Não dá para saber de onde os distribuidores brasileiros tiraram o título Um Herói do Nosso Tempo para o filme que Radu Mihaileanu lançou em 2005, Va, vis et deviens, uma co-produção de França, Israel, Bélgica e Itália.
Va, vis et deviens. Vá, viva e… Bem, de fato não é fácil achar a melhor tradução para o imperativo do verbo “devenir” no sentido em que ele é usado no filme. Torne-se, faça-se, transforme-se, venha a ser.
Os ingleses viram o filme como Live and Become – apenas foi tirada fora a primeira ordem original, o “vá”. Em Portugal, foi Vai e Vive; na Itália, Vai e Vivrai; na Espanha, Vete y Vive.
Em quatro línguas, optou-se por títulos bem parecidos com o original francês. As versões das línguas latinas ainda tiveram a vantagem de preservar a suave aliteração do título original, a repetição do som do v, que faz lembrar o “veni, vidi, vici”, vim, vi, venci, de Júlio César.
Mas os brasileiros são criativos. Inventaram Um Herói do Nosso Tempo. Foram originais, criativos, sacaram um título que só existe no Brasil, como a jabuticaba e a nova tomada elétrica da ABNT. Mas quer saber? Apesar de fugir muito do original, não é de todo um mau título.
Porque Va, vis et deviens é de fato um épico do nosso tempo. Um épico, uma epopéia, como aquelas que Hollywood fazia antigamente, em geral em cima de histórias bíblicas, ou de grandes episódios históricos, como Os Dez Mandamentos, Ben-Hur, El Cid.
Se os exemplos citados forem um tanto assustadores, posso então lembrar os épicos mais recentes de Sir David Lean, o cineasta por excelência dos grandes afrescos, da Grande História que se mistura com a pequena história pessoal dos personagens, A Ponte do Rio Kwai, Lawrence da Arábia, Doutor Jivago, A Filha de Ryan, Passagem para a Índia. Ou Exodus, de Otto Preminger.
Taí. Acho que o filme de Radu Mihaileanu é um épico de nossos dias, uma espécie assim de mistura das epopéias do mestre Lean com o Exodus de Preminger.
São fatos ocorridos a partir de 1985, mas que, embora recentes, são pouco conhecidos
Trata de acontecimentos muito recentes, mas que, apesar disso, não são muito conhecidos, muito falados: os judeus etíopes, negros, os falashas, que, segundo a tradição, são descendentes do Rei Salomão e da Rainha de Sabá. Em 1985, o governo israelense, com o apoio dos Estados Unidos – é o que diz um narrador bem no início do filme, para situar o espectador, para apresentar o contexto histórico –, organizou uma operação, planejada pelo Mossad, o serviço secreto deles, para retirar da África multidões de falashas.
Milhares e milhares deles saíram da Etiópia natal e percorreram centenas de quilômetros, a pé, até um campo de refugiados no Sudão, então um país muçulmano tradicionalista, apegado às regras rígidas da sharia. Na caminhada, no trajeto, 4 mil pessoas morreram – de fome, sede, cansaço, ou atacadas por bandidos. Mas aviões israelenses conseguiram levar 8 mil para Jerusalém.
Uma epopéia imensa, descomunal, que, evidentemente, tem semelhanças com a libertação dos judeus do Egito de Ramsés, e sua caminhada, chefiada por Moisés, rumo à Terra Santa. A operação do Mossad teve, obviamente, o nome de Moisés. E tem semelhança também com a épica viagem de judeus no navio Exodus rumo à Palestina, narrada por Leon Uris em seu cartapácio e levado à tela por Otto Preminger.
Um menino morre de fome nos braços da mãe. Outro menino será levado por ela para Israel
Radu Mihaileanu, judeu romeno, radicado na França há décadas, criou sua ficção a partir desses fatos históricos de 1985 não amplamente conhecidos – o resgate e a ida para Israel de milhares de falashas.
Depois que a voz do narrador apresenta os principais fatos históricos, enquanto vemos fotos da época, a ação começa num campo de refugiados.
Uma mulher perde o filho de nove anos – o menino morre de fome nos braços dela. Chama-se Hana (Mimi Abonesh Kebede), veremos depois.
À noite, os falashas, os judeus etíopes, são colocados em fila para embarcar nos aviões que os levarão para Israel.
Outra mulher, cujo nome jamais saberemos (interpretada por Meskie Shibru Sivan), ordena ao filho que vá para a fila. O garoto, ele também de nove anos, como o que acabava de morrer, não quer ir, não quer deixar a mãe. Ela é firme, e repete a ordem várias vezes: “Vá”. Depois ela dá três ordens numa frase só:
– “Vá, viva, e transforme-se.”
Fala lá na língua deles, é claro. As legendas do DVD usaram “transforme-se” para o último dos imperativos. Poderia ser torne-se, faça-se, venha a ser. Poderia ser cresça e apareça.
Embora sem vontade, embora contra a vontade, o garoto vai. Encaminha-se para a fila dos falashas. Hana, a mulher que naquele dia havia perdido o filho, segura a mão dele.
No momento de passar pelo guarda que controla a fila, alguém a reconhece, e questiona – mas o filho dela não havia morrido? O médico do acompamento intervém, diz que não, que conseguiu salvar o filho de Hana.
E ela embarca no avião rumo a Israel, uma judia etíope, levando como se fosse seu filho um garoto etíope não judeu.
O filme narra a gigantesca epopéia do garoto rebatizado como Schlomo, até a idade adulta
Este é o iniciozinho da gigantesca epopéia do garoto que passará a usar do nome do outro, o morto – Salomão, Schlomo.
O épico de Radu Mihaileanu, que dura 140 minutos, acompanhará Schlomo até a vida adulta, já nos anos 2000. O protagonista é interpretado por três diferentes atores: Moshe Agazai (ele criança), Moshe Abebe (na adolescência) e Sirak M. Sabahat (na idade adulta).
É uma epopéia gigantesca, com muitos acontecimentos surpreendentes – e, como são surpreendentes, não teria sentido revelá-los aqui.
Mikhaileanu, com a colaboração de Alain-Michel Blanc (que voltaria a ser co-roteirista do realizador nos seus dois filmes seguintes, O Concerto, de 2009, e A Fonte das Mulheres, de 2011), conseguiu, com brilhantismo, unir a história pessoal de Schlomo a muitos fatos da história conturbada de Israel. Assim, o espectador vê, só para dar alguns exemplos, dias de atentados suicidas em Jerusalém, dias de medo de ataques com bombas venenosas, e, pela TV, a assinatura dos acordos de Oslo, nos jardins da Casa Branca, com Bill Clinton entre Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, em 1993. O assassinato de Rabin também é citado.
O diretor não esconde hora alguma suas opiniões sobre a política de Israel. Muito ao contrário. É abertamente anti-conservadores, anti-direitistas, anti-expansão das colônias em territórios palestinos. É pró-acordos que levem à paz. Contra, portanto, as diretrizes dos governos israelenses dos últimos muitos anos.
“Só ligo para Deus quando preciso. Nunca para perguntar como ele vai”
Como não poderia deixar de ser, fala-se muito de religião, no filme. Lá pela metade da narrativa, o avô de criação de Schlomo (interpretado por Rami Danon) vai visitar o neto, que está passando uma temporada num kibutz, o mesmo em que ele, o avô, um velho esquerdista, passara muitos anos. Na hora da despedida, há um diálogo que fiz questão de anotar.
Schlomo: – “Papy, você acredita em Deus?”
Papy: – “Quando meus pés doem. Ou quando há uma guerra aqui, ou em outro lugar. Como qualquer pessoa de esquerda, eu acho. Não sou muito gentil com ele. Só ligo para ele quando preciso. Nunca para perguntar: ‘Como vai?” Nunca uma ligação desinteressada.”
Uau. Uau, meu! Puta que o pariu, que beleza de fala.
Um realizador com uma trajetória desconcertante – e grandes filmes, sempre
A gente deveria ver os filmes em ordem cronológica, na ordem em que eles foram feitos. Seria mais fácil compreender a evolução do realizador, os caminhos que sua obra vai tomando.
Infelizmente, não foi assim que vi os filmes de Radu Mikhaileanu. Sim, vi primeiro Trem da Vida, de 1998. Aí pulei o filme seguinte, este Um Herói do Nosso Tempo, que só vi agora, depois de ter visto O Concerto, de 2009, e A Fonte das Mulheres, de 2011, e de ter revisto Trem da Vida.
É um tanto desconcertante a trajetória do realizador. No filme de 1998 ele optou por uma narrativa que fugia inteiramente da lógica realista, naturalista – é um filme surreal, fantástico. Em seguida, em 2002, fez um filme para TV que não conheço, Les Pygmées de Carlo, para, em 2005, lançar este Um Herói de Nosso Tempo, que, ao contrário de Trem da Vida, tem uma narrativa clássica, realista.
Aí, no filme seguinte, O Concerto, voltou a flertar com o fantástico, o quase surreal. Para, depois, fazer outra vez um filme mais sério, mais sisudo, A Fonte das Mulheres – embora com pequeninas doses de humor e do fantástico, e repleto de canções.
Neste Um Herói do Nosso Tempo, não há espaço para magia, sequer para humor. É tudo absolutamente sério. Às vezes, é tão sério que beira um pouquinho a grandiloqüência, e até o sentimentalismo.
É só uma constatação. Não é um ataque ao filme – que é muito, muito bom.
Na verdade, tendo visto agora um quarto belo filme dele, fico pensando que Radu Mikhaileanu é um dos grandes realizadores do nosso tempo.
Uma trilha estupenda de Armand Amar, belas interpretações, em especial de Yaël Abecassis e Roschdy Zem
A trilha sonora é de Armand Amar, que também compôs a trilha de A Fonte das Mulheres. E, como aquela, esta aqui é uma beleza, uma maravilha. Amar nasceu em Jerusalém e foi criado no Marrocos. É autor de 36 trilhas. De maneira fascinante, já compôs para diretores árabes e judeus; além de Mikhaileanu, criou melodias para filmes de Costa-Gavras, Rachid Bouchareb, Julie Gavras.
Para este Um Herói do Nosso Tempo, criou melodias belíssimas, profundamente tristes, em que pontua o oud, o instrumento árabe milenar próximo do alaúde.
É necessário registrar também que são ótimas as interpretações de Yaël Abecassis e Roschdy Zem, como o casal de esquerdistas que adota o pequeno Schlomo. Roschdy Zem, mais um de tantos atores e atrizes franceses de ascendência africana, eu já conhecia de outros carnavais: ele está em Má Fé, Dias de Glória/Indigènes, A Garota do Mônaco .
Já essa beleza que é – como mulher e como atriz – Yaël Abecassis, eu não conhecia. Falha minha. Vejo que ela fez filmes importantes, bem falados, que eu não vi ainda, como Kadosh, de Amos Gitai, por exemplo.
Ela está ótima. E, além disso, acho que o personagem dela é o mais bem construído de todos.
Ah, sim, e é preciso registrar também: o zoom da última tomada é antológico. De aplaudir de pé como na ópera.
Va, vis et deviens ganhou nove prêmios e teve outras seis indicações. Exibido no Festival de Berlim, levou de lá três prêmios. Na França, ganhou o César de melhor roteiro, e teve ainda a indicação para os troféus de filme, direção e trilha sonora.
Um belo filme. Radu Mikhaileanu é grande.
Anotação em abril de 2012
Um Herói do Nosso Tempo/Va, vis et deviens
De Radu Mihaileanu, França-Israel-Bélgica-Itália, 2005
Com Moshe Agazai (Schlomo criança), Moshe Abebe (Schlomo adolescente), Sirak M. Sabahat (Schlomo adulto), Yaël Abecassis (Yael), Roschdy Zem (Yoram), Yitzhak Edgar (Le Qès Amara), Roni Hadar (Sara), Rami Danon (Papy), Mimi Abonesh Kebede (Hana, a mãe judia etíope), Meskie Shibru Sivan (a mãe de Schlomo)
Roteiro Radu Mihaileanu e Alain-Michel Blanc
Argumento Radu Mihaileanu
Fotografia Rémy Chevrin
Música Armand Amar
Produção Elzévir Films, Oï Oï Oï Productions, Cattleya,
K2 SA, Transfax Film Productions, France 3 Cinéma. DVD Art Films.
Cor, 140 min
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Parece um filme bem interessante, mas o que me convenceu mesmo a vê-lo foi o diálogo entre Schlomo e seu avô, que você narrou. Sem dúvida já entrou para a lista de downloads! Enfim, conheci o site agora e estou adorando os textos e os filmes que aparecem por aqui, que são de uma variedade incrível. Parabéns!