Um Toque de Pecado / Tian zhu ding

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3.5 out of 5.0 stars

Um filmaço, uma obra de mestre. É duro, violento, denso, sério, pesado. Mostra uma China de hoje feia, horrorosa, repulsiva – um país em que reina a corrupção, o abismo entre as classes sociais é imenso, a violência está sempre presente e de forma aterradora, e a impunidade é total.

O que deixa o espectador tonto, zonzo, sonso: como assim? Como a rígida censura do governo chinês permitiu que se exportasse para o mundo inteiro um retrato tão violentamente feio do país-planeta?

A China é um planeta, e um planeta à parte, muitíssimo diferente do nosso. Está em outra galáxia, muito, muito, muito distante. Não dá para compreender os valores dos seres que habitam aquele lugar.    Estranhissimamente, no entanto, lá eles sabem fazer filmes de altíssima qualidade. Não consigo entender patavina dos valores deles, da forma com que os personagens se comportam – mas sei perfeitamente identificar que eles fazem cinema magnificamente.

Um planeta de partido único que se diz comunista e tem abismo social

Não consigo sequer chegar a uma conclusão sobre como se escrevem os nomes dos chineses. O IMDb grafa como Zhangke Jia o nome do diretor e autor do argumento e do roteiro deste filme impressionante, memorável. Mas qual será o sobrenome, qual será o prenome? Raios que partam os chineses.

A mais bela atriz chinesa que conheci – ela é Gong Li ou Li Gong? Qual é o prenome, qual é o sobrenome?

O magnífico realizador que transformou Li Gong/Gong Li em estrela mundial – será ele Yimou Zhang ou Zhang Yimou?

Quando você não é capaz sequer de saber o que é nome e o que é sobrenome, é porque se trata de fato de uma civilização muito distante da sua, de um planeta de uma galáxia muito, muito longínqua.

A TOUCH OF SIN, (aka TIAN ZHU DING), Jiang Wu, 2013, ©Kino Lorber

Quando você está diante de um país dominado por um partido único que se chama Comunista, e nesse mesmo país vigora um capitalismo furioso, selvagem em que – conforme mostra este filme magnífico – donos de empresa são bilionários e se aliam a chefes políticos locais para manter seus privilégios, e milionários e paupérrimos convivem lado a lado, então é sem dúvida alguma uma civilização de planeta muito, mas muito, mas muito distante.

A China comunista que este filme mostra tem mais iniquidade social do que a Inglaterra ou os demais países da Europa Ocidental na época da Revolução Industrial.

Agora, pensar que, de cada 7 seres humanos que estão neste momento pisando na casca deste planeta, 1 vive na China, dá um estranho frio na barriga.

São quatro histórias independentes, com alguns pontos em comum

Um Toque de Pecado foi inteiramente produzido na China, mas teve financiamento também de produtoras japonesas e francesas – o que por si só é algo até há pouco tempo inimaginável, já que China e Japão têm um histórico antiquíssimo de inimizade e lutas – na época da Segunda Guerra Mundial, o Japão militarista de então invadiu boa parte da China e foram praticados todos os tipos possíveis de agressão aos chineses e até aos estrangeiros que viviam no país-planeta. Belos filmes já foram feitos sobre isso, como, só para dar dois exemplos, o americano Império do Sol (1987), de Steven Spielberg, e o chinês Flores do Oriente (2011), de Zhang Yimou.

O fato de ser uma co-produção China-Japão-França talvez possa explicar, ao menos em parte, como o filme escapou da censura comunista, que, como se sabe, continua rigorosa, apesar de o país ser cada vez mais capitalista em termos de organização social, de relações entre capital e trabalho.

São quatro histórias independentes, com apenas alguns pequenos pontos em comum – tipo o personagem da segunda trama passa rapidamente pela primeira. É algo como uma estrutura multiplot em que alguns elementos de cada plot invadem o outro, dando uma certa unidade ao conjunto.

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Nisso, o roteiro faz lembrar um tanto Babel (2006), do mexicano Alejandro González Iñárritu. De uma forma mais distante, lembra um pouquinho Short Cuts (1993), do mestre Robert Altman. Remete também a um filme que é contemporâneo deste aqui, o extraordinário argentino Relatos Selvagens (2014), de Damián Szifrón.

Fico aqui percebendo cada vez mais que estes dois filmes esplêndidos, Relatos Selvagens e Um Toque de Pecado, têm muitas semelhanças. Há a coisa de cada um reunir várias histórias independentes – e há também, nos dois, a coisa da violência extrema, extremada, que explode de repente, às vezes quando já se pressentia mesmo que ela chegaria, às vezes quando menos se esperava.

Eu diria, no entanto, que os dois filmes são muito diferentes um do outro em dois aspectos.

Em primeiro lugar, o argentino Damián Szifrón encena os episódios de violência de uma forma, digamos, operística – ou circense, talvez. É uma coisa que vai num crescendo, e o tom é retumbante.

Neste filme do chinês Jia Zhangke, o tom é frio, gelado. A violência chega de imediato, como um carro esporte poderosíssimo que em menos de 60 segundos atinge velocidade insana de mais de 200 quilômetros por hora. Não há ritualização, não é nada retumbante, bombástico – é frio, gelado, seco. Talvez por isso mesmo ainda mais assustador.

Tudo está profundíssima transformação – e tudo se faz de maneira aceleradíssima

A segunda diferença grande entre esses filmes que têm muito em comum me parece ser a seguinte: o filme argentino não é – nem se preocupa em ser – especificamente argentino. É universal: mostra explosões do comportamento humano que poderiam acontecer em Praga, Nairóbi, Teerã, Osaka, San Francisco, Lima, Belo Horizonte, o escambau. O que Szifrón quer mostrar foi: isso aqui é o comportamento humano; somos capazes de reagir dessa maneira.

O filme chinês, bem ao contrário, retrata a realidade específica de um país único, exclusivo – até porque não existe nenhum outro país sequer de longe parecido com a China.

Um Toque de Pecado mostra um país em mudança, em profundíssima transformação – e tudo se faz de forma aceleradíssima. No interior profundo da China, onde até uns 60 anos atrás se vivia basicamente da mesma forma que há 400 anos, o futuro chegou em velocidade supersônica. O que era agricultura quase em sistema feudal em 1930 hoje assiste a uma explosão de instalação de indústrias, hotéis gigantescos, hidrelétricas faraônicas, mineração a céu aberto.

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Nunca houve na história do mundo transformação tão acelerada quanto a que se deu e se dá na China nos últimos 30 anos – e nunca nenhum lugar do mundo, nem mesmo os Estados Unidos no século XIX, nem mesmo o Brasil nos séculos XX e XXI, destruiu a natureza de forma tão brutal, e produziu tamanha poluição. Uma nuvem permanente de poeira parece encobrir a paisagem – e a fotografia excepcional de Yu Likwai nos faz lembrar disso o tempo todo, de maneira sutil, mas firme.

Lugares em que há menos de meio século não havia sequer luz elétrica hoje dão passagem a trens moderníssimos, e as pessoas se falam ao celular.

O filme mostra tudo isso, escancara tudo isso, ao expor uma penca de personagens atarantados, tontos, incapazes de acompanhar tanta mudança em tão pouco tempo.

Um personagem que não aceita o conformismo das pessoas a seu redor

Dahai (Wu Jiang) não consegue aceitar a aparente conformidade de seus amigos, colegas, vizinhos. Na pequena cidade (em termos chineses, em termos de país com 1,35 bilhão de habitantes) em que vive, havia uma mina, pertencente a toda a comunidade. O chefe da vila a vendeu para um jovem empreendedor, que é hoje um milionário, dono de carrões importados, das melhores marcas européias, e agora acaba de comprar um jatinho. Nada foi repassado para a comunidade.

Dahai sai pela sua cidade falando com as pessoas, reclamando desses absurdos, da corrupção que tomou conta de tudo – mas as pessoas não dão a menor importância. Reagem daquele jeito assim: ih, lá vem aquele chato reclamão reclamar de novo.

Resolve denunciar o que está acontecendo para um conhecido dele que tem cargo em Pequim, perdão, Beijing. (Não me acostumo com esse negócio de ficarem mudando os nomes dos lugares.) Escreve uma carta para o conhecido, mas, quando a moça do correio exige dele o endereço completo, e não apenas o nome de uma repartição, ele fica certo de que a funcionária está no esquema de corrupção, na folha de pagamentos do chefe da vila e do milionário.

Dahai vai surtar, e surtar feio.

Nesse primeiro dos quatro episódios, me impressionou muito, além da frieza com que o realizador mostra a forma com que Dahai surta, as seguidas referências ao chefe da vila. Não se explica quem ele é. Deve, seguramente, ser o chefe local do Partido Comunista – mas não há qualquer intenção de esclarecer quem deu a ele o poder de chefiar a vila.

O filme ainda não tem 3 minutos, e já acontece algo inteiramente imprevisto

zztoque4aEmbora o primeiro episódio seja o de Dahai, o primeiro personagem que vemos é um sujeito numa moto, numa estrada do interior. Veremos depois que ele se chama Zhou San (Baoqiang Wang).

E aqui vai um spoiler. Revelo o que acontece no comecinho do filme, mas é um spoiler.

No meio da estrada, ele é parado por três assaltantes. Pedem que ele passe o dinheiro. Ele abre o zíper do casaco, como que para pegar a carteira. Saca uma arma e mata dois dos ladrões. Um terceiro tenta fugir. O motoqueiro vai atrás com a maior calma, atira e mata.

Isso acontece antes que o filme tenha três minutos. A cena é fria, gelada. Como se fosse a coisa mais natural do mundo a vítima de uma tentativa de assalto tirar um baita revólver e matar os três assaltantezinhos pé de chinelo.

Mary levou um choque. Muitas horas depois, à noite, acordaria pensando no filme, tentaria dormir de novo, acordaria de novo pensando no filme.

O motociclista vai em frente na estrada, e passa por um caminhão que carregava tomates e tombou, deixando a carga espalhada. Diante da cena patética está parado Dahai. O motoqueiro que acabava de matar três vai sumir durante um bom tempo, enquanto acompanhamos a história desse Dahai, o sujeito que não aguenta tanta corrupção.

O motoqueiro assassino retorna à tela chegando de volta à sua cidade, onde tem mulher e um filho. É um personagem bastante misterioso. Veremos depois que é um assaltante.

O motoqueiro assaltante, Zhou San, entrará, ao fim de seu episódio, em um trem (o filme apresenta trens moderníssimos, imensos, fantásticos). Nele viaja um novo personagem, um homem que usa terno, tem jeito de profissional liberal ou no mínimo trabalhador em escritório ou banco. De qualquer forma, de classe social bem mais elevada que os dois personagens centrais dos episódios anteriores.

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Esse homem de terno vai se encontrar, num bar-lanchonete, com Xiao Yu (Tao Zhao), uma bela moça, também com jeito bem de classe média. O espectador percebe rapidissimamente que são amantes, o homem e a bela moça – embora ao se reverem não dêem sequer um beijinho, um selinho. Ela está exigindo que ele se divorcie da mulher, porque, afinal, a situação já se prolonga há muito tempo. Ele diz que começou a dar a notícia para a esposa – e insiste para que a amante o acompanhe na viagem que vai fazer em seguida.

Xiao Yu – infelizmente para ela – resolve não ir. Continua na sua cidade, onde trabalha como recepcionista num hotel que tem grande sauna e recebe muitos viajantes. Será atacada por dois homens levados pela esposa do amante – e depois ainda será vítima de assédio por dois viajantes.

O episódio de Xiao Yu, assim como de Dahai, termina em tragédia.

O protagonista do quarto e último episódio é um rapazinho bem jovem, Xiao Hui (Lanshan Luo) – e sua história também terminará em tragédia. Xiao Hui se apaixona por uma bela jovem, que trabalha num gigantesco hotel para turistas endinheirados e é, abertamente, um puteiro.

Um Toque de Pecado mostra uma China cheia de corrupção, desigualdade social, capitalismo selvagem pré Revolução Industrial, violência desregrada, impunidade – e putaria.

Mas não é apenas por isso que é uma obra-prima. Não é apenas porque é corajoso, e mostra para o mundo a realidade apavorante do país em que se aglomera um sétimo dos seres deste planeta.

É também por isso. Mas é obra-prima principalmente porque é cinema da melhor qualidade que poderia haver.

O jovem diretor Jia Zhangke parece conhecer bem o cinema ocidental

Ahnn… A questão dos nomes. O genial diretor de Lanternas Vermelhas (1991), Tempos de Viver (1994), Herói (2002), Flores do Oriente (2001), homem da minha geração, nascido em 1951, é Yimou Zhang ou Zhang Yimou? O diretor deste esplêndido filme aqui, nascido cinco anos antes de minha filha, em 1970, é Jia Zhangke, ou Zhangke Jia? A estrondosamente bela estrela é Gong Li, ou Li Gong?

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Pelo que entendo (claro que posso estar errado), é uma questão de costume, como quase tudo na vida. Na China, ao contrário do que acontece na Itália, na França, na Inglaterra, em Portugal, no Brasil, escreve-se o prenome após o sobrenome. No mundo ocidental, pré vem antes, sobre vem depois: Luchino Visconti. François Truffaut. John Schlesinger. Manuel de Oliveira. Roberto Santos.

Na China, escreve-se e fala-se primeiro o nome da família. Se eu fosse chinês, seria Vaz Sérgio. Truffaut François. Visconti Luchino. Então o IMDb, assim como, por exemplo, o livro 501 Movie Directors, respeita a tradição chinesa, e grafa Yimou Zhang, Li Gong, Chen Kaigem, Jinzhan Zhang.

Outras obras, como o Dicionário de Cinema – Cineastas, de Jean Tulard e o Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho, assim como a Wikipedia, tanto em português quanto em inglês, grafam Zhang Yimou, Gong Li, Kaige Chen, Zhang Jinzhan – e portanto Jia Zhangke.

Um Toque de Pecado é o 21º filme dirigido por Jia Zhangke, mas a relação grande inclui vários curtas e também documentários. O filme foi exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes, e ganhou o prêmio de melhor roteiro.

É de fato um roteiro soberbo.

O que me impressiona, de maneira especial, é como este filme demonstra que Jia Zhangke conhece história do cinema. Que fantástico conhecimento de filmes ele tem. Viu tudo o que de mais importante se fez no cinema do mundo inteiro – e seu filme demonstra nítidas influências de filmes ocidentais. O que é mais uma contradição da China – alguns poucos eleitos podem ter acesso a tudo que de melhor se fez no cinema do Ocidente, enquanto a maioria do povo não pode.

Mas o fato é que esse realizador conhece tudo. E fez um filmaço.

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Anotação em setembro de 2015

Um Toque de Pecado/Tian zhu ding

De Jia Zhangke, China-Japão-França, 2013.

Com Wu Jiang (Dahai), Baoqiang Wang (Zhou San), Tao Zhao (Xiao Yu), Lanshan Luo (Xiao Hui)

Argumento e roteiro Zhangke Jia

Fotografia Yu Likwai

Música Giong Lim

Montagem Matthieu Laclau e Xudong Lin

Produção Xstream Pictures, Shanghai Film Group, Bandai Visual Company, Bitters End, MK2.

Cor, 133 min

***1/2

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