Os 27 Beijos Perdidos / 27 Missing Kisses


Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: O título é doce, até poético – Os 27 Beijos Perdidos. Já o filme é muito doidão. Não na estrutura narrativa, ou nos movimentos de câmara – estes são bem tradicionais, normais, sem invenções. O que há de muito doido é a história, a trama. É o mais alucinado realismo fantástico, passado, por mais incrível que pareça, numa das repúblicas que até o início dos anos 1990 formavam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a Geórgia.

Nas casas, nos edifícios mostrados em diversas seqüências, há fotos de Lênin e Stálin (este último, é bom lembrar, é, assim como o filme, um legítimo produto da Geórgia). Mas há também um navio que passeia pelas ruas da pequena cidade e pelos campos ao seu redor, um marinheiro que perdeu o mar, um oficial que manda a artilharia disparar seus canhões em direção ao local em que sua mulher o trai com outro homem, um sujeito que amarra rolamentos no pauzão de 27 centímetros e depois não consegue tirá-los de lá e a cidade inteira tem que acudi-lo; tem gente simples, do povo, que de repente fala frases em inglês, ou em francês, uma garotinha de 14 anos que fica pelada diante de qualquer um que lhe aparece pela frente…

Nem García Marquez criaria tantas situações surreais. Fellini e Buñuel seguramente adorariam este filme da diretora Nana Djordjadze, uma georgiana da capital Tbilisi, nascida em 1948, vencedora do Camera d’Or no Festival de Cannes de 1986 por um filme com o título de (na  tradução literal) Robinsonada ou Meu Avô Inglês.

         Nada no filme diz onde se passa ação

Feito em 2000, nove anos depois, portanto, da independência da Geórgia pós fim da URSS, numa co-produção com Alemanha, Inglaterra e França, o filme não nos informa onde e quando a ação se passa. Só no finzinho dos créditos finais se diz que houve equipes que trabalharam na Geórgia, na Grécia, na Alemanha e nos Estados Unidos. As fotos dos líderes comunistas, e a língua – indecifrável –, são as únicas pistas mostradas ao longo de toda a ação

O filme começa poético como o título – para, logo em seguida, demonstrar que sua realidade não é esta comum em que vivemos, é uma coisa fantástica, diferente, surreal. Sobre imagens de eclipses, uma voz de adulto diz o seguinte belo texto:

– “Naquele ano houve dois eclipses – um do sol e outro da lua. Sibylla tinha 14 anos. Alexander tinha 41. E eu tinha 14, como Sibylla. Lembro-me de quantas vezes beijei Sibylla naquele verão: 73. Ela disse que eu tinha direito a cem beijos, mas não consegui. Foram interrompidos pelo estampido de um rifle de caça.”

E em seguida vemos um grande vale, por onde passa um ônibus bem velho e vagabundo, uma daquelas jardineiras antigas, típicas de lugares bem pobres – uma menininha corre para apanhá-lo. É Sibylla, claro. Dentro do ônibus, um homem de uns 35 anos, alegre, folgazão, toca ao acordeon “La Paloma”. “La Paloma”! É esquisito, mas não chega a ser surreal, vai… Muito antes que a palavra globalização fosse conhecida, a música popular já era globalizada. Vamos em frente.

O ônibus passa num túnel escavado numa rocha, numa região montanhosa – devem as montanhas do famosérrimo Cáucaso. Uma bomba explode bem pertinho do ônibus. O folgazão do acordeon – depois saberemos que se chama Piotr (Levani) – dá uma grande risada:

– “Este artilheiro é um babaca! É perigoso dirigir dentro de seu raio de alcance.”

Alguns passageiros se viram rapidamente para trás, para olhar a fumaça levantada pela bomba. Sibylla dá uma olhadinha bem rápida, e em seguida se volta para a frente. Uma bomba explode pertíssimo do ônibus, e todo mundo reage como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo!

         “De onde virão os filhos, se você só trepa com as armas?”

O ônibus passa perto de uma ruiva muito branca, num vestido vermelho, e o sujeito alegrão mexe com ela, ela responde sorridente, manda um beijo; alguém adverte: “Fique longe da Verônica; você sabe que o tenente dela é doido”.

Em seguida o ônibus passa perto de onde está o tenente (David Gogibedashvili), dirigindo um grupo de soldados da artilharia, com seus canhões. Verônica (Amalia Mordvinova) vem chegando até ele: “Levani, querido, vamos para a cama.” O tenente Levani lembra a ele que está no meio do trabalho, e ela: “Quando fica bêbado, reclama que não temos filhos. De onde eles virão, se você só trepa com as armas?” O tenente nem dá bola, continua examinando algo ao longe com seu binóculo e berra para os subordinados: “Fogo!” Nova bala do canhão, que vai parar de novo bem perto de onde está o ônibus, que quase cai num barranco. Desce todo mundo para empurrar, o ônibus retoma seu curso, só que perdeu o freio, provavelmente – diz o motorista – por causa do tiro; assim, como não consegue parar, se põe a rodar numa pracinha central da cidade, e o motorista manda os passageiros saírem pulando.

Sibylla está sendo esperado pela tia, com quem vai passar as férias de verão. Dão carona para as duas, da pracinha até a casa da tia, o astrônomo da cidade, Alexander (Eugenij Sidichin), e seu filho Mika (Shalva Iashvili). Mika – entendemos então – é o narrador, e o Alexander que ele citou é seu pai (na foto, os quatro personagens citados neste parágrafo).

Naquele exato momento (estamos com uns dez minutos de filme), Mika se apaixona por Sibylla, e Sibylla se apaixona por Alexander.

         Um grande talento na escolha dos atores

Uma das várias qualidades do filme é o casting, a escolha dos atores. A história gira em torno de diversos personagens, uns 20, todos habitantes da cidadezinha do interior do Geórgia (embora o filme não nos conte que estamos na Geórgia) onde Sibylla passa suas férias de verão. Os principais personagens são os que citei aí acima, mas há muitos outros, e todos os atores foram especialmente bem escolhidos, têm o físico perfeito para cada um. E trabalham bem, todos eles – como é possível que um bando de atores da Geórgia trabalhe bem e o cinema brasileiro seja essa lástima que a gente vê?

A garotinha que faz Sibylla, Nino Kuchanidze, é uma maravilha, um talento. É muito branquinha, muito magrelinha, com um jeito espevitado, maroto, esperto, muito mais de criança do que de adolescente – mas ao mesmo tempo sedutora, uma Lolita nabokoviana soltando faíscas de sexualidade. Não é bela – é bonitinha, o rosto branquíssimo e expressivo realçado pelo cabelo absolutamente encaracolado.

A trama vai seguindo Sibylla, mas também os diversos outros habitantes da cidadezinha, gente gregária, que vive em grupo, uns visitando os outros sem parar, no meio daquelas situações surreais, fantásticas, que descrevi mais acima. O principal interesse de todas aquelas pessoas – com a única exceção do tenente marido de Verônica – é o sexo. A se julgar pelo que mostra a diretora Nana Djordjadze, trepa-se muito na Geórgia. Só pensam em trepar, os georgianos. Verônica dá para vários homens, mas não é só ela que trai o marido: todas traem seus maridos, todos os maridos traem suas mulheres.

O viúvo Alexander, por exemplo, come uma mulher casada de pé, encostando-a numa mesa; para ficar mais alto e facilitar o trabalho, joga dois livrões de Karl Marx no chão e bota cada pé em cima de cada tomo do guru do comunismo. Aí Sibylla, que havia se escondido exatamente embaixo daquela mesa, pega um isqueiro e põe fogo nos livros de Marx.

O camarada Stálin, que adorava cinema, provavelmente daria boas risadas com essa seqüência irreverente, criativa, inteligente, se por acaso visse o filme na sua sala de projeção particular, muito bem mostrada por Andrei Konchalovsky em O Círculo do Poder/The Inner Circle – mas seguramente proibiria sua exibição nos cinemas e mandaria a autora para uma temporada na Sibéria.

         Depois de décadas de realismo socialista, a diretora se vinga com o surreal

A população da cidade, já excitadíssima por natureza, pára toda para assistir à projeção de… Emmanuelle! Emmanuelle, o primeiro filme da interminável série pornô, de 1974, dirigido por Just Jaeckin, com a maravilhosa primeira e única Sylvia Kristel – na época um grande escândalo, hoje um pornô tão absolutamente soft que daria para passar na sessão da tarde sem atrair a atenção de nenhum adolescente.

As várias seqüências que mostram a exibição de Emmanuelle numa fábrica da cidade são fascinantes, deliciosas.

Depois de verem os filmes, aqueles personagens ficam ainda mais no cio do que antes. E todo mundo sai assobiando o tema do filme, composto por Pierre Bachelet – é hilariante.

Aliás, outra das muitas qualidades deste filme é a trilha sonora, de autoria de Goran Bregovic, o grande compositor natural de Sarajevo. Uma maravilha – melodias lindas, uma instrumentação riquíssima.

A moral da história? O que, afinal de contas, este bom filme quis dizer?

Sei lá. Cada um que decida o que quiser. Eu me peguei com a seguinte explicação: depois de muitas décadas de realismo socialista, aquela coisa horrorosa imposta pela ditadura comunista para enaltecer a pátria, o patriotismo, o valor do operariado, blábláblá, a diretora  Nana Djordjadze resolveu se vingar, e partiu para o realismo fantástico mais absurdo que se pudesse imaginar.

Fez um filme muito doidão – mas gostoso, interessante, engraçado, bem humorado. Um filme fascinante.

Os 27 Beijos Perdidos/27 Missing Kisses

De Nana Djordjadze, Geórgia-Alemanha-Inglaterra-França, 2000

Com Nino Kuchanidze (Sybill), Shalva Iashvili (Mika), Eugenij Sidichin (Alexander), Pierre Richard (capitão), David Gogibedashvili (tenente), Levani (Pjotr), Amalia Mordvinova (Veronica),

Roteiro Irakly Kvirikadze

Fotografia Phedon Papamichael

Produção British Screen Productions, Canal+, Egoli Films

Cor, 98 min

***

Título na França: L’été de mes 27 baisers. Título na Itália: 27 Baci Perduti.

14 Comentários para “Os 27 Beijos Perdidos / 27 Missing Kisses”

  1. Primeiro tenho que dizer que faz um bom tempo que o vi e que costumo ser um tanto exagerado nas minhas críticas.

    Esse filme é mesmo “doidão”! É incongruente e desconexo. E não considero essas características como “qualidades” do filme, pelo contrário são exatemente seu grande ponto fraco. São mesmo situações inusitadas que, em minha opinião, não são surreais. Não no sentido dos símbolos de Bunuel e Dali.
    Bem, não gostei nada desse filme. Daria no m´ximo um 2 pra esse filme. Aaah… acho que ele tenta explorar/agradar um público indie com uma atmosfera que agrada a muitos “bacaninhas” rsrs.

  2. Um filme delicioso que gtavei em VHS há cerca

    de cinco anos. Uma preciosidade por sua

    origem. Mas, independente disso, imperdível:

    engraçado, nostálgico. Mal comparando, um

    Amacord/I Vitelloni da ex-URSS.

  3. Bela sacada, a sua, Mário: é como um Amarcord ou I Vitelloni da ex-URSS.
    Obrigado pelo comentário.
    Sérgio

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