Nadine Labaki é um espanto, um estupor. Seu segundo filme, E Agora, Aonde Vamos?, é totalmente diferente do primeiro, o excelente Caramelo – e tão brilhante quanto ele.
Costuma-se falar muito do pânico dos autores diante da segunda obra. Quanto maior o sucesso da primeira, maior o pânico, o medo de desapontar, de não satisfazer às expectativas, de parecer gênio de uma obra só, one trick pony.
E Caramelo, lançado em 2007, foi um grande, imenso sucesso. Passou na Quinzena dos Realizadores em Cannes; teve cinco prêmios em festivais internacionais, cinco outras indicações, foi muito elogiado e agradou ao público de diversos países. Com um orçamento de US$ 1,6 milhão, rendeu US$ 13 milhões só até julho de 2009; foi um dos filmes falados em árabe de maior bilheteria na Europa em todos os tempos.
Um sucesso desses poderia perfeitamente deixar um artista em pânico diante da sua segunda obra. Ainda mais alguém tão jovem – Nadine Labaki nasceu no interior do Líbano em 1974, tinha portanto apenas 33 anos quando Caramelo foi lançado.
Seria bastante compreensível se, na sua segunda obra, Nadine Labaki seguisse a mesma trilha da primeira. Muita gente faz, ou tenta fazer isso: se a estréia foi tão bem, por que não fazer algo bem parecido?
Pois é. Como diria Jorge quando era só Ben, mas que nada.
Não poderia haver filme mais diferente de Caramelo do que E Agora, Aonde Vamos?
Caramelo era um filme urbano – retratos de momentos do cotidiano de seis mulheres na Beirute de hoje, seus pequenos dramas, suas pequenas alegrias, frustrações, esperanças, sua sensualidade, e a maneira como cada uma delas lida com sexo. E Agora se passa num pequeno vilarejo do interior, distante do resto do Líbano, do mundo.
Caramelo não fugia das questões específicas da sociedade libanesa, um país dividido entre cristãos e muçulmanos, mas isso não era o cerne da questão. Mostrava cenas da vida de mulheres modernas, numa grande e bela cidade, a Paris do Oriente Médio. Era, como disse com brilho um leitor do IMDb, “uma espécie de Sex in the City com cérebro e realismo, sem afetação”.
E Agora vai fundo, bem fundo, muito fundo na questão da sociedade dividida entre cristãos e muçulmanos, num país que volta e meia tem lutas fratricidas, guerras civis.
Caramelo se destacava por mostrar, com suavidade, pequeninos detalhes – o modo como uma moça olhava para os joelhos de outra num ônibus, uma letra do nome luminoso do salão de beleza que caía e ninguém se preocupava em arrumar, o jeito com que uma moça mais ocidentalizada cuidava de esconder todo o corpo antes de entrar na casa da família ultraconservadora do noivo.
E Agora evita sutilezas. É forte, duro, escancarado, exagerado como um elefante numa loja de cristais.
Caramelo tinha uma narrativa sóbria, realista. E Agora é um espetáculo dramático mas feérico, que passa a mil anos-luz do realismo, do naturalismo. Aproxima-se mais de um realismo fantástico, ou simplesmente um surrealismo, uma fantasia.
Nadine Labaki fez um segundo filme totalmente distante do primeiro. Os dois só se aproximam na qualidade. Tudo, tudo é extremamente bem realizado.
Nada de estética da fome, de cinema pobre de país de quarto, quinto mundos. De jeito nenhum. A equipe que trabalhou sob a batuta da jovem diretora libanesa – e, afinal, é uma obra internacional, co-produção Líbano-França-Egito-Espanha – faz as coisas todas com o apuro técnico de uma superprodução hollywoodiana, ou bollywoodiana, ou francesa, ou inglesa.
Já nos momentos iniciais, um surpreendente, chocante, esquisito balé
A menção a superproduções bollywoodianas foi feita apenas para realçar que as superproduções do cinemão comercial são todas parecidas – seja um filme americano, indiano, francês, alemão, o que for. Mas, a rigor, E Agora tem alguma coisa de Bollywood. Não conheço muitos filmes indianos, mas sei que são produções suntuosas que não têm pudor algum em usar números musicais, danças, no meio da trama.
E Agora choca pela estúpida beleza já numa das sequências iniciais, enquanto vão rolando os créditos – em caracteres árabes e em francês. Um grupo de mulheres caminha naquela paisagem dura, seca, poeirenta, quase desértica. Estão todas vestidas de preto da cabeça aos pés. Há mulheres de véu – as muçulmanas – e sem véu – as católicas. São, todas elas, viúvas, que perderam marido e às vezes filhos nas intermináveis guerras civis. Encaminham-se para o cemitério do vilarejo – um único cemitério onde estão enterrados, de um lado, os cristãos, e, de outro, os muçulmanos, todos libaneses, todos do mesmo lugar, mortos em batalhas por um ódio milenar.
Vão caminhando, as mulheres de luto, rumo ao cemitério – e, de repente, passam a executar uma coreografia.
Como é que dizia Chico Buarque? Um balé esquisito.
Não sei, não, mas acho que Twyla Tharp, Pina Bausch, Fred Astaire, Gene Kelly ficariam também chocados com a beleza daquele balé esquisito, único, inigualável, com que a garota Nadine Labaki abre seu filme.
É impossível esquecer, por exemplo, diversos momentos da coreografia de Hair, a obra-prima de Milos Forman – como, por exemplo, os cavalos dos policiais que entram na dança, erguem as patas dianteiras e as movimentam ritmadamente ao som de “Aquarius”.
Acho que vai ser difícil esquecer o balé esquisito das mulheres de negro que homenageiam seus mortos nos conflitos sem fim do Líbano neste E Agora, Aonde Vamos?
Haverá outros momentos em que música e até uma certa coreografia entrarão na narrativa do filme. É tudo um show: as interpretações, a montagem acelerada, a música brilhante, de autoria de Khaled Mouzannar, ele também o compositor da trilha sonora de Chocolate. (além de compositor de talento, este é um cara de sorte: casou-se com Nadine Labaki.)
Naquele lugarejo isolado do resto do Líbano, muçulmanos convivem com cristãos
Uma voz em off – da própria co-autora-diretora-atriz – nos apresenta um intróito sobre o que o filme mostrará, nas primeiras sequências, antes dos créditos iniciais, em que vemos um pequeno vilarejo perdido numa região semidesértica: uma mesquita ao lado de uma igreja.
Eis o que diz o intróito:
“A história que eu conto é para todos os que quiserem ouvir. Uma história de quem jejua, uma história de quem reza, um conto sobre uma cidade solitária, com minas espalhadas a seu redor. No meio de uma guerra, dividida ao meio. Para clãs com corações partidos sob um sol ardente. Suas mãos tingidas com sangue em nome de uma cruz ou uma meia-lua. Deste lugar solitário, que escolheu a paz, cuja história é cercada por arame farpado e armas.”
Que maravilha de síntese: “Suas mãos tingidas com sangue em nome de uma cruz ou uma meia-lua”.
O vilarejo está, como já foi dito, distante do resto do Líbano, praticamente isolado, ilhado – a ponte que o ligava à vila mais próxima foi destruída numa das muitas guerras. Sobrou uma passagem bem estreita junto de um despenhadeiro, e os víveres chegam ao vilarejo carregados por uma motocicleta dirigida por dois garotões adolescentes, Roukoz (Ali Haidar) e Nassim (Kevin Abboud).
Naquele vilarejo – o nome jamais é dito; é um lugar absolutamente fictício, como Macondo de Cem Anos de Solidão –, conseguiu-se uma proeza não obtida em nenhum outro lugar do Líbano: cristãos e muçulmanos convivem uns com os outros. O padre e o ímã são companheiros, solidários, na tentativa de manter as coisas em paz.
As mulheres – tanto as muçulmanas quanto as cristãs – também se esforçam para que a convivência seja pacífica. São solidárias na dor da perde de filhos e maridos, e estão cansadas de mortantade.
O problema são os homens. Homem é um bicho muito mais imbecil que mulher – sabemos bem disso, e o filme demonstra essa verdade diversas vezes ao longo de seus maravilhosos 110 minutos. Volta e meia, por absolutamente nada, por qualquer coisa, os homens iniciam discussões, agressões verbais, brigas – e as mulheres têm que intervir, apartar.
O equilíbrio precário entre muçulmanos e cristãos vai ser ameaçado diversas vezes, ao longo da narrativa. As ameaças à frágil paz vão num crescendo. Inteligentes, sensíveis, sempre melhores do que os homens, as mulheres vão recorrer a uma arma estranhíssima, na tentativa de distrair as atenções masculinas até então só voltadas para os conflitos: convocam para o vilarejo isolado uma troupe mambembe de dançarinas russas.
Depois vão optar por algo bem mais radical.
Um amor de sonho entre a mulher mais bela e o solteirio mais cobiçado do lugar
Nadine Labaki interpreta Amale, uma viúva, mãe de um garotinho aí de uns oito anos. Há belas mulheres no vilarejo, mas Amale, dona de um bar, um café, é mais bela de todas. As mulheres do lugar, muçulmanas e católicas, estão cansadas de saber que Amale, católica, tem uma quedinha por Rabih (Julian Farhat), muçulmano, pedreiro e faz-tudo que é o solteiro mais cobiçado do lugar. Quando a narrativa começa, Rabih está, faz tempo, cuidando da pintura do café de Amale. Faz tudo com capricho, sem qualquer pressa, para prolongar sua estadia ali. Trocam olhares e cumprimentos – mas não mais que isso.
Quando estamos com exatos 15 minutos de filme, trocam juras de amor cantando uma canção popular, e dançam no café em obras, a mulher belíssima e o homem boa pinta – mas é só na imaginação deles.
A seqüência é de uma beleza espantosa.
O filme teve tremendo sucesso de bilheteria em seu país
Nadine Labaki não é do tipo pretensioso que quer fazer tudo sozinha. Trabalha em colaboração com outras pessoas. Argumento e roteiro de Caramelo são assinados por Rodney El Haddad, Jihad Hojeily e Nadine Labaki.
Argumento e roteiro de E Agora têm ainda mais mãos: são assinados por Rodney Al Haddid, Jihad Hojeily, Nadine Labaki e Sam Mounier, com a colaboração de Thomas Bidegain.
Um pouco de humildade, no lugar de pretensão, faz muito bem.
E Agora foi exibido nos festivais de Cannes, Oslo, Estocolmo, San Sebastian e Toronto; obteve seis prêmios e quatro outras indicações, inclusive a menção especial do júri ecumênico de Cannes.
O filme foi um extraordinário sucesso de público no Líbano; é o terceiro filme de maior bilheteria em seu país, depois apenas de Titanic e Avatar – os dois filmes de maior bilheteria da história do cinema.
Houve problemas com a censura em diversos países. Na versão apresentada nos cinemas libaneses, o som das cabras que invadem a mesquita teve que ser removido, segundo informa o IMDb. No Kuwait, a censura cortou várias cenas, inclusive a sequência em que as louras russas dançam em meio aos habitantes do vilarejo no café de Amale.
Um detalhe mínimo: o IMDb registra como título brasileiro E Agora Onde Vamos? – assim, sem vírgula, e com a palavra onde. O DVD lançado pela Europa Filmes usa E Agora, Aonde Vamos?
Segundo a realizadora, muitos libaneses sentem que pertencem mais a uma religião que a um país
Premiada, aplaudida, censurada, belíssima, jovem, talentosa, mais para humilde que pretensiosa, Nadine Labaki se expressa de maneira extremamente articulada, e expõe idéias ponderadas, lúcidas. Numa entrevista ao jornal El País, publicada no início de 2008, depois dos prêmios no Festival de San Sebastián e alguns dias antes da estréia de Caramelo na Espanha, diz o seguinte: “A maior parte dos filmes libaneses fala da convivência entre religiões. Bem, rodam-se três ou quatro filmes por ano (no país). Os realizadores libaneses têm uma necessidade vital de falar da guerra, tentar analisar o que acontece, os diferentes pontos de vista… Eu vi que já se havia analisado tanto que preferi dar uma visão diferente. Porque em meu país também há pessoas ardentes, com problemas como todo mundo.”
Depois o repórter pergunta a ela sobre a situação política do Líbano. Trechos da resposta: “Melhor não pensar nisso. Há uma fuga em todas as direções. Vira algo absurdo… Estamos absorvidos por uma cultura absurda. Já não entendemos nada. Nem sequer conseguimos nos unir para parar e meditar sobre uma solução. Estamos nos matando entre nós mesmos. O caos e a contradição que existem no Líbano se refletem em nosso caráter. Somos um povo contraditório, entre dois mundos, desgarrado. Nota-se isso geograficamente. Não sou fatalista, mas vivo uma dura relação de amor e ódio com a minha pátria, entre a ternura por uma gente que quer sobreviver e a raiva pelo que ocorre. Não aceito a situação, mas… Veja, terminamos de rodar o filme (em 2007) e três dias depois começou outra guerra. Tínhamos filmado num ambiente de esperança de que as coisas melhorassem, e chegou a desilusão. Fiquei no Líbano, me senti inútil e com um pouco de culpa por ter feito um filme que não falava da guerra, e sim de mulheres, de cor, de alento.”
Como se vê agora, com este sua segunda obra, tornou-se impossível para Nadine Labaki não fazer um filme sobre a eterna guerra.
“A idéia desse filme surgiu a partir de uma explosão de violência no centro de Beirute, no dia 7 de maio de 2008”, disse na realizadora, segundo o site AlloCine. “Eu tinha acabado de saber que estava grávida, e me perguntei até onde iria para proteger meu filho. E eu sei que iria muito longe. (…) Sabemos que qualquer coisa é capaz de fazer explodir esses conflitos religiosos. O filme exprime isso que muita gente sente no Líbano, de pertencer a uma religião mais do que a um país.”
O cinema, infelizmente, é muito melhor que a vida real
É uma maravilha de filme, que tem todo o direito de figurar entre essas grandes obras dos últimos tempos que celebram a possibilidade de haver paz entre os homens de boa vontade, mesmo quando a humanidade insiste em dar demonstrações de que é uma invenção que não deu certo. Me permito citar algumas delas: os israelenses Lemon Tree e A Noiva Síria, de Eran Riklis, o egípcio A Banda, de Eran Kolirin, o internacional Ó Jerusalém, de Élie Chouraqui – todos sobre questões envolvendo as lutas no Oriente Médio –, e também O Porto, do finlandês Aki Kaurismäki, Santa Paciência, do inglês Josh Appignanesi, London River, do francês Rachid Bouchareb, O Visitante, do americano Tom McCarthy.
Tantos belos filmes.
As mulheres são melhores que os homens. Os artistas são melhores e mais rápidos para criar um mundo melhor que os demais mortais. O cinema, infelizmente, é muito melhor que a vida real.
Anotação em maio de 2013
E Agora, Aonde Vamos?/Ou Halla La Weyn?/Et maintenant on va où?
De Nadine Labaki, Líbano-França-Egito-Espanha, 2011.
Com Claude Baz Moussawbaa (Takla), Layla Hakim (Afaf), Nadine Labaki (Amale), Yvonne Maalouf (Yvonne), Antoinette Noufaily (Saydeh), Julian Farhat (Rabih), Ali Haidar (Roukoz), Kevin Abboud (Nassim), Petra Saghbini (Rita), Mostafa Al Sakka (Hammoudi), Sasseen Kawzally (Issam),
Caroline Labaki (Aïda), Anjo Rihane (Fatmeh), Mohammad Akil (Abou Ahmad), Gisèle Smeden (Gisèle), Khalil Bou Khalil (Maire), Samir Awad (o padre), Adel Karam (o motorista do ônibus), Oxana Chihane (Katia), Anneta Bousaleh (Svetlana), Olga Yerofyeyeva (Anna), Yulia Maroun (Tatiana), Oksana Beloglazova (Olga)
Argumento e roteiro Rodney Al Haddid, Jihad Hojeily, Nadine Labaki e Sam Mounier, com a colaboração de Thomas Bidegain
Fotografia Christophe Offenstein
Música Khaled Mouzannar
Montagem Véronique Lange
Produção Les Films des Tournelles, Pathé, Les Films de Beyrouth, United Artistic Group, Prima TV, France 2 Cinéma. DVD Europa Filmes.
Cor, 110 min
***1/2
Eu fiquei muito feliz ao ver primeiramente a coragem ousada ,e a determinação dessa moça ao relatar e mostra a realidade no libano e o convívio entre os cristão e muçulmanos
E mostrar o real conflito entre as culturas diferentes …
A produção está todos de parabéns ,fiquei feliz ao ver os detalhes! 🙂