Uma Estranha Entre Nós / A Stranger Among Us


Nota: ★★★½

Anotação em 2008: Este filme de Sidney Lumet, de 1992, remete inevitavelmente a A Testemunha/Witness, do australiano Peter Weir, feito sete anos antes, em 1985. Mas remete também a outros grandes filmes, como, por exemplo, Passagem para a Índia/A Passage to India, do mestre inglês David Lean, em que um jovem médico indiano, pessoa boa, honrada, tem a infelicidade de cruzar seu destino com o de uma inglesa de personalidade e nervos frágeis, num encontro que leva a uma grande tragédia.

Muito mais que um filme policial, Uma Estranha Entre Nós é, como o de Lean, um filme sobre o choque entre culturas.

Ao contrário do que acontece com a inglesa Adela Quested (Judy Davis) do filme de Lean, que atravessa oceanos e enfrenta ainda viagens de trens e sobre elefantes para se chocar com uma cultura em tudo diferente da sua, a detetive Emily Eden (Melanie Griffith, em um dos melhores papéis de sua vida) não precisa sair de sua cidade, Nova York, para se defrontar com um mundo que ela desconhece totalmente, com valores que tem dificuldade de compreender: o gueto dos judeus hassídicos do Brooklyn, tão longe e tão perto do mundo dela própria.

Um sujeito que como eu gosta de filmes escreveu no iMDB: “Numa tentativa de revisitar o sucesso de A Testemunha, no qual um policial se encontra com a comunidade amish, temos aqui um policial que se disfarça entre os judeus hassídicos de Nova York”. OK, é isso – mas é muito mais que isso. Até porque o policial interpretado por Harrison Ford em A Testemunha apenas se esconde entre os amish, enquanto a detetive Emily Eden vai viver entre os hassídicos, e tem que aprender alguma coisa de seus hábitos e valores para tentar se passar por um deles – porque suspeita que o assassino que procura é um hassídico.  

Os primeiros 15, 20 minutos do filme são um brilho, daquelas coisas que ficam melhores a cada nova revisão. Em seqüências curtas, em ações paralelas, Lumet vai nos apresentando os dois mundos – o da detetive Emily e o dos judeus hassídicos, até o momento em que ela é designada para investigar o desaparecimento de um rapaz naquela comunidade, no Brooklyn.

A seqüência da chegada dela ao gueto hassídico é sensacional, que poderia ser adotada em salas de aula de cinema sobre o que é uma boa montagem: entremeiam-se tomadas da detetive dirigindo seu carro com outras das pessoas nas ruas, os homens todos vestidos iguais, com ternos pretos, cabelo comprido, as mulheres com roupas cobrindo os braços e as pernas. Emily-Melanie Griffith desce do carro, a saia um pouco acima dos joelhos, vem andando em direção à câmara, aproxima-se, a câmara agora pega apenas as pernas dela, passando pela soleira da porta de uma casa entre dois rapazes sentados que olham as pernas dela.

Lá dentro, a detetive é recebida por uma jovem de uns 17 anos que a informa que o rabino está muito ocupado e não poderá recebê-la. Emily mostra o distintivo da Polícia, e a moça diz, no primeiro dos vários choques que se seguirão:

 – Você é um policial? (Policeman, ela diz.)

 – Uma policial – responde a detetive. (Policeperson – Emily é dos anos 1990, as palavras têm que ser as politicamente corretas.)

A garota demonstra não ter entendido, e Emily replica: – Deixe pra lá.

Em seguida ela é levada até a sala em que o rabino está sentado diante de uma grande mesa, ao lado da qual está, de pé, o jovem Ariel, filho adotivo do rabino e – saberemos mais tarde – seu futuro sucessor. A detetive estende a mão, o rabino não estende a sua.

A detetive se senta, joelhos à mostra. A jovem garota corre para colocar um xale cobrindo os joelhos. Emily pergunta à garota:

– Eles entendem o que eu digo?

– O rabino fala oito línguas – informa a garota.

Ao iniciar suas perguntas de praxe, a policial tira o casaquinho leve, de verão, e deixa os braços à mostra; a garota corre com outro xale para cobrir-lhe os braços. Quando o rabino chama o pai e a mãe do rapaz desaparecido, a policial se levanta da cadeira; ao sentar de novo, expõe novamente os joelhos, que a garota rapidamente cobre mais uma vez com o xale.

 A detetive faz as perguntas usuais ao pai e à mãe do desaparecido, até ficar sabendo que sumiram diamantes.

– De quanto estamos falando?

– Por volta de US$ 720 mil – informa o pai.

E a detetive:

– Seu filho pode ter roubado. Já vi isso centenas de vezes.

 Ao que o rabino diz suas primeiras palavras àquele ser de outro planeta que visita sua casa:

– No seu mundo, talvez. Não no nosso.

Melanie Griffith está muito bem; seu rosto mostra uma certa perplexidade, uma certa contrariedade por estar cuidando de um caso bobo de desaparecimento (o espectador já sabe que ela gosta de ação, adrenalina), um certo enfado por estar ali diante daquelas pessoas tão estranhas.

 – É você que manda aqui? – pergunta ao rabino. E ele:

 – O Todo Poderoso manda aqui.

 Um minuto depois, o rabino, os pais do desaparecido, a detetive, todos estão na joalheria da família do rapaz desaparecido, o último lugar onde ele havia sido visto, e temos novo diálogo do choque entre culturas diferentes. A policial defende sua tese de que o rapaz deve ter fugido com as jóias:

  – Eu tenho experiência. Eu conheço a natureza humana.

  E o rabino:

– Me perdoe, mas você não conhece a nossa natureza.

– Com todo respeito, senhor, dentro de todo homem honesto há um ladrão tentando escapar.

O rabino se aproxima dela:

– Tem certeza?

E ela responde que já viu de tudo nesta vida.

E estamos só com 20 minutos de filme. Ainda estamos começando.

Grande Lumet.

Ah, sim, um detalhezinho. James Gandolfini, que nos anos 2000 viraria um grande astro, o principal nome da badaladíssima série de TV Os Sopranos, faz um pequeno embora importante papel, como um mafioso italiano.

Uma Estranha Entre Nós/A Stranger Among Us

De Sidney Lumet, EUA, 1992.

Com Melanie Griffith (detective Emily Eden), Eric Tahl (Ariel), Mia Sara (Leah), Tracy Pollan (Mara), Lee Richardson (o rabino), James Gandolfini

Roteiro Robert J. Avrech

Música Jerry Bock

Produção Hollywood Pictures.

Cor, 110 min.

R, ***1/2

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