Feliz que Minha Mãe Esteja Viva / Je Suis Heureux que Ma Mère Soit Vivante

3.0 out of 5.0 stars

É um drama familiar duríssimo, este Feliz que Minha Mãe Esteja Viva, que Claude Miller dirigiu a quatro mãos com seu filho Nathan em 2009. Pai e filho dirigindo um filme sobre pais e filhos – uma história chocante, apavorante, que choca e apavora ainda mais porque se inspira em um caso real.

O roteiro – de autoria dos dois Miller, mais Alain Le Henry – partiu de um artigo de Emmanuel Carrère – jornalista, escritor, roteirista – publicado em meados dos anos 90 na revista semanal L’Évenement du Jeudi. O artigo contava em detalhes um drama familiar que havia sido divulgado pelos jornais franceses, um fait divers, como eles chamam.

A narrativa mistura, em especial em sua primeira meia hora, três épocas da vida do protagonista, Thomas.

Não aparecem aquelas legendas comuns em alguns filmes, situando as datas, mas, a partir de elementos mostrados ao longo da ação, pode-se perfeitamente estabelecer as épocas exatas. A ação se passa em 1991, quando Thomas tem 4 anos, e é interpretado pelo garotinho Gabin Lefebvre; em 1999, quando Thomas está com 12 anos (Maxime Renard); e, finalmente, em 2007, Thomas com 20 anos, interpretado – com brilho – pelo jovem Vincent Rottiers.

As lembranças que o rapaz guardou da mãe biológica têm relação com sexo

Thomas criança (à direita na foto), Thomas entrando na adolescência, Thomas jovem adulto.

O primeiro que vemos é o jovem. Ele está sentado no banco de trás de um carro, atrás do motorista – que não aparece. Observa uma região de prédios residenciais altos.

Logo em seguida vemos o Thomas de 12 anos, sentado exatamente no mesmo lugar, o banco de trás de um carro, atrás do motorista. A família está indo em férias para a praia – o pai, Yves (Yves Verhoeven), a mãe, Annie (Christine Citti), Thomas e o irmãozinho três anos mais novo, François.

Na praia, Thomas se lança ao mar com uma prancha de surfe. O pai tem dificuldade em nadar na mesma velocidade que ele. O garoto se distancia, vai até uma daquelas grandes bóias, quase jangadas, comuns em praias européias, usadas para as pessoas descansarem.

Quando Yves, o pai, chega até a bóia, está fulo da vida com o garoto. Reclama com ele, o chama de imbecil.

Thomas pergunta, de chofre, se sua mãe era bonita.

Yves fica um tanto atordoado pela pergunta. Responde que não sabe, que nunca a viu. E Thomas afirma que sim, ela era bonita – ele se lembra dela.

Revela-se assim, com menos de cinco minutos de filme, que Thomas foi adotado por Yves e Annie.

E então voltamos ainda mais atrás no tempo, para a época em que Thomas tinha 4 anos e seu irmãozinho era um bebê de quase um ano.

As primeiras seqüências dessa época mais distante são como se fossem lembranças que Thomas, aos 20 anos, tinha de quando estava com quatro anos e ainda morava com a mãe biológica, Julie (Sophie Cattani, na foto acima). Numa delas, o bebê está chorando; Thomas está deitado, mas ainda não dorme; um homem inteiramente nu pega o pequeno berço em que o bebê chora e o coloca do lado de fora do pequeno apartamento. Na seqüência seguinte, Thomas está deitado no chão do apartamento, brincando com o bebê, e a mãe está passando roupa bem perto dele. A câmara – como se fossem os olhos de Thomas – focaliza as pernas dela, o início das coxas, em seguida o decote.

A mãe recebendo namorado que anda nu pela casa. As coxas da mãe, o decote. As lembranças que Thomas guardou da infância têm relação com sexo.

A mãe abandona os dois filhos, um com quatro anos, outro beirando um ano apenas

É possível um rapaz de 20 anos ter lembranças da época em que tinha 4? Não sei. Eu não tenho lembranças de nada de quando tinha 4 anos, mas é possível que algumas pessoas tenham. Mary, ao meu lado, diz que é possível, sim.

Mas são só algumas das sequências desse passado mais remoto que parecem ser lembranças do jovem Thomas. Depois dessas que relatei, a câmara deixa de ser os olhos de Thomas, passa a ser uma câmara objetiva, que mostra a realidade que o garotinho não viu.

Julie, a jovem mãe, abandona os dois filhos, o mais velho com quatro anos, o mais jovem beirando um ano de idade.

E os dois são então adotados pelo casal Yves e Annie (na foto acima, a mãe adotiva e o garoto com 12 anos).

Só deveria ser pai ou mãe quem passasse em concurso sério, com banca examinadora exigente

O Thomas de 4 anos que o filme mostra é um garoto terno, suave, doce, que olha embevecido para a mãe e cuida do irmão mais novo.

O Thomas de 12 anos é um garoto perturbado, revoltado, que fica pensando na mãe biológica em boa parte do tempo e demonstra impaciência e até raiva dos pais adotivos.

Os pais, a essa altura, estão cansados, esgotados com a perturbação demonstrada pelo filho adotivo mais velho. Como tantos pais, adotivos ou não, simplesmente não sabem o que fazer com aquele pré-adolescente perdido no mundo.

Os filhos não vêm com manual de instruções, como diz minha amiga Teresa Cristina.

Os filhos não vêm com manual de instruções, e há gente que não deveria ter filhos. Quem disser que toda mulher tem condições de ser mãe é hipócrita, mentiroso – ou simplesmente não sabe das coisas.

Élisabeth Badinter, a escritora e filósofa francesa, autora de Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno, que destrói exatamente o mito de que todas as mulheres estão preparadas para serem mães, com toda certeza terá aplaudido este filme.

Muito antes de ter ouvido falar em Élisabeth Batinder eu já pensava da mesma maneira. Uma vez, anos atrás – em 1995, para ser exato – anotei uma idéia para um texto que gostaria de escrever um dia, quase uma tese. Volto e meia repito isso, vou repetir de novo:

Os dogmas religiosos e a biologia que me perdoem, mas a lógica humana indica que Deus (ou a natureza, para quem não acredita em Deus) errou profundamente. Nenhum homem ou mulher deveria ter a capacidade de ser pai ou mãe – até prova em contrário. Ser pai ou mãe não deveria ser uma obrigação decorrente da biologia, deveria ser uma opção. Mais ainda: para permitir que alguém decidisse ser pai ou mãe deveria haver vestibular. Só poderia ter filhos quem passasse em concurso. Concurso sério, com prova de títulos e de conhecimento, e com banca examinadora exigente.

Ter filhos, no caso de algumas pessoas, é uma crueldade, um crime

O que este filme belo, sensível e trágico demonstra é exatamente o que Élisabeth Batinder defende, isso em que acredito profundamente: há pessoas, homens e mulheres, que não deveriam jamais ter filhos. Ter filhos, no caso de algumas pessoas, é uma crueldade, um crime.

É o caso de Julie, a mãe de Thomas.

Como é a frase? Errar é humano, perseverar no erro é diabólico.

Julie teve Thomas, depois Patrick (que os pais adotivos renomearam François) e depois ainda Frédéric.

Um realizador preocupado com os dramas familiares, as relações entre pais e filhos

Claude Miller teve a sorte de trabalhar como assistente de direção de François Truffaut, Jacques Demy e Jean-Luc Godard. Teve ainda a sorte de realizar um filme com base em roteiro que Truffaut deixou quase pronto – Ladra e Sedutora/La Petite Voleuse, de 1988, o filme que lançou Charlotte Gainsbourg para o estrelato. A jovem atriz havia estreado em outro filme de Miller, L’éffrontée, de 1985.

Foi aclamado já por seu primeiro longa-metragem, La Meilleure Façon de Marcher, de 1976, “obra de um grande refinamento psicológico”, segundo definição de Jean Tulard.

Em pelo menos dois outros de seus filmes feitos nos últimos dez anos, abordou dramas familiares, enfocando as dúvidas e temores dos jovens, e as relações pais e filhos. Tanto A Pequena Lili, de 2003, quanto Um Segredo de Família, de 2007, os dois já comentados neste site, são belos, sensíveis filmes.

Este Feliz que Minha Mãe Esteja Viva foi sua antepenúltima obra. Deixou pronto um filme de 2011, Voyez comme ils dansent, e um filme que estava ainda em fase de pós-produção, Thérèse Desqueyroux, em abril de 2012, quando morreu em Paris, aos 70 anos.

Miller tem talento para dirigir atores e traçar o retrato de seus personagens

Era um diretor de atores de extremo talento. Do elenco deste triste drama inspirado por uma história real, só me lembrava de Yves Verhoeven, que faz o pai adotivo do protagonista, e de Sabrina Ouazani (na foto abaixo), uma atriz de extrema beleza, e que só aparece em uma única seqüência. Todos os demais atores eram desconhecidos para mim – e todos estão excelentes. Esse garoto Vincent Rottiers, que faz o atormentado Thomas Jouvet aos 20 anos, está excepcional, repito.

Vincent Rottiers não é um estreante, de forma alguma. Sua filmografia já tem 27 títulos.

Sabrina Ouazani, jovem francesa (nasceu em 1988) de pais de origem argelina, tem mais filmes ainda no currículo: 33, vários deles com diretores de renome. Seu papel – pequeníssimo – é importante, e comprova o talento de Claude Miller para traçar o retrato psicológico de seus personagens.

Numa noite, Thomas está vagando pelas ruas, e acaba indo parar diante de um cinema. Troca algumas frases com a moça do caixa – interpretada por Sabrina Ouazani. Volta para a rua, fica parado na calçada durante uma hora. Quando a moça do caixa sai do trabalho, a última sessão terminada, ela a aborda. Conversam, andam juntos até perto da casa dela. Ela o convida para entrar, tomar uma Coca-Cola – aquela mulher de beleza faiscante, voluptuosa –, e Thomas se recusa. Não aceita o convite. Em seguida, há algo inesperado – é uma belíssima seqüência. Parece simples, à toa – mas revela muito sobre Thomas.

Um belo filme. Belo – e tristíssimo, apavorante.

Anotação em abril de 2012

Feliz que Minha Mãe Esteja Viva/Je Suis Heureux que Ma Mère Soit Vivante

De Claude e Nathan Miller, França, 2009

Com Vincent Rottiers (Thomas Jouvet aos 20 anos), Sophie Cattani (Julie Martino), Christine Citti (Annie Jouvet), Yves Verhoeven (Yves Jouvet), Maxime Renard (Thomas aos 12 anos), Olivier Guéritée (Patrick / François aos 17 anos), Ludo Harlay (Patrick / François aos 9 anos), Gabin Lefebvre (Thomas aos 4 anos), Quentin Gonzalez (Frédéric), Sabrina Ouazani (a caixa do cinema)

Roteiro Alain Le Henry, Claude Miller e Nathan Miller

Baseado em artigo de Emmanuel Carrère

Fotografia Aurélien Devaux

Produção F Comme Film, Orly Films, France 3 Cinéma, Page 114, Canal+. DVD Imovision.

Cor, 90 min

***

 

10 Comentários para “Feliz que Minha Mãe Esteja Viva / Je Suis Heureux que Ma Mère Soit Vivante”

  1. Este é mais um dos muitos filmes que chegam ao Brasil mas não a Portugal e o outro que o Sérgio menciona – “Um Segredo de Família” também morreu algures no Atlântico.
    No Google se procurar em sites de portugal é isto que encontro: o Claude Miller morreu.

  2. Noooossa! preciso urgentemente ver este filme! muito me chamou a atenção, pois tudo que penso sobre ter ou não ter filhos, sobre pais e mães está bem ali resumido no seu comentário. Vou até copiar aqui pra reforçar: “Os filhos não vêm com manual de instruções, e há gente que não deveria ter filhos” (muita gente, aliás!); “Só poderia ter filhos quem passasse em concurso. Concurso sério, com prova de títulos e de conhecimento, e com banca examinadora exigente” (cujos filhos fossem felizes por ter tais pessoas como pais); “Ter filhos, no caso de algumas pessoas, é uma crueldade, um crime” (sem comentários!!!). Vou assistir e depois comento novamente.
    Abraço

  3. O filme é mesmo triste e apavorante.
    Eu tenho uma preguiça desses filhos adotivos que ficam atrás dos pais biológicos…
    Não mostram muito bem a personalidade dos pais nem a forma como criaram o Thomas, então fiquei sem entender a obsessão dele pela mãe (?) biológica. Numa análise superficial parece que ele queria a atenção, carinho e amor que não teve lá nos primeiros anos vividos com ela, mas isso também não explica muito, já que o François era bem tranquilo nesse sentido.
    E que cena aterrorizante aquela onde o homem nu coloca o bebê que está chorando pra fora do apartamento!
    No mais, concordo com a sua teoria, como já disse aqui em outros comentários. Conheço de perto e de longe gente que jamais devia ter tido filho. Morro de pena das pobres crianças, e das psiquês atormentadas que terão no futuro.
    Realmente, no caso de algumas pessoas, ter filhos é um crime. E o mais revoltante é que com tantos métodos contraceptivos disponíveis, e com tanta informação, as mulheres continuam engravidando “sem querer” (por falta de cuidado delas e dos parceiros).

    “Quem disser que toda mulher tem condições de ser mãe é hipócrita, mentiroso – ou simplesmente não sabe das coisas.” Isso me fez lembrar o que uma prima me disse esses tempos, e me deixou três dias remoendo o assunto. Ela falou que antes achava que toda mulher deveria ter filho, simplesmente não aceitava a opinião das que não queriam ter. Minha maior indignação nem foi ela ter tido isso, mas o fato de ela ser quem é: uma pessoa esclarecida, que tem mestrado em Educação numa ótima universidade federal, e que dá aula há anos para adolescentes e jovens adultos!! Tudo bem que ela já mudou de ideia, mas olha, fiquei estarrecida por saber que ela um dia pensou assim. Claro que fiz todo um discurso e isso gerou uns três e-mails revoltados.

    Em relação ao filme, fiquei com uma dúvida: é viagem minha ou o Thomas demonstrou uma certa atração pela mãe, numa determinada altura? Atração que depois virou repulsa (o amor que ele não conseguiu na infância e nem na reaproximação tornou-se ódio).

    E que moça linda essa Sabrina Ouazani; não me lembro de ter visto outros filmes com ela.

  4. Acho que cometi um crime colocando essa vírgula depois de “filme” e antes de “fiquei”. Devia ter um “error ex” virtual pra gente apagar os erros quando escreve comentários em sites/blog etc. Eu digito muito rápido (modéstia à parte) e às vezes a vírgula escapa sem querer.

    Então, here I go again:
    Em relação ao filme fiquei com uma dúvida … =D

  5. É um filme duríssimo mesmo.
    Posso estar enganado mas achei que a mãe biológica e a adotiva não envelheceram na mesma proporção do crescimento dele.
    Ao mesmo tempo gostei do Thomas aos 20 anos, lembrava bem, ele aos 12.
    Ele tinha crises fortes e súbitas mudanças de humor, de comportamento.
    Ele deve ter sido criado com amor pelos pais adotivos sim,isso se vê nas atitudes da mãe.
    A obsessão dele pela mãe biológica é que era uma coisa insana assim como seu ódio
    O Thomas demonstrou sim,Jussara, uma atração pela mãe. Tinha ciúmes dela. Lembra daquela cena “até logo namoradinhos” dita para ele ?
    Depois ela diz que vai ao médico e que ele gosta dela.Ele fica todo enciumado e resulta no que deu.(não posso fazer spoiler).
    Depois que o filme termina não tem como não lembrar de “Eu matei minha Mãe”. Neste, não teve o que houve em ” Feliz que minha mãe esteja viva “.
    Não posso falar por causa do spoiler. Mas a ironia dos títulos com o que houve no filme é uma coisa no mínimo, curiosa.
    No final , o olhar dele para a mãe e logo depois para nós, causa um certo impacto.
    Será que acabou ??
    Um abraço !!

  6. Oi, Ivan,
    Já não me recordo da cena, mas lembro de ter tido a impressão de que ele se sentia atraído pela mãe. Que bom que você também percebeu isso. Os sentimentos que ele nutria por ela não eram normais.

  7. Concordo com tudo. Adorei o texto e os comments. É isso aí, Sérgio. É como dizem no filme Comer Rezar Amar com a Julia Roberts: Ter filhos é como fazer uma tatuagem na cara. Vc tem que ter 100% de certeza, é pra sempre, e não dá pra se arrepender depois.
    Eu vou esperar meu tempo para ter filho(s), tenho 29 anos. Já pensei até em adotar, quem sabe, se eu passar dos 40 e estiver sem filho(s) ainda. Mas … sobre adoção… difícil também, hein?

    Abraços a todos!

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