[Rating:4]
Anotação em 1997: Uma pérola. Um dos poucos filmes dirigidos por Ismail Merchant, que em geral apenas produz, basicamente no tripé Ivory-Merchant-aquela indiana de nome complicado, Ruth Prawer Jhabvala.
Acabei de ver o filme e logo depois vi que ele mesmo, Merchant, é indiano de nascimento, de Bombaim, 1936, 14 anos mais velho que eu, portanto; fez administraçào de negócios na Universidade de Nova York, de onde deve ter virado executivo financeiro pra cuidar da produção de tantos grandes filmes do tripé. Agora, aos 60 anos de idade, dirigiu esse filme forte, elegante, sério sem ser sisudo, denso sem ser chato, humanista a não mais poder, levemente ambicioso e painelesco do século (quem, aos 60 anos de idade, tendo produzido filmes esplêndidos como Howards End e Vestígios do Dia, e sido quatro vezes indicado ao Oscar, não tentaria ser levemente ambicioso?), mas ao mesmo tempo focando o íntimo, o particular, o pessoal, o intransferível. Ele pega do nazismo ao racismo da Europa dos anos 90; pega as diferenças culturais – a velha Europa, a jovem América – e de faixa etária; pega a União Européia tentando enfrentar o imperialismo cultural americano, a anti-equação qualidade da arte versus o consumo de massa da arte, o cinema de qualidade versus o cinema big indústria feito pelas big corporações.
Começa numa galeria de arte em Nova York, onde, entre uma exposição de quadros, um conjunto de TVs mostra um documentário-vídeo, que atrai a atenção de uma mulher de mais de 60 anos, Adrienne Mark (Jeanne Moreau). Um jovem se aproxima dela, e a reconhece em algumas das seqüências exibidas no documentário. Nas telas da TV, aparecem imagens de uma demonstração nazista, e a senhora se sente mal.
O espectador saberá, em seguida, que Adrienne Mark é uma famosíssima escritora, francesa de nascimento, nos Estados Unidos há décadas; um de seus livros, com o título absolutamente sugestivo “Je m’appele France”, sobre uma mulher sensual, símbolo do próprio país, virou filme na década de 60, fez um tremendo sucesso entre os intelectuais, e teve uma refilmagem americana na década de 70, absolutamente mais explícita na carga erótica. O espectador também saberá, rapidamente, que Adrienne Mark tem uma história trágica: é filha de uma judia chamada Judith, dona de uma casa de alta costura chamada Madeleine, que foi denunciada à Gestapo na Paris ocupada de 1943, presa e morta.
Adrienne, o filme não mostra como – e o filme, propositadamente, não mostra muitos detalhes -, foi muito jovem para os Estados Unidos, tornou-se escritora, fez sucesso e fortuna, mora num belo apartamento em Nova York, cheio de obras de arte e objetos finos e caros. Mas jamais conseguiu se livrar das lembranças da infância; sonha obsessivamente com a mãe, e com o amante dela, um tal Fan-Fan, para o nome de quem a mãe passou a escritura do apartamento amplo em Saint Germain de Près, para evitar que os nazistas o tomassem; Adrianne tem a certeza de que foi o amante da mãe que a denunciou aos alemães.
Bem no início da ação, o espectador fica sabendo que Fan-Fan morreu, e que o apartamento iria a leilão em breve. Adrianne está vendendo todos os seus bens para ter dinheiro para comprar de volta, no leilão, o apartamento da mãe – o retorno a Howards End, o retorno à casa da infância, o retorno à história pessoal, o resgate da infância, o resgate do que o nazismo tirou da mãe e portanto dela também.
É um pouco estranho ver Jeanne Moreau falando em inglês; no começo, há um certo incômodo. Mas as cenas dos pesadelos dela, e das visões dela mesmo acordada, misturando cenas de sua juventude na Paris ocupada pelos nazistas em 1943 com a Nova York de 1996 são esplêndidas.
Adrianne tem um querido amigo em Nova York, um vienense chamado Willy, que fala uma frase brilhante neste filme de muitos diálogos brilhantes: “Eu não conseguiria mais, hoje, entender a Europa dos nossos pais”.
Adrianne tem também uma governanta, uma negra gorda, bondosa, inteligente, sensível, Milly, que cantou com Wilson Picket, ganhou disco de ouro, e tira de uma música do repertório dele um slogan de vida: 99,5 não é suficiente, o bom é 100; a relação entre as duas é riquíssima; são amigas, uma admira a outra, uma é agradecida à outra, há contato físico de carinho.
Adrianne tem duas opções de vender tudo o que tem para em Paris comprar de volta o apartamento onde nasceu e cresceu: ou ir vendendo pouco a pouco as obras de artes e objetos de valor, em leilões, ou vender o apartamento inteiro, como está. Resolve dar de presente para a governanta Milly o objeto de maior valor: um grande quadro de um pintor famoso, um retrato dela própria quando jovem. O leiloeiro reclama, e isso faz com que Adrianne resolva vender o apartamento inteiro para um casal de novos ricos texanos, interessados em viver no lugar onde vivia a escritora famosa – o consumismo americano ao extremo.
Há uma cena que define o estilo sutil de Merchant, que é também o de seu colega James Ivory – entre o panfleto e a sutileza, eles sempre optam pela sutileza. No táxi do aeroporto para o centro de Paris, o rádio fala de uma agressão de um comerciante contra um imigrante, numa cidade do interior. Adrianne se mostra estupefata com a violência; o motorista tem a certeza de que a mulher está irritada com a imigração, e passa a falar mal dos imigrantes, até que, num sinal, topa com uma negra, e sai do táxi para xingá-la; Adrianne não faz discurso, apenas sai do táxi sem pagar.
Haverá, depois, mais referências explícitas a racismo, sempre num tom cordial e sutil, nunca abertamente panfletário. De fato, o estilo de Merchant, assim como o de Ivory, é sempre progressista, sempre pela causa justa, mas em tom leve, nunca estridente.
Adrianne vai para a casa do ex-marido, um inglês rico e inteligente que eventualmente tem uma filha de outro casamento, que deixa a casa do pai ao saber que estaria chegando a ex-mulher. Reencontra amigos: um velho intelectual, que dirigiu a primeira versão do filme baseado em seu livro (interpretado pelo velho Jean-Pierre Aumont, que já era velho quando comecei a ver filmes, 35 anos atrás), e seu filho, que está negociando com uma jovem produtora americana (Sean Young) uma refilmagem de Lola, sua obra-prima (uma referência e uma reverência a tantos Lolas europeus, de Max Ophuls ao grande Jacques Demy, além, é claro, de Fassbinder). A americana, é claro, quer fazer um filme de apelo comercial forte, e os franceses querem que Adrianne a convença a fazer algo sério, melhor.
Adrianne irá, com o tempo, exorcizar os fantasmas do passado, ao mesmo tempo em que se se envolverá com os fantasmas atuais – o nazismo acabou, mas o racismo e a intolerância dominam a Europa hoje, dirá o indiano Merchant.
Um grande filme.
O Regresso/The Proprietor
De Ismail Merchant, Inglaterra-França, 1996.
Com Jeanne Moreau, Sean Young, Sam Waterston, Jean-Pierre Aumont
Roteiro Jean-Marie Besset e George Trow
Música Richard Robbins
Cor, 113 min
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