3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este filme bem feitíssimo, de produção irretocável, bela fotografia em glorioso preto-e-branco na maior parte do tempo, não é apenas a biografia de Bettie Page (1923-2008), um dos maiores símbolos sexuais da história dos Estados Unidos, “a maior pin-up do universo”, “a rainha das curvas”, “o anjo escuro”, como ficou conhecida.
Ele quer também discutir sobre os conceitos de pornografia, sobre como são mutáveis as concepções sobre moral, moralismo, sexo, conservadorismo, repressão.
Nisso, ele segue uma linhagem nobre, que inclui pérolas como Lenny, de Bob Fosse, de 1974, sobre a vida do comediante Lenny Bruce, e O Povo Contra Larry Flynt, de Milos Forman, de 1996, sobre o criador da revista Hustler. Não chega a ser tão brilhante quanto esses dois filmes citados – belíssimos obras de arte que são também panfletos libertários contra as censuras de todos os tipos e a favor da total e absoluta liberdade de expressão. Mas é um bom filme, e importante nas duas coisas que pretende, contar a história de Bettie Page e levantar a questão das concepções sobre os costumes da sociedade.
Uma abertura espetacular
O filme se concentra na vida de Bettie Page até o finalzinho dos anos 50, a década em que passou de desconhecida a mito sexual; não trata do que veio depois – o que veio depois, a descida do auge do estrelato a uma vida problemática, triste, amarga, é uma história riquíssima, mas é de fato outra história; teria que ser contada em outro filme.
A abertura do filme é um brilho, uma maravilha. Revi algumas vezes, e a cada vez gostei mais; vale a pena transcrever as falas, porque elas já dão todo o tom do filme. A ação começa em Nova York, em 1955. Temos belíssimas imagens em preto-e-branco da Times Square, os muitos anúncios em neon. Um sujeito de sobretudo e chapéu com uma pasta na mão entra numa livraria, a câmara passeia pelo que está exposto nas prateleiras – diversas revistas com desenhos chamativos de mulheres, no estilo de Alberto Vargas, ou do nosso Carlos Zéfiro. O homem de sobretudo e chapéu aproxima-se do funcionário sentado diante do caixa:
– “Você tem algo diferente?”
– “Acho que não entendi o que você quer”, diz o caixa.
– “Você tem algo com sapatos anormais?” – o tom do cliente é de safadeza, de um tarado.
– “Salto alto? Botas?”, pergunta o caixa, enquanto põe sobre o balcão uma revista chamada Whisper, sussurro, com um desenho à la Vargas ou Zéfiro de coxas de uma mulher com meias, liga preta, salto alto.
– “Botas de couro… com cadarço?” – a voz do cliente está cada vez mais safada.
Sem dizer nada, o caixa expõe para ele uma foto de uma mulher com sutiã e calcinha pretos, bota até quase o joelho com grande cadarço – é Bettie Page.
– “Muito bom, isso. Vou levar. Você tem outro material que mostre…” – pausa cheia de insinuação – “dominação?”
O caixa produz uma revista com o título Bettie Page in Bondage. Na foto da capa, Betty Page, sempre de sutiã e calcinha pretos e sapatos pretos de salto alto, está sendo amarrada por outra mulher também em roupa de baixo:
– “É o favorito de alguns de nossos clientes. A modelo é bastante popular.”
O cliente folheia a revista e ele e o espectador vêem diversas fotos de Betty Page, sempre com corseletes, chicotes, correntes, amarras, que evocam sadomasoquismo. O cliente muda o tom e berra:
– “Sou o detetive Farrell, Polícia de Nova York. Temos razões para acreditar que você está vendendo literatura obscena e indecente.”
A música, um jazz langoroso, sobe muito, começam os créditos iniciais, corta, e estamos numa audiência do Subcomitê do Senado para a Investigação de Delitos Juvenis; o presidente do subcomitê (interpretado por David Straithairn, grande ator) está à mesa, falando diante das câmaras de TV, sobre sua crescente preocupação com os efeitos da pornografia sobre os adolescentes americanos. Faz à sua testemunha a típica pergunta retórica:
– “Padre Egan, o senhor acha que a pornografia está tendo efeito substancial e degradante?”
E o padre Egan sobe a escada oferecida: – “Com certeza. É gravíssimo. A pornografia está corroendo a própria raiz da nossa nação.” – Pausa antes da frase de efeito: – “O comunismo jamais derrotará os Estados Unidos. Não; é algo de dentro da nação que vai apodrecer e corromper.”
Corte, e temos um close-up dos pés de uma mulher, em sapatos convencionais, meias de nylon. A câmara vai subindo pelas pernas, os joelhos, um vestido comportado, e vemos agora em close-up o rosto não propriamente da atriz Gretchen Mol (foto acima), mas de Bettie Page, porque Gretchen Mol está Bettie Page, é Bettie Page – basta checar as fotos de Bettie Page na internet, ou nos créditos finais do próprio filme, em que aparece a Betty Page real, ou nos muitos, vários, diversos filmes que povoam os especiais do DVD deste filme. É um fenômeno: Gretchen Mol, nascida em 1972, vista muitas vezes loura (como, por exemplo, em Celebridades e Poucas e Boas/Sweet and Lowdown, de Woody Allen, ou no seriado de TV Life on Mars), encarnou sua personagem, ficou com a cara e as expressões exatas de sua personagem, como Marion Cottillard encarnou Edith Piaf, como Helen Mirren encarnou a Rainha Elizabeth II.
Gretchen Mol-Bettie Page está sentada à espera de sua vez de depor diante do Subcomitê do Senado para a Investigação de Delitos Juvenis. Estamos com menos de dez minutos de filme, acabam de terminar os rápidos créditos iniciais, e é hora de termos o primeiro flashback, para Nashville, Tennessee, 1936, onde uma Bettie Page de 13 anos assiste ao culto religioso, ao lado da cristã e severa mãe.
Entre os 13 anos de idade em 1936 e os 26 anos em 1949, a Bettie Page da vida real (foto), assim como a Bettie Page mostrada no filme, foi a) abusada pelo próprio pai; b) agredida pelo jovem marido; e c) estuprada por um grupo de homens. Tudo isso é mostrado de maneira extremamente suave, nada explícito, em dez minutos de filme. Com 20 minutos de filme, então, temos Bettie Page chegando a Nova York. Nos cerca de 70 minutos seguintes, teremos, em ações paralelas, a ascensão da garota ao auge da fama como “a maior pin-up do universo” e as ridículas, deprimentes, canhestras, absurdas sessões do subcomitê de caça às bruxas da pornografia. (A caça às bruxas do comunismo ainda nem tinha acabado direito, e a direita raivosa americana queria novas caçadas a outras bruxas.)
Obscenidade é outra coisa bem diferente
A diretora e co-roteirista Mary Harron, autora também dos elogiados Um Tiro para Andy Warhol/I Shot Andy Warhol, de 1996, e Psicopata Americano/American Psycho, de 2000, diz nos especiais do DVD que queria “fazer um filme sobre a sexualidade nos anos 50, tanto quanto um filme sobre a vida de Bettie Page”. “Para mim, o filme trata dos dois assuntos, e as audiências no Senado são muito relevantes.”
O que os políticos conservadores, da direita babante, chamavam de pornografia, indecência, obscenidade, naqueles reprimidos e repressores anos 50, parece hoje a coisa mais inocente do mundo. Bettie Page jamais foi fotografada ou filmada fazendo sexo; na verdade, como mostram tanto o filme quanto os especiais em que a própria modelo aparece, ela ficava nua ou em poses que sugeriam sadomasoquismo com a maior naturalidade e alegria, uma cara sempre feliz, muito mais sapeca do que sacana. Filmes como Instinto Selvagem ou Corpo em Evidência são 200 mil vezes mais explícitos do que tudo que Bettie Page fez. Sem falar dos filmes pornôs que a TV paga mostra toda noite.
E, afinal de contas, como dizia Lenny Bruce no filme de Bob Fosse, sexo não é feio, não é ruim – ruim é violência, fome, opressão, injustiça; um travesseiro colocado sob uma bunda durante a trepada é uma coisa bela; um travesseiro usado para asfixiar uma pessoa é que é uma coisa suja, obscena. Ou, como diz a Betty Page do filme: “Deus me deu talento para posar para fotos e isso parece deixar as pessoas felizes. Não pode ser uma coisa ruim, pode?”
Bettie Page/The Notorious Bettie Page
De Mary Harron, EUA, 2005
Com Gretchen Mol, Chris Bauer, David Straithairn, Jared Harris, Lili Taylor, Sarah Paulson
Roteiro Mary Harron e Guinevere Turner
Música Mark Suozzo
Produção HBO Films, Killer Films, John Wells Productions.
P&B e Cor, 91 min.
***
Belo filme,é impossível assistí-lo sem experimentar um misto de prazer visual (a atriz Gretchen Mol está exuberante) e curiosidade pelas famosas cenas de bondage.
Muito bom,mesmo.
Lindo..maravilhoso…mostra como mudamos para pior sem perceber isto.
Vi recentemente e fiquei positivamente surpreso.
Gretchen Mol transborda beleza e carisma.
Pesquisando sobre Bettie Page,vi que a mesma faleceu no incio desse ano.
O filme termina com gostinho de quero mais…
gostaria de achar esse filme para assistir ou baixar, alguém pode me ajudar?