O Gabinete do Dr. Caligari / Das Cabinet des Dr. Caligari

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível em DVD e no Looke.)

A Alemanha mal começava a sair das ruínas, destroçada, empobrecida, derrotada na Primeira Guerra Mundial e submetida a severíssimas penalidades pelo Tratado de Versalhes, quando, em 1920, o diretor Robert Wiener filmou a história criada e roteirizada por Carl Mayer & Hans Janowitz, sobre uma série de crimes em uma cidadezinha interiorana.

As condições eram duríssimas, o orçamento era mínimo. A energia elétrica era estritamente racionada em todo o país, e o trabalho dos iluminadores era quase uma missão impossível. Os cenários foram feitos de papel, com as sombras pintadas nas paredes. Os figurinos eram de fabricação barata, e as filmagens duraram menos de três semanas.

O resultado foi um dos maiores clássicos da História do cinema.

O Gabinete do Dr. Caligari, diz o livro História do Cinema, de Mark Cousins, “não só lançou o movimento expressionista alemão no cinema, como também foi um dos primeiros filmes de referência no Ocidente a desafiar o realismo romântico fechado”.

“Caligari, que se tornou universal como Harpagon, o avarento de Molière, ou Don Juan, foi o primeiro tipo trágico criado exclusivamente pelo cinema”, diz Georges Sadoul em seu fantástico História do Cinema Mundial. “Menos que um homem, ele é um estado de alma, uma mistura de crueldade e inquietação, de fanático e de frenético. Esse filme célebre é hoje uma das chaves da alma alemã.”

“Um dos marcos da História do cinema, The Cabinet of Dr. Caligari foi um dos primeiros trabalhos do cinema que se assumia como ‘arte’ e teve um profundo e duradouro impacto na comunidade criativa mundial”, diz o CineBooks’ Motion Picture Guide.

Caligari, o mais completo ensaio sobre o décor do delírio, é um dos mais famosos filmes de todos os tempos, e foi considerado um avanço radical na técnica do cinema”, escreveu a crítica Pauline Kael.

“Um marco na História do cinema: o surgimento do expressionismo”, define Jean Tulard em seu Guide des Films. “Caligari oferece uma estética nova: maquiagem violenta e estilizada dos atores, cenários em telas pintadas, erros voluntários de perspectiva. O real é constantemente deformado, o clima é fantástico, as imagens próximas da alucinação. Essa história de loucos, esse pesadelo, pronunciaria mesmo, como se disse, Hitler? A verdade é que ele simboliza a perplexidade da República de Weimar.” (O termo designa a Alemanha no período entre a derrota na Primeira Guerra, em 1918, e o início do regime nazista, em 1933.)

O Gabinete do Dr. Caligari é a pedra angular de uma corrente de cinema fantástico e bizarro que surgiu na Alemanha na década de 20 e está ligada, de certa forma, ao movimento artístico expressionista”, diz o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, editado por Steven Jay Schneider. “Se grande parte dos filmes produzidos nas primeiras décadas da mídia acompanhou o estilo ‘janela para o mundo’ dos irmãos Lumière – com histórias ficcionais ou documentais apresentadas de maneira arrebatadora, no intuito de fazer com que os espectadores esqueçam que estão vendo um filme, Caligari retorna ao método de Georges Méliès ao apresentar constantemente efeitos estilizados, mágicos e teatrais que exageram ou caricaturam a realidade. Neste filme, policiais se empoleiram em bancos ridiculamente altos, sombras são pintadas nas paredes e nos rostos, formas pontiagudas predominam em todos os cenários, ambientes externos são claramente pintados e as telas de fundo e as interpretações estilizadas ao ponto da histeria.”

Depois de 103 anos, o filme nos deixa de queixo caído

Ao longo destes 103 anos que se passaram desde Caligari, o cinema fez de tudo, absoluta e literalmente de tudo. Todo tipo de efeito especial já havia sido usado quando, a partir dos anos 1980, passou a ser comum o uso das CGIs, computer generated images – e ai então foi uma nova explosão de imagens fantásticas, incríveis.

Pois é. Mas mesmo hoje as imagens captadas pelas lentes do diretor de fotografia Willy Hameister em 1920 são surpreendentes, impressionantes, impactantes. Os trechos de obras que recolhi para reproduzir aí acima falam muito sobre elas – e tenho certeza de que mesmo pessoas das gerações mais jovens que gostem de cinema e saibam que ele não começou com Quentin Tarantino ficarão de boca aberta e queixo caído diante do filme.

Meu, há momentos em que os personagens caminham em cima de estradas ou ruas que são desenhos no papel!

As ruas da pequenina cidade de Holstenwall, as casas, as edificações – tudo é desenhado, e os personagens andam no meio daquilo.

Todo esse visual fascinante é criação de três artistas plásticos – Walter Reimann, Walter Röhrig, Hermann Warm. Eles foram, sem dúvida alguma, os responsáveis por tornar O Gabinete do Dr. Caligari um dos maiores clássicos do cinema.

Mas o impacto do filme não se deve apenas ao visual extraordinário. Há outras grandes qualidades. Os atores estão todos muito bem, dentro do contexto do cinema mudo. A figura do Dr. Caligari (interpretado por Werner Krauss), dizem que inspirada no filósofo Arthur Schopenhauer (1788–1860), é magnífica, marcante, inesquecível. A figura de Cesare, o sonâmbulo que o dr. Caligari apresenta na feira de variedades de Holstenwall, é igualmente impressionante. (Cesare é feito por um muito jovem Conrad Veidt, que fugiria do nazismo e se radicaria em Hollywood. Sua intepretação como o major da Gestapo Heinrich Strasser em Casablanca é tão inesquecível quanto neste filme aqui.)

Também é fascinante a figura de Jane Olsen (Lil Dagover), a paixão de Franzis (Friedrich Feher), que a rigor é o personagem principal da história. Jane é ao mesmo tempo angelical, distante, fluida, onírica – e insana.

As falas dos personagens – que lemos em uma tipologia cuidadosa, enfeitada – são trabalhadas, talhadas com ourivesaria. “Espíritos nos cercam por todos os lados… Eles me expulsaram do meu chão, do meu lar, da esposa e filho!”, diz, na abertura do filme, o senhor idoso para Franzis. “Nós que somos de sangue nobre não podemos seguir os desejos de nossos corações”, responde Jane ao pedido de casamento feito por Franzis.

Há flashbacks! Isso me surpreendeu – achava que os flashbacks haviam vindo depois, nos anos 30, talvez 40. Achava isso tolamente, vejo agora.

Há uma reviravolta total, surpreendente, quando a narrativa já está bem perto do final. Uma reviravolta, como nos thrillers policiais que vemos hoje. Claro que não vou relatar qual é a reviravolta, mas será preciso falar dela.

Mas, antes, é necessário apresentar uma sinopse. Já passou. e muito, a hora da sinopse.

Um homem conta para outro uma história de terror

O CineBooks’ Motion Picture Guide costuma fazer sinopses cuidadosas, detalhadas. Vou transcrever aqui – sem aspas, para me desobrigar de ser literal e permitir que incruste informações e tire o que me parecer desnecessário.

Dois homens, um jovem, o outro mais velho, conversam sentados em um banco de parque. O mais jovem, Franzis (Friedrich Feher), conta para o outro – e para o espectador, é claro – uma fantástica história de terror. Somos então transportados para a pequena cidade Holstenwall, uma comunidade de aparência bizarra, cheia  de estradas irregulares e edifícios com telhados pontiagudos que parecem prestes a engolir seus moradores. Chega à cidadezinha um homem de aparência sinistra, o dr. Caligari (Werner Krauss), vestido com uma capa preta e cartola. Ele vai a uma repartição pública e pede permissão para participar da feira de variedades que vai acontecer na localidade. Pretende exibir na feira um sonâmbulo.

Naquela mesma noite, um importante funcionário de Holstenwall é esfaqueado e morto em sua própria casa.

Franzis conta para o amigo (e para o espectador) como ele e seu grande amigo Alan (Hans Heinz von Twardowski) estavam ambos apaixonados por Jane (o papel, repito, de Lil Dagover).

Franzis e Alan vão à feira de variedades. O dr. Caligari está tentando chamar a atenção do maior número de pessoas possível para entrar na sua tenda, em que ele exibe Cesare (o papel, repito, de Conrad Veidt), segundo ele um sonâmbulo que dorme quase todo o tempo – seu sono só é interrompido pelo seu cuidador, seu mestre, ele mesmo, Caligari.

Caligari diz que Cesare é capaz de predizer o futuro de qualquer pessoa. Alan se dirige a ele: “Por quanto tempo eu vou viver?” Cesare, o sonâmbulo, responde: “Até o alvorecer”.

No alvorecer do dia seguinte, Alan é assassinado por um homem armado de uma grande faca.

Abandono aqui a detalhada sinopse do Cinebooks’, aperto a tecla de fast forward, e resumo um pouco do que vem adiante:

Franzis tem a forte suspeita de que foi Cesare que cometeu os dois crimes – que matou o funcionário municipal e também Alan.

E tudo indica que, de fato, é o sonâmbulo Cesare que, obedecendo às ordens de seu cuidador, seu mestre, comete os assassinatos.

Eventualmente, quando a narrativa já passa da metade, Franzis persegue Caligari até um hospício. E aí revela-se que Caligari…

Atenção: aqui vem um spoiler!

Aqui vai um danado de um spoiler para quem não viu o filme.

Não é ainda o final da trama, de forma alguma, mas já estamos bem depois da metade do filme.

O eventual leitor que tiver chegado até aqui e ainda não tiver visto o filme deveria parar de ler.

O diretor Wiene fez alteração grande no roteiro original

Revela-se que Caligari é o diretor do hospício.

E, bem no final, nas últimas sequências, vem a reviravolta. Imensa, inesperada – e muda tudo.

Tanto essas sequências finais, que mudam completamente tudo, quanto a inicial, em que vemos Franzis conversando com um homem mais idoso, e começando a contar para ele a história que vem a seguir, não estavam no roteiro escrito a quatro mãos por Carl Meyer e Hans Janowitz. O começo e o fim do filme foram introduzidos pelo diretor Robert Wiene sem a aprovação dos autores da história e do roteiro!

Críticos e historiadores mostram que Carl Meyer e Hans Janowitz eram pacifistas, e escreveram juntos o roteiro durante seis semanas, em fevereiro e março de 1919, poucas semanas, portanto, após o final das batalhas da Primeira Guerra – o Armistício de Compiègne foi assinado no dia 11 de novembro de 1918.

Meyer e Janowitz, sintetiza Mark Cousins no seu livro História do Cinema, “haviam composto sua história em termos políticos. Caligari representava o maligno e controlador Estado alemão, e Cesare representava o povo comum manipulado por ele. O diretor Wiene, então com 38 anos, e seu produtor, Erich Pommer, removeram as sugestões políticas do filme, acrescentando não só uma sequência de abertura, mas o final em que Francis conclui sua história…”

E aí o autor revela a reviravolta final, o que me recuso a fazer. (Ele grafa Francis, com c; várias outras fontes usam Franzis, a forma pela qual optei.)

Em sua História do Cinema Mundial, o grande Georges Sadoul afirma que a sugestão de modificar o argumento original foi dada a Wiene por Fritz Lang! O que é muito interessante, porque, segundo várias fontes, o produtor Erich Pommer originalmente queria que Fritz Lang dirigisse filme. Diz o IMDb que Lang não estava disponível por estar filmando As Aranhas/Die Spinnen.

A modificação do roteiro, escreve Georges Sadoul, foi uma “concessão ao conformismo”, que alterou a moral da história.

         Os nazistas definiram o filme como “arte degenerada” e o baniram 

Transcrevo, por fim, o verbete sobre o filme do livro As Obras-Primas do Cinema, de Claude Beylie:

“Poderia ser um conto fantástico inspirado em Hoffmann ou Achim d’Arnim. Os estereótipos alemães são habilmente inseridos num clima de angústia ligado à situação do país após a derrota de 1918. Os autores pretendiam estigmatizar, de forma alegórica, o autoritarismo prussiano, sempre pronto a declarar anormal o que resiste a ele. Segundo o ensaísta Siegfried Cracauer, Caligari – como o Mabuse de Fritz Lang – seria uma premonição de Hitler, cuja sede de poder e loucura assassina anuncia. A personagem do doutor louco é uma constante na literatura popular. A partir de Caligari tornar-se-á um cliché do cinema.

“Todavia, é sobretudo pela estranheza dos cenários (telas pintadas agressivas, ruas em ziguezague, perspectivas deformadas), a maquiagem violentamente estilizada dos atores, sua construção descontinua, que Caligari impressionou duradouramente os espectadores. A partir desse filme, o anjo negro do bizarro iria abrir suas asas sobre o cinema alemão até a véspera do cinema falado, tanto entre os mestres (Murnau, Fritz Lang) como na produção corrente (Schatten, Der Golem, Das Wachsfigurenkabinett). O advento de Hitler porá fim a essa expressão da ‘arte decadente’.

Sim. Mesmo com o final que, como define Georges Sadoul, foi uma concessão ao conformismo, o filme foi banido pelos nazistas logo que assumiram o poder, por ser considerado “arte degenerada”.

Anotação em setembro de 2023

O Gabinete do Dr. Caligari/Das Cabinet des Dr. Caligari

De Robert Wiene, Alemanha, 1920

Com Werner Krauss (Dr. Caligari),

Conrad Veidt (Cesare, o sonâmbulo),

Friedrich Feher (Franzis, o narrador da história),

e Lil Dagover (Jane Olsen), Hans Heinrich von Twardowski (Alan, o grande amigo de Franzis), Rudolf Lettinger (Dr. Olsen, o pai de Jane), Rudolf Klein-Rogge (um criminoso), Hans Lanser-Rudolf (um velho), Henri Peters-Arnolds (um jovem médico), Ludwig Rex (um assassino), Elsa Wagner (a senhoria)

Argumento e roteiro Carl Mayer & Hans Janowitz

Fotografia Willy Hameister

Desenho de produção Walter Reimann, Walter Röhrig, Hermann Warm

Decoração de interiores Hermann Warm    

Figurinos Walter Reimann      

Produção Rudolf Meinert, Erich Pommer, Decla-Bioscop AG.

P&B, mudo, 76 min (1h16)

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2 Comentários para “O Gabinete do Dr. Caligari / Das Cabinet des Dr. Caligari”

  1. Quando assisti a esse filme pela primeira vez, experimentei uma sensação incrível. Primeiramente, fiquei impressionado pela beleza dos cenários, que mais pareciam saídos de um sonho. Em seguida, percebi como “O gabinete do Dr. Caligari” influenciou significativamente o cinema moderno. Podemos identificar a influência desse trabalho, que tem mais de 100 anos, em filmes como “A Ilha do Medo”, de Martin Scorsese, e nos cenários criativos do diretor Tim Burton. É fascinante observar a obra que moldou o cinema contemporâneo que tanto apreciamos hoje em dia.

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