O Espião / Fifty Dead Men Walking


Nota: ★½☆☆

Anotação em 2009: O Espião/Fifty Dead Men Walking é um filme competente, feito por gente com completo domínio da técnica e da arte. Essa, talvez, seja uma das poucas afirmações indiscutíveis que se possam fazer a respeito dele. É um filme perturbador – e também bastante perturbado.

O tema são os violentos, bárbaros, sangrentos conflitos na Irlanda do Norte pouquíssimos anos atrás, nas décadas de 70 e 80. Relata a história de um personagem real, Martin McGartland, que trabalhou para os ingleses, enquanto infiltrado no IRA, o Exército Repúblico Irlandês. Um agente duplo, portanto. Um traidor.

Não dá para contar uma história destas, tão recente, tão próxima, sem provocar polêmica, sem desagradar no mínimo a um dos lados envolvidos na guerra. Em suma: sem desideologizar.

O filme é uma co-produção Canadá-Grã-Bretanha – há dinheiro inglês e do Ulster, a Irlanda do Norte, do invasor e do invadido, na perspectiva de um dos lados. Não sei se o filme agradou a algum dos lados, os que acham que os ingleses são invasores do Norte da ilha da Irlanda ou os que acham que os ingleses estão lá para defender os direitos de uma das partes em conflito, no caso os protestantes.

O que o próprio filme já indica, nos créditos iniciais e também nos finais, é que não agradou ao próprio retratado nele, Martin McGartland. Houve disputas graves entre a produção e o biografado.

         O que o filme conta

A primeira seqüência se passa “em algum lugar do Canadá, em 1999”, conforme nos avisa um letreiro: em uma região gelada, próxima do mar, um homem vai entrar em um carro; do nada, surge um atirador encapuzado que descarrega nele seis tiros. Vemos o rosto do homem ferido, percebemos perfeitamente que é uma vingança, um justiçamento – e corte, voltamos 11 anos atrás, a 1988, Belfast, Irlanda do Norte. Já havia 20 anos que o país vivia dilacerado em conflitos entre a minoria protestante – que deseja permanecer ligada à Grã-Bretanha, ao governo de Londres – e a maioria católica – que deseja a saída dos ingleses. Tropas inglesas ocupam as ruas, com a mesma brutalidade de toda tropa invasora, como os americanos no Vietnã, como os soviéticos no Afeganistão, como os americanos no Iraque.

Martin McGartland (Jim Burgess, nas duas primeiras fotos do post) é um jovem de 22 anos, que se dedica – na falta de emprego, ou mesmo de subemprego melhor – a vender de porta em porta, nos bairros católicos, roupas e sapatos roubados, que obtém através de um receptador. Martin é um tipo esperto, inteligente, ágil, comunicativo; atrai a atenção de militantes do IRA, e, da mesma forma, de um oficial de inteligência das forças pró-inglesas, Fergus (Ben Kingsley, na última foto do post, abaixo).

Uma agressão bárbara a Frankie (Connor McNeill), um amigo de Martin, por uma milícia do IRA deixa o rapaz até então apolítico indignado, cheio de revolta. O oficial Fergus consegue aproximar-se dele, e o convence de que, se ele se infiltrar nas fileiras do IRA e passar informações para os ingleses, estará salvando dezenas, centenas de vidas.

E então Martin faz as duas coisas: aproxima-se do IRA, e torna-se informante dos ingleses. Sua escalada rumo a níveis cada vez mais altos dentro do IRA é rápida demais – me pareceu inverossímel que um garoto até então desligado de tudo conseguisse conquistar tão depressa a confiança de uma célula do grupo, sem despertar qualquer suspeita; é um dos defeitos do filme, na minha opinião pessoal. Mas isso não importa tanto.

         De novo: não dá para desideologizar

Importa mais é que – repito – tudo é muito recente e muito próximo. Quer se queira ou não, a Irlanda não é o Afeganistão, o Cazaquistão, o Azerbeijão – lugares que são pouco mais que uma vaga referência no mapa. A Irlanda é um lugar que fascina. Conhecemos dezenas de atores e diretores irlandeses ou descendentes de irlandeses, de John Ford a Neil Jordan, de Pierce Brosnan a Liam Neeson. Já vimos dezenas e dezenas de filmes sobre a Irlanda, sobre irlandeses, sobre a própria absurda guerra pela libertação do jugo inglês. Conhecemos a língua que se fala lá, a cerveja de lá, a música de lá – afinal, é o maior celeiro de música do mundo, uma coisa somente comparável à África como um todo. Boa parte do folk americano nasceu lá; o U2 é de lá, Sinnead O’Connor, Van Morrison, Chieftains, Clannad, Enya – a lista não terminaria nunca. Paul McCartney e John Lennon, separadamente, fizeram hinos pela saída das tropas inglesas do território irlandês, respectivamente “Give Ireland back to the Irish” e “Sunday Bloody Sunday”.

Assim, fica difícil, praticamente impossível ver o filme sem pensar na realidade que está sendo mostrada, sem ver tudo como fatos políticos – e sem tomar partido de um dos lados. E fica mais difícil ainda pensar e falar do filme só como propriamente um filme.

Em suma, de novo: sem desideologizar.

Todos os filmes que eu vi sobre os conflitos da Irlanda do Norte até este O Espião eram claramente contra a participação das forças inglesas, contra a ocupação militar. Podiam variar na virulência da denúncia do absurdo da presença das tropas nas ruas das cidades do Ulster, da brutalidade cometida contra o povo irlandês, mas todos eram contra a ocupação. E não são poucos esses filmes, e alguns são extraordinários – Em Nome do Pai/In the Name of the Father, de 1993, O Lutador/The Boxer, de 1997, Mães em Luta/Some Mother’s Son, 1996, Um Gesto a Mais/A Further Gesture, de 1997, Bloody Sunday, de 2002.

O Espião é o primeiro a mostrar o IRA como uma instituição tão brutal, tão desumana, tão torturadora quanto as tropas de ocupação do Ulster. E faz isso de maneira duríssima, crua, explícita: as cenas de tortura praticadas pelos membros do IRA são de revolver o estômago mais forte. 

Nada contra denunciar os erros dos dois lados – guerra é suja mesmo, e muito provavelmente irlandeses e ingleses cometeram os mesmos desatinos, meteram as mãos na mesma merda. Denunciar a desumanidade dos dois lados em conflito é um direito, até um dever.

O que para mim pareceu chocante, espantoso, é que o filme não se decide claramente por essa posição – mostrar que os dois lados são igualmente brutais. Ele parece ficar meio em cima do muro, entre a denúncia da brutalidade igual dos dois lados e entre uma – ainda que velada – opção pelo lado do invasor.

Alguém, em sã consciência – com a exceção dos loucos de pedra como os Ahmadinejad da vida –, poderia achar bom, poderia gostar de um filme que defendesse o nazismo? 

         Um filme perturbado – o retratado não gostou do retrato

É um filme perturbado, eu disse lá em cima, e tento explicar. A diretora canadense Kari Skogland e os produtores têm o cuidado de avisar, já nos créditos iniciais, que o filme é “inspirado” no livro de memórias Fifty Dead Men Walking, de autoria do próprio Martin McGartland e Nicholas Davies – este último é seguramente um jornalista ou escritor que ajudou o informante das forças inglesas a escrever o relato. Nos créditos finais, há explicações um pouco mais detalhadas: está dito que, embora “inspirado” no livro, o filme não é a reprodução da narrativa; adaptou passagens, situações, personagens.

É uma indicação clara de que aquilo ali está dito para evitar processos judiciais por parte de Martin McGartland.

E é exatamente isso. Texto do jornal The Times de Londres explica que McGartland exigiu, e obteve, “várias mudanças de última hora” no filme. “Várias cenas foram cortadas ou tiveram adicionada uma voz em off, e avisos foram insertados no começo e no fim para dizer que eventos chave e personalidades foram alteradas.”

A reportagem do Times mostra que, mesmo assim, mesmo com as alterações feitas de última hora pela produção para atender às exigências de McGartland e assim evitar que ele fosse à Justiça pedir a proibição da exibição do filme, há situações bem diferentes da realidade. Por exemplo: no filme, McGartland se infiltra no IRA ao mesmo tempo em que aceita trabalhar para os ingleses. “Na vida real, McGartland trabalhou para o Serviço Especial da RUC (Royal Ulster Constabulary, a polícia da Irlanda do Norte) por dois anos antes de se unir ao IRA”, diz o jornal. E cita as palavras do próprio McGartland, entrevistado pelo repórter: “Assim que o Serviço Especial entrou em contato comigo, concordei em trabalhar para eles. Eles não tiveram que me convencer, não tiveram que me perguntar duas vezes. Eu queria fazer aquilo”. E depois: “Eu só entrei para o IRA para me infiltrar lá e salvar vidas. Queria prejudicá-los. Esse era exatamente o ponto.”

         Mudaram a personalidade do protagonista para torná-lo mais palatável

Essa é exatamente a questão. Na vida real, Martin McGartland é abertamente, totalmente anti-IRA, pró-polícia do Ulster, pró-ingleses. O filme, tudo indica, procurou deixar isso um pouco menos claro, nítido – porque platéia alguma do mundo gostaria de ver um protagonista que não tem dúvida alguma em trabalhar para o invasor, para o inimigo de seu povo, de sua “comunidade”, para usar a expressão que o filme usa dezenas de vezes.

Procuraram fazer um herói mais hesitante em suas crenças políticas, para torná-lo mais palatável. Porque, na vida real, o sujeito não tem dúvida alguma. Na entrevista ao Times, ele se demonstra furioso com o fato de a diretora Kari Sgokland e os atores Jim Sturgess e Rose McGowan (ela interpreta uma alta oficial do IRA, responsável pela segurança) terem feito várias entrevistas com ex-membros do grupo. “Por que quiseram se misturar com essas pessoas e considerar suas opiniões pelo valor de face?”, indignou-se o verdadeiro Martin McGartland. “Por que ficaram impressionados por esse tipo de conversa? Por que não falar comigo, ou minha família, ou policiais aposentados, para descobrir como eram as coisas?”

É isso. É um filme perturbado. Quis mexer na caixa de marimbondos sem incomodar os marimbondos. Fazer o omelete sem quebrar os ovos. Não dá. Ao fim e ao cabo, virou um filme hesitante, no muro, sem certeza do que quer dizer, sem querer desagradar a ninguém. Duvido que agrade a quem quer que seja. Aparentemente, para o lado que apóia o invasor, ficou parecendo pró-IRA. Com toda a certeza, para quem é contra o invasor, ficou parecendo um filme pró-brutalidade inglesa.

         Dead men walking – e nasce um astro

Deveria parar por aqui, mas acho que é necessário falar sobre o título original do filme, que é idêntico ao do livro autobiográfico do colaboracionista. A expressão dead men walking – que foi o título do belo filme de Tim Robbins contra a pena de morte – serve para designar os condenados à morte pelo Estado, em seus últimos momentos de vida, antes da execução. No livro, Martin McGartland usa a expressão para dizer que ele salvou a vida de pelo menos 50 pessoas condenadas à morte pelos assassinos do IRA.

Também é forçoso reconhecer: Jim Sturgess, que interpreta Martin McGartland, tem uma atuação brilhante. Está com tudo, esse rapaz muito jovem – nasceu na Inglaterra em 1978. Entre 2007 e 2009, trabalhou em Across the Universe, o filme baseado em músicas dos Beatles; em A Outra/The Other Boleyn Girl, ao lado de Natalie Portman e Scarlett Johansson; foi o protagonista de Quebrando a Banca/21, e teve papel importante em Território Restrito/Crossing Over, ao lado de Harrison Ford. Há agora (final de 2009) nada menos que quatro filmes em pré-produção em que ele atua. Impressionante.

O Espião/Fifty Dead Men Walking

De Kari Skogland, Inglaterra-Irlanda do Norte-Canadá, 2008

Com Jim Sturgess, Ben Kingsley, Kevin Zegers, Natalie Press, Rose McGowan

Roteiro Kari Skogland

Inspirado no livro de Martin McGartland e Nicholas Davies

Fotografia Jonathan Freeman

Música Ben Mink

Produção Brightlight Pictures, Future Films

Cor, 117 min

*1/2

Título em Portugal: Na Senda dos Condenados

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