Muitíssimo bem recebido pela crítica e pelo circuito de festivais, com 27 prêmios, fora outras 35 indicações, Uma Mulher Alta, produção russa de 2019, não é de forma alguma um filme agradável de se ver, fácil de se gostar. Muitíssimo ao contrário.
É extremamente duro, cru, cruel, amargo. Não poderia ser muito diferente, já que mostra a vida – como resume um letreiro bem no início – em “Leningrado, primeiro outono após a guerra”.
Mas não é apenas a realidade mostrada no filme que o torna nada agradável de se ver, nada fácil de se gostar. É também – ou talvez mais ainda – a forma com que a realidade é mostrada.
O diretor Kantemir Balagov, um garoto, jovem de tudo, nascido em 1991, exatamente o ano em que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desabava como castelo de cartas, optou por fazer seu segundo longa-metragem com um estilo que a maior parte do tempo é agressivo, repulsivo, aborrecido, chato.
Autor, juntamente com Aleksandr Terekhov, do roteiro original, ou seja, também da história, da trama, Balagov parece sentir prazer em deixar fios desencapados, soltos. Em realçar nebulosidades, em esconder explicações.
Me ocorreu agora, enquanto começava a escrever esta anotação, confortáveis 24 horas depois de ter sido agredido por ele, que Kantemir Balagov parece ter escrito o roteiro e dirigido este filme como um punk bem punk se prepara para ir a uma festa a caráter. Fazendo um esforço hercúleo para ter a aparência mais agressiva, mais ofensiva, mais nojenta, mais asquerosa possível.
A questão é que esse rapaz tem talento. E, diante de talento, não há o que um apaixonado por filmes possa fazer a não ser ter respeito.
A jovem tem momentos de paralisia, branco total
O filme abre em um momento em que Iya Sergueeva, a mulher alta do título brasileiro, está tendo um momento de paralisia, ausência, alheamento total do mundo. Ela está em meio à agitação de um hospital, entre colegas enfermeiras, e não está ouvindo ou vendo coisa alguma. O som das vozes ao redor dela vai surgindo aos poucos – para ela e para o espectador. Uma das enfermeiras diz a ela que o doutor a está chamando.
Em uma rápida sequência, o filme mostra de forma clara e eloquente que a jovem Iya tem esse problema – ela sofre dessa coisa de, às vezes, de repente, ter momentos em que fica paralisada, ausente, alheia. E que isso é sabido pelas suas colegas.
Iya (o papel de Viktoria Miroshnichenko) é uma moça de fato espantosamente alta. Ao sair do momento de ausência, vai falar com seu chefe, o médico e oficial do Exército Nikolay Ivanovich (Andrey Bykov) – e vemos que a moça é bem mais alta do que ele.
Sim, Iya – moça bem jovem, aí de uns 23, 24 anos – é bem mais alta que todas as demais pessoas ali no hospital, e também de todas as muitas pessoas que moram na mesma grande casa que ela, uma habitação coletiva, como era o normal na União Soviética após a Revolução de 1917.
O Uma Mulher Alta do título não é invenção dos exibidores brasileiros. O título do filme na França é Une Grande Fille; no Reino Unido e nos Estados Unidos é Beanpole, palavra que eu não conhecia, mas que é exatamente isso, pessoa muito alta e magra – isso que nós em Minas chamaríamos de varapau.
Mas a trama de Uma Mulher Alta não gira apenas em torno de Iya, a mulher alta. Gira em torno dela e de Masha (o papel de Vasilisa Perelygina), sua maior amiga – que só surge na tela quando o filme está aí com uns 15, talvez 20 minutos de filme, depois que acontece uma tragédia, algo absolutamente inesperado, chocante, apavorante.
A tragédia acontece antes dos 20 minutos do filme que dura 130 – mas. Mesmo assim, é algo tão inesperado que a rigor relatar é um spoiler. Assim, fica o aviso: se o eventual leitor ainda não viu o filme, deveria parar de ler por aqui.
Atenção: spoiler. Revela-se aqui um fato inesperado
Iya tem um garotinho bonito, esperto, simpático, Pashka (Timofey Glazkov). Numa das primeiras sequências, o doutor Nikolay conta para ela que separou uma ração extra de comida para ela levar para Pashka: – “Você já cresceu muito, mas seu filho ainda precisa se alimentar muito bem para crescer”, ele diz. Há também uma sequência em que Iya leva Pashka para o hospital, e os doentes brincam com ele – todos conhecem o garoto, o filho de Iya.
Há até uma frase impressionantemente dura, crua, nessa sequência. Os doentes estão brincando de imitar animais. Um deles pede para Pashka imitar um cachorro. Aí o doutor Nikolay corta:
– “Onde ele poderia ter visto um cachorro? Todos foram comidos.”
Cacete!
Lá pelos 14, ou 16 minutos do filme, não sei dizer exatamente, não anotei na hora, Iya está em seu quarto na habitação coletiva, brincando com Pashka. Ele está deitado na cama, ela o abraça, beija o rostinho dele, faz carinho – e tem um momento de paralisia, de ausência.
A câmara do diretor de fotografia Kseniya Sereda mostra em close-up a cabeça de Iya sobre o corpo do garotinho. Vemos os dedinhos dele se mexendo junto do cabelo dela, ouvimos as palavrinhas dele – ele pede para a mamãe parar.
Vemos que a mãozinha de Pashka pára de se movimentar.
Nas sequências seguintes, Iya está tocando a vida de maneira normal, como se nada tivesse acontecido.
Num diálogo mais adiante, o doutor Nikolay cita a morte de Pashka como algo natural.
Em momento algum se mostra de que forma Iya explicou ao mundo como foi que Pashka morreu.
E é depois que Pashka morre que Masha aparece na história. Vem do front – a guerra havia acabado fazia pouco, como o letreiro inicial havia informado, como toda a situação da cidade mostrava.
Masha e Iya se abraçam, se beijam, se carinham – vê-se que são amigas que se amam muito.
E, pelo diálogo entre as duas, ficamos sabendo que elas se conheceram e ficaram amigas no front, lutando contra os nazistas; que Pashka era filho de Masha; que Iya foi dispensada do Exército por causa da condição de saúde, o stress traumático que a levou a ter aqueles momentos de branco total – e, quando foi dispensada, recebeu o garotinho da amiga, para que o criasse longe do front da guerra.
Masha pergunta por Pashka, Iya diz que ele morreu – sem explicar as circunstâncias. Masha diz então que quer sair, caminhar pelas ruas.
Saem as duas pelas ruas da cidade em ruínas. Dois jovens, passeando de carro, as vêem, se aproximam. Masha manda Iya passear com um deles, fica com o outro no carro. Veremos que se chama Alexander, ou Sasha, o apelido daquele nome. É interpretado por Igor Shirokov, um ator bem jovem, mas muito jovem mesmo. Dá para perceber que Sasha é virgem. Masha o ensina como se faz a coisa, numa sequência bastante longa em que o espectador enxerga pouquíssima coisa, já que o carro está parado numa rua de pouquíssima iluminação.
Pouco depois, Masha dirá para Iya que estava precisando sentir um homem dentro dela.
Os nazistas cercaram Leningrado durante 900 dias
Uma jovem mulher que involuntariamente mata a criança que cria como seu próprio filho. Uma jovem mulher que, assim que recebe a notícia de que o filho está morto, sai para passear, com necessidade de sentir um homem dentro dela.
Uma insistência em sequências longas em que o espectador pouco consegue distinguir o que está acontecendo.
Deu para Mary. Ela se recusou a continuar vendo o filme.
Àquela altura, também me sentia desconfortável, a rigor bastante nauseado. Mas repito o que já falei: o filme não é nada agradável de se ver, muitíssimo antes o contrário – mas, diabo, é feito com talento.
Não dá para desprezar um filme feito com talento.
Depois de ver o filme, li um pouco sobre o cerco a St. Petersburgo. Lembrava, é claro, que o cerco a St. Petersburgo havia sido um dos episódios mais pavorosos da Segunda Guerra.
Tinha dúvidas sobre se as lembranças eram corretas, ou se eu não estaria confundindo Leningrado com Stalingrado. Não, não estava. Stalingrado foi o nome soviético da cidade de Volgobrado – e a batalha de Stalingrado foi, de fato, uma das mais importantes do front oriental da Segunda Guerra. Não foi exatamente uma batalha – foi um longo enfrentamento, entre julho de 1942 e fevereiro de 1943. A vitória soviética é tida pelos historiadores como fundamental para o destino do conflito na Europa – assim como, é claro, o desembarque aliado na Normandia, no front ocidental, em 6 de junho de 1944.
Vários filmes foram feitos sobre a batalha de Stalingrado – O Inferno de Stalingrado (1959), Stalingrado (1990), A Batalha Final (1993), Círculo de Fogo/Enemy at the Gates (2001), Stalingrado: A Batalha Final (2013).
O de 1959 foi feito pela então Alemanha Ocidental, a República Federal da Alemanha. O de 1990 é uma co-produção URSS-Alemanha Oriental-Checoslováquia-EUA – feita pouco antes da dissolução do império soviético. O de 1993 já veio pós fim do comunismo, é uma co-produção Alemanha-Rússia. O de 2001 é uma co-produção EUA-Alemanha-Irlanda-Inglaterra, dirigida pelo francês Jean-Jacques Annaud.
Recentissimamente, no ótimo espanhol O Fotógrafo de Mauthausen (2018), há um momento em que os prisioneiros daquele campo de concentração ficam sabendo que os nazistas haviam sido finalmente derrotados em Stalingrado. Um deles comenta que toda a situação vai mudar a partir dali: – “Até aqui os nazistas tinham a certeza de que venceriam a guerra. A partir de agora, vão começar a achar que ela pode ser perdida.”
Isso era Stalingrado.
Leningrado – o nome soviético de St. Petersburgo, a antiga capital do Império Russo, a Rússia dos czares, a Rússia dos livros de Tolstói e Dostoiévski – foi a cidade do cerco.
Leningrado foi cercada pelos nazistas de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944. O cerco durou 900 dias. Os nazistas não conseguiram dominar a cidade, ocupar a cidade – o que conseguiram foi cercá-la, na tentativa de asfixiar seus habitantes, para aí então ocupá-la. Jamais a ocuparam.
A capital imperial russa viveu 900 dias cercada pelos nazistas, sem contato com o mundo exterior.
A frase que o realizador Kantemir Balagov e seu co-roteirista Aleksandr Terekhov puseram na boca do médico Nikolay Ivanovich é um resumo brutal, chocante, apavorante: – “Onde ele poderia ter visto um cachorro? Todos foram comidos.”
Em Leningrado, naqueles meses seguintes ao fim dos 900 dias de cerco, ao fim da guerra, os sobreviventes não tinham as mesmas reações, os mesmos comportamentos que os seres humanos “normais”, os que não passaram por tudo aquilo.
Isso é o que este filme forte, duro, violento, quer mostrar, me parece.
Os sobreviventes daquele horror raciocinavam, sentiam de acordo com um outro tipo de lógica, um outro tipo de emoção, um outro tipo de visão do mundo.
O senso de humanidade ferido, esgarçado
Entre os 27 prêmios e 35 indicações que Uma Mulher Alta recebeu estão o de melhor filme e melhor diretor na mostra Un Certain Regard de 2019. Embora seja uma mostra paralela ao Festival de Cannes, dedicada em geral a filmes independentes de diretores jovens e/ou estreantes, o Certain Regard tem imenso prestígio.
No site em que um grupo de críticos mantém vivo o nome do grande Roger Ebert, o filme recebeu a cotação máxima de 4 estrelas. O texto longo e apaixonado de Matt Fagerholm faz os maiores elogios ao filme do diretor de apenas 28 anos. Um trechinho:
“Em Leningrado, uma cidade que acabava de ser devastada no cerco durante a Segunda Guerra Mundial, todas as pessoas estão lutando para readquirir seu equilíbrio, o que resulta numa falta de jeito penetrante evocada pelo título do filme. As tentativas iniciais de Masha de demonstrar alegria (ao rodopiar em torno de si mesma de forma frenética no quarto que divide com Iya) são irracionais, desajeitadas e, em alguns casos, bastante cruéis, mas nunca menos compreensíveis em sua humanidade ferida.”
Anotação em julho de 2020
Uma Mulher Alta/Dyld
De Kantemir Balagov, Rússia, 2019
Com Viktoria Miroshnichenko (Iya Sergueeva),
Vasilisa Perelygina (Masha)
e Andrey Bykov (Nikolay Ivanovich, o oficial médico), Igor Shirokov (Sasha, o jovem que namora Masha), Konstantin Balakirev (Stepan, o soldado que ficou tetraplético), Kseniya Kutepova (Lyubov Petrovna, a dama da nomenclatura, mãe de Sasha), Alyona Kuchkova (a mulher de Stepan), Timofey Glazkov (Pashka, o garotinho filho de Masha), Veniamin Kac (o amigo de Sasha), Olga Dragunova (a costureira), Denis Kozinets (o pai de Sasha), Alisa Oleynik (Katya), Dmitri Belkin (Shepelev), Lyudmila Motornaya (Olga), Anastasiya Khmelinina (enfermeira Leonova), Viktor Chuprov (Ryazanov), Vladimir Verzhbitskiy (Petrenko), Vladimir Morozov (Sadikov)
Argumento e roteiro Kantemir Balagov, Aleksandr Terekhov
Fotografia Kseniya Sereda
Música Evgueni Galperine
Montagem Igor Litoninskiy
Casting Vladimir Golov
Na TV a cabo (Now). Produção AR Content, Non-Stop Productions.
Cor, 130 min (2h10)
Disponível no Now em julho de 2020
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Título nos EUA e Reino Unido: Beanpole. Na França: Une Grande Fille. Em Portugal: Violeta.