2.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2007, com complemento em 2008: Este filme Iluminados pelo Fogo é um estranhíssimo, incompreensível, absurdo fenômeno. Durante 99 dos seus 100 minutos de duração, é um ótimo, poderoso filme antiguerra. No minuto final, com uma frase, ele destrói tudo o que havia feito antes.
A trama é assim: um jornalista, Esteban (Gastón Pauls), recebe a informação de que seu amigo Alberto (Pablo Ribba) tentou se matar. Esteban vai ao hospital em que Alberto está em coma, e, em longos flashbacks, o espectador vê que os dois lutaram juntos, 20 anos antes, na guerra das Malvinas. Os dois voltaram da guerra carregando as cicatrizes feias, a lembrança eterna do horror, do inferno – mas Alberto, de personalidade mais frágil, nunca se recuperou; a depressão que o levou à tentativa de suicídio é mais um crime dos generais da ditadura que, em 1982, num ato de desespero, um dos mais desatinados de toda a história da América Latina, tentaram assegurar mais tempo no poder apelando para o patriotismo dos argentinos, mandando milhares de jovens para combater o poderio militar britânico nas ilhas do Atlântico Sul há séculos disputadas pelas duas nações.
O filme tem a excelência normal do novo cinema argentino: bom roteiro, bons atores, personagens bem delineados, e tudo perfeito na parte técnica – fotografia, direção de arte, som, tudo. As cenas nas Malvinas são impressionantes, e impressionantemente bem feitas. Como muito bem observou um leitor do iMDB, é um filme antiguerra poderoso que pode, ou poderia, ser comparado a Nascido para Matar/Full Metal Jacket, de Stanley Kubrick, ou Amargo Regresso/Coming Home, de Hal Ashby – e eu, por minha conta, acrescentaria ainda Glória Feita de Sangue/Paths of Glory, também de Kubrick.
Até porque nenhuma guerra tem sentido, mas essa aí foi a mais sem sentido de todas, se é que isso é possível: será que os Galtieri da junta militar achavam mesmo que poderiam enfrentar a máquina de guerra que tinha derrotado Napoleão e depois Hitler?
Então temos um belo filme – até a cagada na saída. No fim, um letreiro traz a frase: “As Malvinas são argentinas”.
Não sei se foi exigência dos produtores, dos exibidores, da puta madre que los parió. Não importa. Com uma frase, o filme joga no lixo tudo o que havia mostrado nos 99 minutos anteriores. Uma patriotada imbecil – extamente a frase que os generais assassinos usaram, a noção que eles defenderam.
Fico aqui pensando em Tug of War, a canção que Paul McCartney compôs e gravou em 1982, exatamente o ano da guerra dos generais argentinos contra a máquina de guerra de Margareth Thatcher. Onze anos antes, ele tinha composto Give Ireland Back to the Irish – simples assim, devolvam a Irlanda aos irlandeses. Em Tug of War – cabo de guerra, aquela brincadeira de um grupo puxando a corda para um lado e outro para outro -, ele lamenta a guerra da Thatcher. “Esperávamos mais, mas estamos tentando derrotar um ao outro num cabo de guerra. Poderíamos estar no topo de uma montanha com nossa bandeira desfraldada, dançando a um ritmo tocado num tambor diferente.”
No ano e no disco seguintes, 1983, Pipes of Peace, ele voltaria ao assunto: “Me ajude a aprender canções de alegria em vez de queime, baby, queime. Me mostre como tocar as flautas da paz”.
Do que valeria Tug of War e Pipes of Peace se no final ele dissesse: As Falkland são britânicas?
Coisa de louco.
Aliás, acho que na época eu não tinha reparado que um dos autores da música do filme é León Gieco, esse grande, extraordinário compositor argentino, autor, entre tantas pérolas, de Solo le Pido a Diós, uma música emocionante, de tirar o chapéu. (“Solo le pido a Diós que la guerra no me sea indiferente; es um monstruo grande y pisa fuerte toda la pobre inocência de la gente.”) Ele deve, seguramente, ter se envergonhado daquela frase final.
Por que de que valeria Nascido para Matar se no final aparecesse uma frase do tipo: “O governo americano tem o direito de decidir o futuro do povo vietnamita”?
Iluminados pelo Fogo/Iluminados por el Fuego
De Tristán Bauer, Argentina-Espanha, 2005.
Com Gastón Pauls, Mario Chaparro, Pablo Ribba
Roteiro Tristán Bauer, Miguel Bonasso, Edgardo Esteban e Gustavo Romero Borri
Música Federico Bonasso e León Gieco
Cor, 100 min.
**
Um comentário para “Iluminados pelo Fogo / Iluminados por el Fuego”