O Círculo do Crime / Crime Ring

2.0 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube.)

O Círculo do Crime, no original Crime Ring, produção da RKO Radio Pictures de 1938, tem várias características interessantes. Bem, ao menos para quem é, como eu, apaixonado pelos filmes da época de ouro de Hollywood, dos anos 30 aos a meados dos 60.

* Trata de um tema não muito explorado, os videntes, os leitores da sorte, os fortune-tellers;

* Embora seja um policial, um filme sobre quadrilha, crime, e seja tratado nas poucas fontes que o citam como um drama, é a rigor uma comédia – ou, no mínimo, um policial com um forte tom cômico;

* Tem uma incrível quantidade de personagens, algo inimaginável para um filme tão curtinho, de apenas 70 minutos;

* É uma das tramas mais enroladas, imponderáveis, implausíveis que pode haver;

* É também, muito provavelmente, um dos filmes mais obscuros, menos falados, menos comentados da era de ouro de Hollywood.

Não é pouca coisa.

O filme tem uma abertura promissora

Pretendo justificar cada uma dessas cinco características que apontei aí. Gostaria de começar narrando como é a interessante abertura do filme – que explica o primeiro dos itens elencados acima.

Um vidente vestido a caráter, com um chapéu grotesco, diz para um homem de meia-idade, de terno, muito sério, uma bola de cristal entre eles: – “Vejo você se tornando um homem poderoso da indústria. Forte, cruel. Muito ambicioso. US$ 10, por favor.”

Corta, e vemos uma cartomante diante de um círculo de cartas na mesa, atendendo a uma senhorinha muito bem vestida. – “Ah… Aparecerão muitos homens na sua vida…” A senhorinha dá um grande sorriso. “Com romances em seus corações. Louros, morenos, ruivos. São US$ 5.”

Corta, e outra vidente está observando a mão esquerda de uma senhora mais jovem, mas igualmente bem vestida. – “Forte como sua ambição. Isso levará você a se tornar uma grande atriz.” A moça abre um sorriso enorme, e a vidente manda brasa: – “São US$ 3.”

Corta, e vemos um grande cartaz com os sinais do horóscopo pregado em uma parede de prédio, em uma rua movimentada. Um homem aponta para o cartaz, e vai matraqueando para os passantes: – “Os sinais de hoje trarão muitas oportunidades.” Ele tenta chamar a atenção de um transeunte específico: – “Em que mês o senhor nasceu?” Aquele escapa, o homem tenta laçar outro bobo: – “E a senhora? Quer ver o que os astros revelam?”

Epa! Um começo promissor!

Bem. Falo agora do fato de este ser um filme recordista no quesito “obscuro, pouco comentado”.

É preciso admitir que o filme bem que faz por merecer tanta obscuridade. É uma produção bem modesta de um estúdio que, embora tenha grandes títulos, é provavelmente o menor entre os grandes de Hollywood. Não tem um ator importante, muitíssimo menos um astro. Os roteiristas, J. Robert Bren e Gladys Atwater, não são marcantes. O autor da história, Reginald Taviner, não chega a ser memorável. O mesmo se pode dizer do diretor, Leslie Goodwins.

Leslie Goodwins (1899-1969), londrino que se radicou nos Estados Unidos e tem 167 títulos como diretor em sua filmografia, não está, por exemplo, entre os mais de 2 mil realizadores que constam do Dicionário de Cinema – Os Diretores, de Jean Tulard. Nem no Dicionário de Cineastas, de Rubens Ewald Filho. Segundo o IMDb, seus filmes de destaque são Homens Contra o Céu (1940), Falsa Felicidade (1946) e Dragnet (1947).

Crime Ring não está no guia de Mick Martin & Marsha Porter (mais de 11 mil títulos). Nem no de Steven H. Scheuer (mais de 19 mil). Nem no da revista Time Out (mais de 13 mil). Como não está nesses guias gigantescos, enciclopédicos, não seria mesmo de se esperar que estivesse no interessante livro do estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos A Outra Face de Hollywood: Filme B, que traz verbetes só sobre os grandes destaques das produções modestas dos estúdios.

Mas o que de fato me surpreendeu foi não encontrar Crime Ring no Cinemania, o maior e mais abrangente, enciclopédico conjunto de informações sobre filmes – em especial os americanos – de que já ouvi falar, antes da existência dessa coisa maravilhosa que é o IMDb, o Internet Movie Database. O Cinemania é um CD-ROM produzido pela própria Microsoft que reúne todos os verbetes dos guias de Leonard Maltin, do livro 5001 Nights at the Movies de Pauline Kael e do guia de Roger Ebert – mais biografias e filmografias completas de diretores, atores, produtores, roteiristas, escritores, diretores de fotografia, o escambau. O produto era tão bom, tão completo, que possivelmente chegou a ameaçar as vendas dos livros que ele transcrevia – e a Microsoft parou de lançar novas edições. A que tenho foi a última a ser comercializada.

Pouquíssimas, pouquíssimas vezes procurei algum filme no Cinemania e não encontrei.

Pois Crime Ring não está lá.

Só consegui achar registros sobre a existência do filme em quatro fontes: o IMDb, é claro, a Wikipedia em inglês, o AFI Catalog of Feature Films (o catálogo de longa-metragens do American Film Institute na internet) e o livro The RKO Story.

Trama enrolada – e um monte de personagens

Diacho: já que a equipe do douto American Film Institute fez uma sinopse da trama do filme, posso me eximir desse trabalho… Vou transcrever o texto – sem aspas, para não me obrigar a ser cuidadosamente literal, e permitir que eu acrescente algumas coisas.

Creio que a sinopse justificará plenamente aquelas minhas afirmações de que é incrível a quantidade de personagens e de que se trata de uma trama danada de enrolada, imponderável, implausível.

Lá vai:

O repórter Joe Ryan (o papel de Allan Lane) e o promotor Thomas Redwine (Frank M. Thomas) fazem um acordo: Joe poderá ter acesso à atriz Hudy Allen (Frances Mercer), na prisão, e em troca ele ajudará a investigar uma quadrilha que age na cidade. Judy e várias amigas haviam sido presas durante uma busca em um nightclub (o filme não se digna a explicar o motivo da prisão). Joe convence Judy a usar seu talento de atriz para se fingir de cartomante para atrair a quadrilha que extorque dinheiro de videntes na cidade – e Judy se transforma na cartomante Haidee, que tem como secretária sua amiga e colega Kitty, uma ventríloqua (Inez Courtney). O conjunto de salas em que Haidee passará a atender é devidamente preparado com câmaras e microfones escondidos, para gravar os fregueses e eventualmente pegar os bandidos, que seguramente iriam aparecer.

E um deles logo aparece. Um tal Buzzell (Vinton Hayworth), que tem uma agência de detetives de fachada, na verdade um lugar que reúne capangas para atender às necessidades da quadrilha, se apresenta para Haidee-Judy explicando que ela terá que pagar uma percentagem de tudo o que ganhar como taxa de proteção.

Veremos que a quadrilha possui os seus próprios videntes – falsos, é claro –, que sugerem aos desavisados clientes a compra de ações de empresas mineradoras, em uma corretora específica, ligada ao bando.

Paralelamente, a milionário Phoebe Sawyer (Clara Blandick), de quem o repórter Joe é grande amigo, é persuadida por sua criada a visitar o vidente cego Marvin (Charles Trowbridge), que tem extraordinários dons. Na verdade, Marvin dispõe de um complexo e avançado equipamento tecnológico (o filme é de 1938, é sempre bom lembrar) que provê para ele, em tempo real, informações sobre cada um de seus clientes, ou melhor, vítimas. (A sequência em que a milionária vai consultar o vidente, que, claro, não é cego coisa nenhuma, é interessantíssima.)

A partir daí, com a ajuda do advogado da gangue, Ray Taylor (Morgan Conway), e sob a supervisão direta do chefão do “crime ring”, o círculo do crime do título, Lionel Whitmore (Bradley Page), será bolado um sofisticado, complicado esquema de assalto à fortuna da milionária, com o uso de um falsificador da assinatura dela.

Ufa!

Acho que é mais ou menos isso aí a trama. Coisa de louco, siô.

A atriz Inez Courtney rouba todas as cenas

A melhor coisa do filme, na minha opinião, é a personagem da ventríloqua, Kitty, e a fantástica atriz que a interpreta, essa Inez Courtney (na foto abaixo). A atriz é engraçadíssima, e rouba absolutamente todas as cenas em que aparece. O diretor Leslie Goodwins pode ser pouco conhecido, mas, pelo jeito, não era bobo – e explorou ao máximo as caras e bocas hilariantes que essa Inez Courtney faz. É em cima de Kitty-Inez Courtney que o filme termina, com um clímax muito engraçado depois de várias sequências de muita ação, perseguição, bandido que prende mocinhos, mocinhos que ficam sob ameaça de revólveres, essas coisas todas.

Leslie Goodwins estreou no longa-metragem exatamente com este Crime Ring (tecnicamente, os curtos 70 minutos do filme o classificam como longa). Ele vinha de uma experiência de anos em curta-metragens cômicos, uma especialidade de Hollywood nos anos 10, 20 e início dos 30. E é interessante ver que, estreando no longa com um filme policial, ele não conseguiu se livrar da veia cômica.

Ainda bem – porque os momentos cômicos são sem dúvida o que este filme tem de melhor. Além da participação sempre engraçada de Kitty-Inez Courtney, há cenas muito engraçadas com a dupla de capangas do falso diretor de agência de detetives Buzzell, Dummy e Slim. Dummy e Slim (interpretados por Tom Kennedy e Paul Fix) são absolutamente trapalhões – e a dupla parece o Gordo e o Magro. Lá pelas tantas eles são presos em flagrante, e a equipe do promotor Thomas Redwine tenta de várias maneiras fazer com que eles confessem como funciona o esquema de extorsão, quem são os chefes da quadrilha – mas os capangas resistem. Aí Joe, o jornalista, tem uma idéia esperta: que tal levar os dois para o hospício da cidade? Duas noites lá e eles vão confessar tudo, sugere o espertinho.

A sequência no hospício é muito engraçada.

O diretor “lidou bem com a trama implausível”

Nova-iorquina, nascida em 1908, Inez Courtney. fez 58 filmes, dos quais o mais famoso é a comédia clássica A Loja da Esquina/The Shop Around the Corner (1940), do mestre Ernst Lubitsch, com James Stewart e Margaret Sullavan, que inspiraria uma quase refilmagem, Mens@gem para Você/You’ve Got Mail (1998), de Nova Ephron, reunindo novamente Tom Hanks e Meg Ryan.

Diz o IMDb que “a ruiva Inez Courtney foi a quintessência da coquete soubrette da comédia musical da Broadway na década de 1920”, antes de atravessar o país e se fixar em Hollywood. (Soubrette – vivendo e aprendendo – é um termo francês referente à extensão vocal de cantores e atores. Na ópera, o termo designa o soprano ligeiro; no teatro não musical, indica personagens femininos divertidos.)

Inez Courtney. Uma figura. Casou-se com um marquês italiano, Luigi Filiesi, e – como Grace Kelly, como Jacqueline Sassard – deixou de lado esse negócio de trabalhar. Seu último filme foi em 1940, um tal de Matrimônio Invertido/Turnabout.

Eis o que diz sobre Crime Ring o livro The RKO Story:

“O estreante em longa-metragens Leslie Goodwins conseguiu lidar bem com a trama implausível de Crime Ring. A história de Reginald Taviner, roteirizada por J. Robert Bren e Gladys Atwater, tratava das operações de um punhado de falsos videntes que trabalhava junto com corretores bandidos, e levava seus clientes a acreditar que estavam sendo guiados pelos espíritos ao fazer seus investimentos em ações. O jornalista (interpretado por) Allan Lane e a atriz desempregada (feita por) Frances Mercer se oferecem como iscas em um elaborado esquema para destruir a quadrilha. (A atriz não se oferece, e sim é convencida a participar do esquema em troca da liberdade para todo o seu grupo, mas tudo bem…) Embora o filme oferecesse pouco para as audiências sofisticadas, acabou sendo uma sólida atração nos cinemas.”

Anotação em fevereiro de 2023

O Círculo do Crime/Crime Ring

De Leslie Goodwins, EUA, 1938

Com Allan Lane (Joe Ryan, o jornalista), Frances Mercer (Judy Allen, a aspirante a atriz), Clara Blandick (Phoebe Sawyer, a milionária), Inez Courtney (Kitty, a ventríloqua), Bradley Page (Lionel Whitmore, o chefão do crime), Ben Welden (Nate), Walter Miller (Jenner), Frank M. Thomas (Thomas Redwine, o promotor), Vinton Hayworth (Buzzell, o chefe da “agência de detetives), Morgan Conway (Ray Taylor, o advogado da gangue), George Irving (Clifton), Leona Roberts (Mrs. Wharton), Charles Trowbridge (Marvin, o falso vidente cego), Tom Kennedy (Dummy, capanga de Buzzell), Paul Fix (Slim, capanga de Buzzell)

Roteiro J. Robert Bren e Gladys Atwater

Baseado em história de Reginald Taviner

Fotografia Jack MacKenzie

Montagem Desmond Marquette

Direção de arte Van Nest Polglase

Figurinos Renié

Produção Cliff Reid, RKO Radio Pictures.

P&B, 70 min (1h10)

**

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