Olhar Estrangeiro


Nota: ★★★½

 Anotação em 2008: Todas as pessoas que gostam do Brasil e do cinema deveriam ver Olhar Estrangeiro, de Lúcia Murat. É um documentário fascinante, envolvente, muitíssimo bem feito, que faz pensar.

 O filme foi feito a partir do livro O Brasil dos Gringos – Imagens no Cinema, editado pela Intertexto em 2000, do professor e doutor Tunico Amâncio, que por sua vez foi criado a partir de uma tese de doutorado defendida por ele em 1998 na Universidade de São Paulo (USP). Diz o próprio professor doutor:

 “O texto acadêmico formulava questões sobre os estereótipos e clichês que modelam a imagem do Brasil e dos brasileiros nos filmes de ficção estrangeiros, vertente industrial, a partir de uma coleção de mais de 200 obras, majoritariamente norte-americanas e européias. (…) Lúcia Murat partiu daí para questionar de que modo se criam essas representações no interior da indústria. Isso foi um achado, porque ela não repete a tese, não usa nenhum jargão acadêmico e torna mais clara a questão que eu desenvolvi na tese.”

O filme de Lúcia Murat é a junção, a justaposição – ou pura e simplesmente a montagem – de três elementos diferentes: cenas de filmes estrangeiros feitos no Brasil e/ou sobre o Brasil; pequenas entrevistas com estrangeiros, gente comum, anônima, sobre o que sabem sobre o Brasil, o que pensam sobre o Brasil, o que lhes ocorre quando se fala em Brasil; e entrevistas conduzidas pela própria cineasta com atores, diretores e produtores de cinema que já filmaram no Brasil ou sobre o Brasil. As entrevistas, tanto as das pessoas comuns, quanto as de gente do cinema, foram feitas nos Estados Unidos, na França e na Suécia.   

Os temas principais que surgem e são discutidos nas entrevistas:

– Sexo, mulheres bonitas, de peito de fora, de bunda quase toda de fora; Rio de Janeiro, praias, carnaval, samba, alegria;

– Mulatas, negros, candomblé, exotismo, Salvador, Bahia;

– Amazônia, floresta amazônica, cobras, índios, exotismo;

– Paraíso, lugar paradisíaco, refúgio ideal.

Entre os 15 filmes que têm trechos exibidos no documentário, há de tudo – de porcarias que fizeram sucesso de bilheteria até filmes que nem consegui descobrir se chegaram a ser exibidos no circuito comercial brasileiro. (Nem nos próprios créditos finais do documentário aparecem os títulos brasileiros dos filmes mostrados.)

Alguns são bombas inqualificáveis, como Brenda Starr/Brenda Starr, de 1989, em que a personagem de Brooke Shields vai à Amazônia atrás de um cientista que tem uma fórmula para produzir energia a partir da água, e Lambada! A Dança Proibida/The Forbidden Dance, de 1990, feito às pressas para aproveitar os 15 minutos de sucesso da dança, em que uma princesa da Amazônia vai aos Estados Unidos pedir a ajuda global para a conservação da floresta, ou Anaconda/Anaconda, de 1997, em que um caçador doido de pedra (interpretado por Jon Voight) seqüestra na Amazônia uma equipe de cinegrafistas da National Geographic Society e os leva na busca pela maior serpente do universo.

Ou ainda Orquídea Selvagem/Wild Orchid, de 1989, com Mickey Rourke e Jacqueline Bisset, que vê um Brasil cheio de sexo explícito, danças e rituais de magia negra, como se fosse um pedaço antigo, selvagem e inventado do Haiti ou do Congo.

No rol dos filmes obscuros (alguém me corrija se eu estiver errado e eles não forem obscuros) estão Si Tu Vas à Rio… Tu Meurs, de 1987, dirigido por Philippe Clair, em que a graça e a beleza da mulher brasileira estão representadas pelo travesti Roberta Close, e T’Empêches Tout Le Mond de Dormir, de 1982, em que um jovem e cabeludo Daniel Auteil faz a elegia da bunda de uma negra que o comeu durante sua estadia no Brasil. A frase dele é: “Fui para o Brasil. Fiquei dois meses no Rio de Janeiro. Encontrei uma negra sublime, com uma bunda, uma bunda gigantesca!”

(Um parêntese: o título do filme de Philippe Clair aproveita o título da versão francesa da música Madureira Chorou, Si Tu Vas à Rio – o som final das duas frases é o mesmo. A canção Si Tu Vas à Rio é cantada em O Baile, de Ettore Scola.)

A lista dos filmes mais obscuros inclui ainda o sueco Sällskapsresan, de 1980, produzidos por Bo Jönsson, um dos entrevistados por Lúcia Murat, e Le Grabuge, de 1973, dirigido por Édourd Luntz, outro dos entrevistados.

Há filmes que não são porcaria, policiais ou simplesmente de aventura que quiseram usar imagens do Brasil, especialmente do Rio, como Feitiço do Rio/Blame It On Rio, de Stanley Donen, de 1984, com Michael Caine, e O Homem do Rio/L’Homme de Rio, de Philippe de Broca, de 1964, com Jean-Paul Belmondo e Françoise Dorléac.

E há ainda filmes de alguma qualidade, mas que cometem erros ao falar do Brasil. É o caso de Próxima Parada, Wonderland/Next Stop, Wonderland, de 1998, que pôs um ator que não sabe nada de português para fazer o papel de um brasileiro, e deu a entender que São Paulo tem praia, e Amazônia em Chamas/The Burning Season, de 1994, com Raul Julia no papel do ativista Chico Mendes e um elenco multinacional – e, em vez de Chico, eles pronunciam Tchicou.

Ao entrevistar as pessoas que participaram dessas produções, Lúcia Murat as questiona firmemente sobre os erros, a falta de informação, os clichês, os estereótipos.

A lista de entrevistados é tão diversificada quanto os filmes usados dentro do filme. Estão lá Philippe de Broca, um belo diretor de bons filmes humanistas (nunca é demais lembrar que é dele Este Mundo é dos Loucos/Le Roi Du Coeur, de 1966, belo manifesto pacifista), o grande Michael Caine, a simpática Hope Davis, ao lado de um bobão como Jon Voight, um diretor pouco importante como Greydon Clark, que fez o tal Lambada!, e cineastas bem menos conhecidos como Édouard Luntz, Philippe Clair e Zalman King, o do abacaxi Orquídea Selvagem.  

Muitos deles adotam uma posição francamente defensiva, tentando se explicar, se justificar, usando na medida do possível posturas politicamente corretas, diante da documentarista séria, intelectualizada, que está ali cobrando deles aqueles crimes de lesa-brasilidade, de lesa-cultura mundial.  

Às vezes parece que o filme pretende dizer que a indústria cultural dos países desenvolvidos é monoliticamente imbecil e imbecilizante, irresponsável, absolutamente analfabeta sobre o Brasil, sua imensa diversidade, sua extraordinária riqueza cultural multifacetada, e que se vale de clichês e estereótipos existentes sobre o Brasil por má-vontade ou má-fé ou as duas coisas juntas, e acaba com isso perpetuando esses clichês e estereótipos.

Como tudo na vida é bem mais profundo que os clichês e estereótipos, o próprio Olhar Brasileiro acaba demonstrando que nós, brasileiros, também temos nossa parte de culpa nessa história toda. Diversos dos entrevistados insistem em dizer que, sim, de fato, usaram clichês e estereótipos, mas isso é o que o Brasil expõe ao mundo.

O francês Philippe Clair levanta uma questão que me parece muito importante – e à qual nós, brasileiros, não prestamos a menor atenção: “As mulheres (no Brasil) fazem de tudo para mostrar que são belas. O que mais me impressionou foi ver que elas aprendem a rebolar desde crianças. O que mais me marcou – no começo fiquei um pouco chocado, mas depois achei maravilhoso, é quando vemos naquela Manhattan que é o Rio, sim, porque o Rio é uma Manhattan (e faz um gesto para mostrar os prédios altos), é quando você vê uma menina de 15 anos, com os pais de uns 60, e a filha está com um short (e ele mostra o tamanho mínimo do short com as mãos), que mostra quase tudo (e ele faz um gesto indicando a bunda) – é muito atormentador. Se fosse em Paris… E o curioso é que lá é normal”.

Philippe Clair pode não ser um cineasta brilhante, mas ele tocou num ponto importantíssimo. Botamos nossas garotinhas de oito, dez, doze de idade para dançar na TV de shortinho, de bunda de fora, a dança da garrafa, o funk, a moda de cada momento – e depois vamos reclamar que a indústria cultural dos países ricos usa clichês e estereótipos que coisificam a mulher brasileira. Damos hipersuperbig close-ups de bunda e de xoxota no carnaval, e repetimos essas imagens o ano inteiro, e depois reclamamos de clichês e estereótipos. Ah, pra puta que pariu…  

O grande Michael Caine – que cometeu o crime de participar, em 1984, de um filme, o tal Blame It On Rio, que passou feito um trator por cima da realidade dos fatos, fixou-se no clichê, e botou todas as mulheres em Copacabana de topless – é definitivo. Do alto de seus 72 anos, já não precisando mais ser cheio de dedos, politicamente correto, vira-se para a câmara e diz:

 “O Brasil é um clichê por um ótimo motivo: eu acho que o Brasil produz mais gente bonita do que qualquer outro país. Se vocês quiserem ser tratados mais seriamente, acho que vocês deveriam dançar menos e ficar mais feios. Aí todo mundo vai tratá-los mais seriamente. Nós (os ingleses) não conseguimos dançar daquele jeito, e somos muito feios, e todo mundo nos trata muito seriamente.”

No final de seu filme enérgico, provocativo, que levanta importantes questões – e de quebra aguça a imaginação dos cinéfilos por lembranças de outros olhares de filmes estrangeiros sobre nós -, Lúcia Murat lembra que em mais de 40 filmes os bandidos fogem para o Brasil.

Claro que fogem. Os filmes imitam a vida real. Os bandidos fogem para o Brasil mesmo. O mafioso Tommaso Buscetta fugiu para o Brasil. O assaltante do trem pagador Ronald Biggs fugiu para o Brasil – e ficou tão famoso aqui que seu filho virou, por ser seu filho, cantor de conjunto infantil de grande sucesso nos anos 80. Nazistas fugiram para o Brasil. Criminosos de todos os tipos fogem para o Brasil – ou permanecem no Brasil. O país é bonito, barato, tem mulheres lindas e seminuas (conforme a TV brasileira mostra diariamente), e a Justiça, quando não falha, tarda, mensaleiros e aloprados que o digam.   

Por isso faz todo sentido a questão com que a cineasta encerra seu documentário: “Afinal, quem somos nós?” – para dedicar sua bela obra “a todos os que buscam sua identidade”.

Um PS. Cerca de um mês depois que vi Olhar Estrangeiro, o jornal O Globo publicou uma curiosa reportagem que imediatamente me fez lembrar deste filme de Lúcia Murat. Naquele bairrismo imbecil em que cariocas mergulham, e que os fazem criticar São Paulo para dizer que o Rio não é tão ruim assim, o jornal saiu-se com os seguintes título e olho:

Ficção não imita a vida real

Ao contrário do que se vê não cinema, bandido internacional prefere São Paulo, e não o Rio

E aí a reportagem cita números da Interpol: de janeiro de 2005 a setembro de 2008, foram presos 145 criminosos de diversas nacionalidades no País. Destes, 23, ou 15,86%, foram detidos no Rio, e 39, ou 26,89%, o foram em São Paulo. Oba, oba, isto sim é que é Rio de Janeiro bão, hein, siô?!

A tolice do bairrismo fora, o que importa é o número em si: em menos de quatro anos, a Interpol prendeu no Brasil 145 criminosos procurados em seus países de origem. É a confirmação estatística de que o cinema apenas mostra a realidade: os criminosos fogem para o Brasil.

Olhar Estrangeiro

De Lúcia Murat, Brasil, 2006.

Argumento Lúcia Murat

Roteiro Lúcia Murat e Tunico Amâncio

Baseado no livro O Brasil dos Gringos – Imagens no Cinema, de Tunico Amâncio

Fotografia e câmara Dudu Miranda

Produção Taiga Limite Okeanos

Cor, 70 min.

***1/2

6 Comentários para “Olhar Estrangeiro”

  1. Estava eu lá na minha comunidade de cinema quando apereceu um tópico sobre um filme mer…
    Turista, aí a polêmica se estabeleceu sobre filmes estrangeiros de péssima qualidade feitos aqui, usando nosso cenário como pano de fundo, mas tratando nosso país como a casa de Irene. Coloquei minha opinião, bem antes de achar este site. Depois lembrei do fato de uns tantos filmes em que os vilões depois de aprontar todas fogem para o Brasil. Vim a cata de informações mais precisas sobre o assunto, talvez encontrar o nome de alguns desses filmes, e eis que me deparei com esse material. Estou passando para alguns amigos da comunidade o endereço para que eles possam compartilhar também deste assunto tão pertinente. Ainda não vi o ducumentário mas verei assim que tiver acesso. Aquele abraço.

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