Anotação em 2011: Antes Que o Mundo Acabe, da diretora gaúcha Ana Luiza Azevedo, é um filme delicado, gostoso, simpático, agradável, com várias qualidades. Fala sobre as agruras da adolescência, os pequeninos e os grandes problemas que, para os adolescentes, são sempre gigantescos, ciclópicos, avassaladores.
A ação se passa (e aí já vai uma característica que torna o filme diferenciado) em uma cidadezinha pequena, daquelas quase rurais, que têm fim logo ali – e, de bicicleta, os garotos rapidamente saem da cidade e já estão no campo, na beira de um rio em que nadam, que contemplam, e onde jogam pedrinhas para ricochetear na água – ou então nos barcos que às vezes passam cheios de outras crianças ou adolescentes.
Não é comum haver filmes brasileiros passados em cidades pequenas do interior.
A cidade – nos informa a narradora, a garotinha Maria Clara (Caroline Guedes, na foto abaixo), aí de uns oito anos de idade – se chama Pedra Grande, à beira do Rio Caí, não muito longe de Caxias e de Porto Alegre. Mas não adianta procurar pela cidade no Google Maps ou em outro lugar qualquer – Pedra Grande é uma cidade fictícia, essa bela maneira de se dizer que poderia ser qualquer pequena cidade do Rio Grande do Sul.
Maria Clara conta logo para o espectador que o principal personagem da história é Daniel (Pedro Tergolina, à esquerda na foto acima)), seu irmão mais velho, de 15 anos. A rigor, meio-irmão, como veremos depois – e como a própria Maria Clara vai repetir algumas vezes.
Daniel, informa Maria Clara, é um sujeito irritado com a vida. Está sempre irritado – entra em casa, não cumprimenta ninguém e se tranca no quarto. Antônio, o pai (Murilo Grossi), explicará para Maria Clara que é coisa da idade, os adolescentes são assim, dados a súbitas mudanças de humor.
As primeiras palavras da pequenina narradora se referem à Tailândia, e, entremeadas com as imagens de dois garotos e uma garota andando de bicicleta pela cidadezinha gaúcha, vemos um envelope sendo levado de uma selva tailandesa em uma longa viagem até o correio mais próximo.
Dois garotos e uma garota – um jovem triângulo amoroso
Os três garotos que andam de bicicleta, saem da cidade, andam por campos gramados e vão até as margens do Rio Caí são Daniel, seu maior amigo, Lucas (Eduardo Cardoso), e sua namoradinha, Mim (Bianca Menti).
Daniel, Lucas e Mim passeiam de bicicleta pelos campos assim como Jules, Jim e Catherine, os personagens do filme símbolo de François Truffaut. Em pouco tempo veremos que, assim como Catherine se divide entre Jules e Jim, também Mim se dividirá entre os amigos Daniel e Lucas.
Na margem do Rio Caí, depois de entrarem n’água, só os dois, Daniel e Mim ficarão conversando. No meio de um beijo, Mim dirá que a coisa não está funcionando bem – quer um tempo. Não vai demorar muito para que Daniel (assim como o espectador) fique sabendo que, durante esse tempo, Mim vai namorar Lucas.
Ao saber que a namorada agora está namorando seu melhor amigo, Daniel terá um ataque de fúria, e quebrará muita coisa no laboratório de química do colégio em que os três estudam. Lucas é o monitor da aula de química, é o encarregado de tomar conta da sala. Este será um problema de fato grande para Daniel e para Lucas.
E, além da dor de amor, e do grande problema com o vandalismo no laboratório de química da escola, Daniel ainda terá um outro dos de fato gigantescos: após 15 anos de silêncio absoluto, seu pai, ele também Daniel (Eduardo Moreira), um fotógrafo idealista, sonhador, aventureiro, hoje queimando em febre de malária numa selva da Tailândia, resolve aparecer na vida do filho, enviando cartas e mais cartas, cheias de fotos feitas por ele nas andanças intermináveis ao redor do mundo.
Uma garotinha que rouba a cena – e uma fotografia espetacular
Uma das melhores coisas de Antes Que o Mundo Acabe é a garotinha Caroline Guedes, que interpreta a irmãzinha mais nova de Daniel. Ela é a melhor atriz do filme, e rouba todas as cenas em que aparece. A personagem é deliciosa – inteligente, sabida, esperta, uma graça –, e os diálogos escritos para ela são os mais interessantes do filme.
A fotografia, assinada por Jacob Solitrenick, é de uma competência extraordinária, extasiante. Além da qualidade precisa, maravilhosa, de todas as imagens, a diretora Ana Luiza Azevedo e Solitrenick ainda inventaram uma sacada não menos que brilhante, que eu nunca tinha visto na vida – uma forma engenhosa, plasticamente lindíssima, de paralisar, congelar parte do quadro – como se fossem as fotos tiradas por Daniel pai – enquanto o resto do quadro permanece em movimento. O recurso é utilizado duas vezes, e é de babar, de aplaudir de pé como na ópera.
Há uma pequena invencionice que me deixou encantado – logo eu, que ando cada vez menos chegado a invencionices. Mas é estupidamente bem feito, e aí não tem jeito, é para se elogiar. É excelente o momento em que Daniel, ressaqueado, amargurado, vai para o computador, e a câmara focaliza seu rosto em close-up, iluminado pela luminosidade da tela do computador. É como se a câmara estivesse logo atrás da tela do computador – Daniel digita uma mensagem ao pai, e vemos as letras ao contrário, como se num espelho, já que a câmara está atrás da tela, a câmara é como os olhos da tela.
Um belo criativol.
Na viagem à capital da nação gaúcha, sequências maravilhosas
As sequências da viagem desse triângulo amoroso à lá Jules et Jim até Porto Alegre chegam a ser emocionante, desde as belíssimas tomadas no ônibus – os três com as caras para fora das janelas, abrindo a boca para comer ar, os três sentados com as perninhas para a frente, enquanto vemos a paisagem adiante do ônibus – até a passagem deles pela capital da nação gaúcha, as ruas apinhadas de gente, o passeio pela Casa de Cultura Mário Quintana, pelo viaduto sobre a Borges de Medeiros.
É, talvez, o ponto mais alto do filme, essas seqüências na metrópole daquele país ao Sul de Santa Catarina. A alternância da alegria dos três garotos, depois o contentamento de Daniel em receber de presente material de fotógrafo que pertencera a seu pai, com a deprê que vem logo depois é uma bela definição de adolescência, da ciclotimia adolescente – e da ciclotimia da própria vida.
Um filme premiado, uma diretora estreante em longa mas experiente
Antes que o Mundo Acabe amealhou um bando de prêmios. No 2º Festival de Paulínia, de 2009, levou os prêmios de melhor filme (prêmio da crítica), direção, fotografia, direção de arte, música e figurino. Na 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de 2009, levou o Prêmio Itamaraty como melhor filme brasileiro. No 19º Divercine – Festival Internacional de Cinema para Crianças e Jovens de Montevidéu, em 2010 , ganhou o Grande Prêmio “Guri”, melhor longa de ficção, melhor filme de diretor estreante, e o Prêmio do júri especial. No 15º Schlingel – Festival Internacional de Cinema para Crianças e Jovens, em Chemnitz, Alemanha, em 2010, levou o Grande Prêmio do júri – melhor filme juvenil da competição.
Foi ainda o melhor filme brasileiro de 2010 segundo a Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).
Gaúcha de Porto Alegre, nascida em 1959, Ana Luiza Azevedo trabalha em cinema desde 1984 – e desde 1989 com Jorge Furtado, o grande diretor gaúcho. Foi assistente de direção de Furtado no famosérrimo (e excelente) curta Ilha das Flores (1989), em O Homem que Copiava (2003), e Meu Tio Matou um Cara (2005).
Não é à toa, portanto, que Jorge Furtado é um dos quatro que assinam o roteiro, ao lado da própria Ana Luiza Azevedo e mais Paulo Halm e Giba Assis Brasil, este último o autor da montagem do filme.
Ana Luiza é autora de curtas de ficção – Dona Cristina Perdeu a Memória (2002), Três Minutos (1999) e Barbosa (1988) – e de documentários – Ventre Livre (1994), Olho da Rua (2002) e O Grão da Imagem (2007). Dirigiu programas de televisão para campanhas eleitorais de 1992 a 2000 do PT. Ninguém é perfeito.
Um filme que merece ser visto
Não é, na minha opinião pessoal, um grande filme. Vi muitos defeitos no roteiro, nas interpretações, na própria história (me pareceu que há muitos furos, e também uma certa pretensão exagerada, ao querer falar dos grandes males sociais do mundo), na falta de definição melhor de alguns personagens – mas não tenho o menor interesse em falar deles. São coisas menores.
É um filme feito com paixão, honestidade, sinceridade, doçura. É um filme que merece ser visto.
Antes Que o Mundo Acabe
De Ana Luiza Azevedo, Brasil, 2009
Com Pedro Tergolina (Daniel), Bianca Menti (Mim), Eduardo Cardoso (Lucas), Caroline Guedes (Maria Clara), Eduardo Moreira (Daniel pai), Janaína Kremer (Elaine), Murilo Grossi (Antônio)
Roteiro Paulo Halm, Ana Luiza Azevedo, Jorge Furtado e Giba Assis Brasil
Baseado no livro de Marcelo Carneiro da Cunha
Fotografia Jacob Solitrenick
Direção de Arte Fiapo Barth
Música Leo Henkin
Montagem Giba Assis Brasil
Produção Executiva, Nora Goulart e Luciana Tomasi, produção Casa de Cinema Porto Alegre. DVD Imagem Filmes
Cor, 100 min
***
Que é do filme “O Barco do Rock”, que você comentou aqui há uns dias? Parece que sumiu…
Hêhê… Não sumiu, não, Rato. Em “brasileiro”, o filme chamou os Piratas do Rock. Está neste endereço:
https://50anosdefilmes.com.br/2009/os-piratas-do-rock-the-boat-that-rocked/
Um abraço!
Sérgio
Mais um filme brasileiro sobre o universo adolescente? E ainda com furos no roteiro e interpretações ruins? Eu passo.
“Dirigiu programas de televisão para campanhas eleitorais de 1992 a 2000 do PT. Ninguém é perfeito.”
Oi, Sérgio.
Ninguém é perfeito, é verdade; mas, confiar num partido reputado como o reduto da moralidade é uma fraqueza humana desculpável, porque confiança e desconhecimento, em política, são pecadilhos não mortais. Foi a partir de 2005 que o PT provou ao país que TODOS os partidos são imorais. Trabalhar para o PT após esta data, sim, seria a imperfeição. Ou a burrice. Ou o oportunismo indecente.
Uma resposta à Jussara:
Jussara, caríssima, você precisa parar com essa implicância com o cinema brasileiro. Essa má vontade não condiz com a sua inteligência brilhante. Veja: você se apegou a um detalhinho do meu texto, e ignorou tudo o que elogio no filme…
Uma resposta ao Jorge:
Jorge, meu mestre, concordo com quase tudo o que você diz. Mas não acho que todos os partidos políticos sejam imorais. Ou, no mínimo, alguns são melhores que os outros. O grande perigo que há em períodos como este que vivemos, de desgoverno, incompetência e roubalheira disseminada, é justamente a gente generalizar, botar tudo no mesmo balaio, e desacreditar totalmente em tudo.
Enfim… É difícil. As coisas estão muito difíceis.
Um abraço para os dois.
Quem não viu… e… “colocou o chapéu”. Muitos de nós vivemos mais ou menos isto alguma época no passado. Pra mim é um filme que resgata ótimas lembranças de velhos tempos. Este tipo de sentimento resgatado mostra a importância de termos errado na adolescência. Este filme me lembrou “Cinema Paradiso” pois tive a mesma sensação de nostalgia.
Olá, gostaria de saber qual é a câmera fotográfica que o pai do Daniel, dá ao filho?? Queria saber a marca.