Durante 110 minutos, Lola carrega o espectador para dentro da mais profunda miséria material que pode haver. A vida da Antonio Ricci, o protagonista de Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica, chega a parecer quase um mar de rosas, comparada às de Lola Sepa e Lola Puring, as personagens centrais do filme do diretor filipino Brillante Mendoza.
“Lola” significa avó no idioma filipino.
A primeira das avós que o filme mostra é Sepa (Anita Linda, na foto abaixo), uma senhora que aparenta bem mais de 70 anos, e caminha, com um neto, garoto de uns cinco, seis anos, pelas ruas superpovoadas, sujas e cheias de mendigos e camelôs de Manila. A câmara – de mão; sempre de mão – segue os dois pelas ruas. Lola Sepa compra um vela de um camelô, entra numa grande igreja, mas não fica nela. Chove, e o guarda-chuva de Lola Sepa e o vento travam uma longa batalha em que este último parece sempre vencedor.
A seqüência é longa – todas as seqüências do filme serão longas -, e a impressão que se tem é de Lola Sepa caminha a esmo, sem saber muito bem para onde está indo. Mas veremos que ela sabe, sim. Encontra o local em que seu neto havia sido esfaqueado até a morte, no dia anterior, e ali, após diversas tentativas infrutíferas, o vento apagando um a um seus fósforos, acende a vela.
Depois Lola Sepa e o netinho entram numa van que funciona como uma espécie de lotação. Lá dentro, uma moça mais bem vestida fala o tempo todo ao celular; conseguiu um emprego, está indo para o primeiro dia de trabalho.
De repente, um dos passageiros, um pivete, pega a bolsa dessa moça, desce da van e sai correndo. A moça vai atrás dele, gritando para as pessoas pegarem o ladrão, e, por um momento, a câmara, que até então seguia os passos de Lola Sepa com um cão fiel, abandona a velha senhora, para mostrar a correria na rua, diversas pessoas pegando o ladrão, a moça recuperando sua bolsa.
Lola Sepa vai se encontrar com a filha Ditas (Tanya Gomez) em uma loja de serviço funerário, para escolher o caixão para o neto morto. A seqüência na funerária é tremendamente longa – todas as seqüências do filme são longas.
O dia-a-dia duríssimo, doloroso, de duas avós
A partir daí, filme mostrará, em detalhes, em longas seqüências, repito mais uma vez , o duríssimo dia-a-dia de Lola Sepa, mulher pobre, miserável, que mora numa espécie de favela da periferia da Grande Manila, num lugar em que a água da chuva forma um canal que substitui as ruas, numa espécie de Veneza dos despossuídos de tudo.
Cada ação é difícil, é um martírio, para aquela senhora idosa, paupérrima: a ida à delegacia para registrar a queixa, a ida a uma corte de Justiça, a recepção do caixão do neto morto, que chega numa canoa.
Paralelamente ao dia-a-dia mortificante de Lola Sepa, o filme passa a mostrar, em detalhes, em longas seqüências, o penoso, duríssimo, mortificante dia-a-dia de Lola Puring (Rustica Carpio, na foto), a avó do rapazinho preso sob a acusação de ter esfaqueado o neto da outra para roubar-lhe o telefone celular.
Lola Puring cuida de um parente muito doente, e sobrevive vendendo com outro neto verduras numa banca de camelô numa rua apinhada de bancas de camelô. O lugar em que vive é tão miserável quanto o casebre da família de Lola Sepa.
A avó do rapaz assassinado precisa levantar dinheiro para o funeral. A avó do rapaz acusado do assassinato precisa levantar dinheiro para tentar um acordo com a família da vítima: pelas leis filipinas, segundo mostra o filme, se a família da vítima retirar a queixa, o assassino poderá ser posto em liberdade.
Nas Filipinas de hoje como na Itália do neo-realismo
A viagem que Lola obriga o espectador a fazer pela mais profunda miséria material que pode haver é penosa, dura, apavorante.
A menção feita lá em cima a Ladrões de Bicicleta, o clássico de Vittorio de Sica de 1948, não é gratuita. Lola faz lembrar o neo-realismo italiano, em seu despojamento, na crueza com que escancarava a vida dos pobres, dos destituídos, na Itália arrasada pela Segunda Guerra Mundial.
Como nos filmes do neo-realismo italiano, a imensa maioria das cenas de Lola foi filmada nas ruas, e mostra a miséria real das ruas, sem a beleza estilizada dos estúdios.
Enquanto via o filme, fiquei pensando que estava vendo a obra de mais uma cinematografia que segue a estética criada pelos neo-realistas italianos: o diretor filipino Brillante Mendoza faz hoje o que fizeram os cinemas inglês, francês e brasileiro, nos anos 1950 e 1960, o cinema independente americano a partir do final dos anos 1960, o cinema iraniano dos anos 1990.
Vejo no IMDb que o diretor Brillante Mendoza diz pertencer a um grupo de realizadores filipinos que criou um tipo de “new wave”, de nouvelle vague. Um dos mandamentos do cinema novo filipino – diz o IMDb – é o uso exclusivo de câmaras de mão digital, que tornam a produção mais barata.
Não se reinventa a roda. Nos anos 1960, os realizadores do cinema novo usavam a expressão uma idéia na cabeça e uma câmara na mão.
Pelo jeito, esse cinema novo filipino bebeu na fonte do neo-realismo italiano com uma passagem pelo Dogma dos dinamarqueses dos anos 1990: câmara, só de mão; iluminação, só a natural; estúdio, nunca; cenários, só os das ruas.
As duas atrizexs interpretam as avós de maneira nua, crua, despojada
Anita Linda e Rustica Carpio interpretam as duas avós da história de Lola de uma maneira tão nua, crua, despojada, que imaginei que as duas poderiam ser – como era Lamberto Maggiorani, que De Sica escolheu para fazer o protagonista de Ladrões de Bicicleta – não profissionais, gente do povo, sem experiência dramática.
Imenso engano. São, ambas, atrizes experientíssimas.
Anita Linda, que faz a Lola Sepa, a avó do rapaz assassinado, tem quase 300 títulos em uma filmografia iniciada ainda nos anos 1940. Estava, em 2009, ano do lançamento de Lola, com 85 anos de idade.
Rustica Carpio, que faz a Lola Puring, a avó do rapaz acusado do assassinato, estava com 79 anos. Tem mais de 40 filmes no currículo. Interpreta da maneira mais crível possível essa mulher miserável, mas tem um PhD em Literatura pela Universidade de Santo Tomas-Manila.
A miséria nua e crua que Lola nos mostra parece ter sido ricamente estudada para parecer tão nua e crua.
Lola obteve 16 prêmios e 18 outras indicações em diversos festivais internacionais em que foi apresentado. Participou inclusive da mostra competitiva de Veneza no ano de seu lançamento, 2009.
Anotação em janeiro de 2013
Lola
De Brillante Mendoza, Filipinas-França, 2009
Com Anita Linda (Lola Sepa), Rustica Carpio (Lola Puring),
e Tanya Gomez (Ditas), Jhong Hilario (Bebong), Ketchup Eusebio (Mateo), Benjie Filomeno (Domeng), Bobby Jerome Go (Jay Jay), Geraldine Villamil (Virgie)
Roteiro Linda Casimiro
Fotografia Odyssey Flores
Música Teresa Barrozo
Montagem Kats Serraon
Produção Swift Productions, Centerstage Productions. DVD Lume Filmes.
Cor, 110 min
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