pensamento e de expressão.

É. Não era exatamente el Hombre Nuevo com que sonhava o Che e que cantavam as canções da Nueva Trova.

Em 1989, Padura visitou a casa em que Trótski morou

A própria escolha de 1989 para ser o ano em que se situa a ação dos quatro livros, cada um em uma das estações do ano, é emblemática.

Foi o ano em que caiu o Muro de Berlim – e, a partir daí, o grande Império Soviético começou a ruir como um castelo de cartas. E o final da subvenção do satélite caribenho pelo Império Soviético, o fim da chegada do ouro de Moscou para o regime castristra, provocou uma grande crise de empobrecimento na ilha a partir de 1990.

Foi um ano importante também para o próprio Leonardo Padura – e para tudo o que ele escreveria a partir daí. Naquele 1989 de tanta importância história, aos 34 anos de idade, Padura começou a se interessar pela figura de Leon Trótski, fez sua primeira viagem ao México, e lá visitou a casa em que Trótski morou até ser assassinado por Ramón Mercader a mando de Stálin, em 1940.

Em 1989, na Cuba que seguia as regras do Partido Comunista da URSS, na Cuba castrista que a rigor continuava stalinista, apesar de tudo o que veio depois de Kruschev, não se falava de Trótski. Trótski era tido como o inimigo do comunismo, o traidor. Padura levaria décadas estudando as vidas de Trótski e de Ramón Mercader, que a União Soviética acabou mandando para a Cuba castrista – para lançar, em 2009, a obra-prima magistral que é O Homem que Amava os Cachorros.

Por tudo isso, por ter escrito tantos livros com visão tão absolutamente crítica do regime castrista, é muito difícil entender esse fenômeno, essa coisa de o governo cubano tolerá-lo, não fazer nada contra ele – enquanto contra uma simples blogueira, Yoani Sánchez, o regime está sempre em pé de guerra, sempre dificultando que ela saia do país.

Fica parecendo que a ditadura castrista poupa Padura para poder dizer que não é uma ditadura, que admite, sim, obras literárias e filmes profundamente críticos ao regime.

Belíssima fotografia, ótimas interpretações de todo o elenco

Diante de coisas assim, me lembro sempre do que dizia Milos Forman, o genial diretor checo que, depois que os tanques soviéticos esmagaram a Primavera de Praga, exilou-se nos Estados Unidos. Na época em que lançou O Povo Contra Larry Flynt, de 1996, ele disse o seguinte:

“Pertenci a uma geração de diretores checos que foram favorecidos por um instante de abertura, que fizeram filmes que foram aprovados no Ocidente, e os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente. E por isso pudemos continuar fazendo filmes, até que os tanques russos invadiram a Checoslováquia, em 1968, e aí eu fugi para cá.”

Será que é assim? O regime detesta Padura, mas fica embevecido com o fato de que as obras de Padura são elogiadas mundo afora, e então deixa Padura em paz?

Sei lá. Pode ser.

O fato é que os livros das quatro estações em Havana são excelentes – e os filmes que foram feitos com base neles estão à altura dos originais.

Este Passado Perfeito, exatamente como Ventos de Havana, baseado em Ventos de Quaresma, é bastante fiel ao espírito do livro. É favorecido pela belíssima fotografia de Pedro J. Márquez, que ao mesmo tempo realça a beleza estrondosa e a decadência de Havana, e pelas ótimas interpretações de todo o elenco.

Há uma pequena, digamos, licença poética no filme, que o difere do livro. No livro, diferentemente de no filme, Mario Conde, quando se vê diante daquela Tamara toda, daquela mulher que ele nunca havia visto nua, mas cujo corpo já tinha imaginado tantas vezes enquanto se masturbava, ele…

Ah, mas isso seria spoiler. Melhor ver o filme. E ler o livro. Não importa a ordem.

Anotação em janeiro de 2019 

Quatro Estações em Havana – Passado Perfeito/Cuatro Estaciones en La Habana – Pasado Perfecto

De Félix Viscarret, Espanha-Cuba, 2016

Com Jorge Perugorría (tenente Mario Conde)

e Carlos Enrique Almirante (sargento Manuel Palacios), Enrique Molina (major Antonio Rangel), Laura Ramos (Tamara), Luis Alberto García (Carlos, o Magro), Mario Guerra (Candito, o Vermelho), Jorge Martínez (Andrés), Alexis Díaz (Conejo), Vladimir Cruz (Fabricio), Aurora Basnuevo (Josefina, a mãe de Carlos), Hector Pérez (Miki Cara de Jeba), Pilar Mayo (Maruchi),

Roteiro Lucia Lopez Coll, Leonardo Padura & Félix Viscarret

Baseado no romance de Leonardo Padura

Fotografia Pedro J. Márquez

Montagem Antonio Frutos e Javi Frutos

Casting María Mercedes Hernández e Camilla-Valentine Isola)

Produção Mistery Producciones, Movistar+, Nadcon Film, Radio Televisión Española (RTVE), Tornasol Films, Wild Bunch

Cor, 90 min (1h30)

***

 

 

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