Reflexos da Inocência / Flashbacks of a Fool


2.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Um filme inglês sobre lembranças, marcas da infância e da adolescência, sexo, culpa, arrependimento, sucesso material e infelicidade – feito por um diretor e roteirista que, tudo indica, é um apaixonado por música.

 Está um tanto vago? Vou especificar. O protagonista chama-se Joe Scott (o personagem de Daniel Craig, o mais recente James Bond), um ator de cinema de uns 40 e tantos anos que, quando a ação começa, está muito bem de vida, materialmente falando, mas na verdade vai mal, mas vai mal demais. Vive numa casa cinematográfica, imensa, riquíssima, modernosa, debruçada sobre o mar da Califórnia; bebe todas, cheira coca, transa com mulheres belíssimas (duas ao mesmo tempo), mas no momento está num beco sem saída na carreira – a profissional, não a da coca, quero dizer. Seu agente diz que ninguém o agüenta mais, que na verdade ele está acabado. No mesmo dia, ele tinha recebido um telefonema da mãe, contando que Boots tinha morrido. Boots, o espectador pode imaginar, é o grande amigo de infância de Joe.

Reflexos 1Estamos aí com uns 15, 20 minutos de filme, e haverá o flashback prometido no título original, que ocupará a maior parte da narrativa. Nele veremos alguns dias na vida de Joe Scott, então um adolescente inglês de classe média baixa, morando numa pequena cidade à beira-mar.

O espectador pode imaginar que Boots seja o grande amigo de infância de Joe porque, nos créditos iniciais do filme, vemos, enquanto são apresentados os nomes dos atores e da equipe, cenas de dois garotinhos brincando e fazendo aquela coisa de dar um corte na mão para misturar os sangues – o pacto de sangue que alguns garotos gostam, ou ao menos gostavam, de fazer.

Das cenas de dois garotinhos brincando passamos, ainda durante os créditos iniciais, para cenas de sexo, Joe maduro, nos dias de hoje, transando com duas mulheres ao mesmo tempo, bebendo e cheirando.

         Paixão por música

Ao longo de todos os créditos iniciais, ouvimos a versão em inglês da canção Fils de…, de Jacques Brel. Não reconheci o cantor, mas é uma bela gravação – no começo, apenas a voz e piano; depois, quando a melodia de Brel cresce, naquele belíssimo tom teatral dele, entra toda uma grande orquestra.

Em geral, as versões de músicas estrangeiras – sejam francesas, brasileiras, italianas – feitos por americanos deixam completamente de lado a letra original, e falam de outra coisa. Fils de… é uma exceção a essa regra. A canção de Brel e Gerard Jouannest foi vertida para o inglês (pela dupla Eric Blau-Mort Shuman) com respeito à intenção dos autores – tanto que Joan Baez e Judy Collins fizeram belas gravações dela. É um belíssimo poema, sobre melodia igualmente bela, falando de filhos, crianças, a infância e a inocência que vão embora depressa demais.

(“Sons of the thief, sons of the saint, Who is the child with no complaint, Sons of the great or sons unknown, All were children like your own, The same sweet smiles, the same sad tears, The cries at night, the nightmare fears, Sons of the great or sons unknown. All were children like your own… So long ago: long, long, ago… Sons of tycoons or sons of the farms, All of the children ran from your arms Through fields of gold, through fields of ruin, All of the children vanished too soon In tow’ring waves, in walls of flesh Among dying birds trembling with death. Sons of tycoons or sons of the farms, All of the children ran from your arms…”

Ou, no original: “Fils de bourgeois Ou fils d’apôtres Tous les enfants Sont comme les vôtres Fils de César Ou fils de rien Tous les enfants Sont comme le tien Le même sourire Les mêmes larmes Les mêmes alarmes Les mêmes soupirs Fils de César Ou fils de rien Tous les enfants Sont comme le tien. Ce n’est qu’après, Longtemps après… Mais fils de sultan Fils de fakir Tous les enfants Ont un empire”)

Sim, esse diretor deve gostar muito de música. Na primeira seqüência do flashback que ocupará a maior parte do filme, vemos Joe (interpretado, quando jovem, por Harry Eden) e seu amigo Boots (Max Deacon), os dois com algo em torno de 15, 16 anos, conversando sobre David Bowie. Não há letreiro especificando local e data, mas aquilo é certamente anos 70, o auge do glam rock; Joe, Boots e Ruth (Felicity Jones), a garota mais bonita e interessante da cidadezinha, todos são absolutamente apaixonados por David Bowie e por Roxy Music; falam muito sobre eles, ouvem seus discos. Joe pergunta de quem Ruth mais gosta, se de Bowie, se do Roxy Music, e ela responde que é impossível escolher entre os dois, os dois são demais. 

Numa das seqüências mais importantes do filme, Joe vai à casa de Ruth, e vemos que Ruth é bem mais rica que Joe e Boots – estamos na Inglaterra, certo?, onde o classismo é um traço extremamente forte –; os dois se maquilam como seus ídolos musicais faziam, e depois fazem um karaokê às avessas; fingem que estão cantando, mas sem de fato pronunciar as palavras, enquanto ouvem uma canção do primeiro disco do Roxy Music – If There is Something, de Bryan Ferry, que, aliás, também foi gravada por Bowie. Essa canção e essa seqüência são fundamentais na trama.

Quase no fim do longo flashback em que vemos Joe Scott adolescente, haverá uma tragédia que o marcará para sempre e mudará sua vida.

Quando o filme começou, ao som de Sons of, imaginei que ele poderia ser uma daquelas coisas extraordinárias, de babar. Não chega a ser, não – mas tem coisas muito boas, é sensível. O elenco é homogeneamente competente, e algumas tomadas são belíssimas. 

         Sim, tem tudo a ver com música

Depois que fiz a anotação acima, fui procurar informações na internet. De fato, o diretor e roteirista Baillie Walsh dirigiu videoclips; este aqui foi seu primeiro longa-metragem de ficção. As cenas passadas em Los Angeles foram filmadas nos arredores da Cidade do Cabo, na África do Sul – não há nada de genuinamente americano no filme; fala-se de EUA só porque é lá que fica Hollywood.

A atriz que faz Ophelia, a interessante personagem que trabalha como secretária faz-tudo para Joe Scott adulto, é uma rapper, Eve.

Quem canta Sons of durante os créditos iniciais é um sujeito chamado Scott Walker, de quem eu nunca tinha ouvido falar, embora me considere um sujeito razoavelmente bem informado sobre música popular. Vejo agora no AllMusic que Scott Walker é “uma das mais enigmáticas figuras da história do rock”. Americano de Ohio, viveu na Inglaterra e botou quatro discos entre os dez mais vendidos lá (nunca fez sucesso nos Estados Unidos). Diz o AllMusic: “No auge da psicodélia, Walker encontrou inspiração em crooners como Sinatra, Jack Jones e Tony Bennett, e gravou várias canções de Jacques Brel. Nenhum desses baladeiros (sic), no entanto, teria cantado sobre os excêntricos temas que povoam as canções de Walker – prostitutas, travestis, suicidas, pragas e Joseph Stalin”.

Taí: eis um sujeito para se descobrir, o tal de Scott Walker. Esse diretor Braillie Walsh é, de fato, um apaixonado por música. E fez um bom filme; não um grande, mas um bom filme sobre temas adultos e importantes.  

(Nas fotos abaixo, a atriz Felicity Jones como Ruth, a garota mais bonita e interessante da cidadezinha nos anos 70, maquiada como seus ídolos, na seqüência chave do filme.)

Reflexos da inocência

 

Reflexos da Inocência/Flashbacks of a Fool

De Baillie Walsh, Inglaterra, 2008

Com Daniel Craig (Joe Scott adulto), Harry Eden (Joe Scott adolescente), Max Deacon (Boots), Felicity Jones (Ruth adolescente), Claire Forlani (Ruth adulta), Olivia Williams (Grace Scott), Jodhi May (Evelyn), Eve (Ophelia)

Argumento e roteiro Baillie Walsh

Música Richard Hartley

Produção Left Turn Films. Estreou em SP 19/8/2008

Cor, 110 min

**1/2

Título em Portugal: Reencontrar o Passado

8 Comentários para “Reflexos da Inocência / Flashbacks of a Fool”

  1. Adorei a trilha sonora do filme. E, sinceramente, não imaginava que tantas pessoas tinham tido a mesma impressão que eu. Assisti ao filme ontem à noite e hoje já pesquisei sobre as músicas.

    Parabéns pela pesquisa!

  2. bom resumo do filme, também adorei atrilha e fui logo baixar If There is Something..
    abs

  3. Obrigado pela mensagem, Fred. Confesso que fico espantado com a classificação do meu texto como um mero “resumo do filme”. Eu achava estar fazendo algo um pouquinho diferente de um “resumo do filme”. É sempre bom a gente perceber que o que a gente faz, ou acha estar fazendo – um comentário, uma anotação, uma pequena pensata – não passa mesmo de um “resumo do filme”.
    Seu comentário é sensacional, porque arrasa com o ego do cara.
    Um abraço.
    Sérgio

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