Anotação em 2011: Não me pareceu um bom filme, este Até o Fim/The Deep End, feito em 2001, com Tilda Swinton como protagonista. Mas talvez eu não tenha condições de fazer um juízo isento do filme, porque foi impossível não ficar o tempo todo comparando esta refilmagem com o original, Na Teia do Destino/The Reckless Moment, que Max Ophüls dirigiu em 1949.
Não há qualquer referência, na refilmagem, à primeira versão. Os créditos iniciais dizem apenas que o filme se baseia no livro The Blank Wall, de Elisabeth Sanxay Holding – que, é claro, deu origem ao filme anterior. O novo roteiro é assinado pela dupla que dirige o filme, Scott McGehee e David Siegel.
De uma maneira fascinante, porém, as primeiras sequências do filme de 2001 lembram muito as de 1949. Claro, há imensas diferenças entre um e outro: o primeiro é preto-e-branco, este aqui é em cores; o primeiro omite alguns detalhes, o segundo explicita muito mais claramente aquele que o outro deixava subentendido. Os locais em que as histórias se passam são diferentes – o primeiro é passado na costa da Califórnia, a cerca de uma hora de carro de Los Angeles, o segundo, nas imediações de Reno, capital de Nevada, junto do Lago Tahoe.
Mas a ordem em que os fatos são mostrados é muito parecida, nos dois filmes. É impossível não fazer a comparação entre os dois.
Uma dona de casa que trabalha todas as horas do dia
Quando a ação começa, Margaret (o papel de Tilda Swinton, essa ótima atriz escocesa que venceu apenas com o talento, já que não tem encantos físicos) está indo até um bar, uma casa noturna, se encontrar com Darby (Josh Lucas), sujeito de aparência tão desagradável quanto a do bar, para exigir que ele deixe de ver o filho dela, Beau (Jonathan Tucker).
Veremos que Margaret tem três filhos – Beau, com 17 anos, é o mais velho; há uma garota de uns 13, Paige (Tamara Hope), e um caçula de uns sete, Dylan (Jordon Dorrance). O marido de Margaret é um militar que está sempre ausente, em alguma missão bem longe dali, e todas as tarefas da casa, e a criação dos filhos, e os cuidados com o pai bem velho do marido, Jack (Peter Donat) recaem sobre os ombros de Margaret. Ela cuida da casa, limpa, cozinha, lava e passa roupa, leva os filhos para as diferentes escolas, pega os filhos nas diferentes escolas – é aquela vida duríssima de mãe de família que trabalha todas as horas do dia.
De volta à sua casa à beira do lago, Margaret conta para Beau que esteve com Darby. Beau diz que já sabe, Darby já ligou. Margaret diz que Darby propôs um negócio a ela: deixaria, sim, de ver Beau, desde que recebesse por isso uma compensação financeira. Beau não acredita, acha que a mãe está mentindo.
À noite, enquanto Margaret escreve e-mails para o marido – ela tenta contar o que está acontecendo, mas desiste, por perceber que não tem sentido falar para ele de um problema que ele, lá longe, não teria condições de resolver –, Darby vem fazer uma visita a Beau. Conversam na casa dos barcos, uma edícula próxima à casa. Darby admite que aceitou negociar uma quantia de dinheiro com Margaret, Beau fica magoado, enfurecido, os dois brigam. Darby cai de um pequeno deck, enquanto Beau volta para casa.
Estamos aí com uns 10, 15 minutos de filme – exatamente como no filme de Max Ophüls. A sequência de acontecimentos, até aqui, é a mesma nas duas versões.
Diferenças de estilo. E grandes diferenças de fundo, de conteúdo
E aqui volto – não dá para evitar – a comparar as duas versões da mesma história.
O que acontece na manhã seguinte à visita de Darby, à briga, à queda dele do deck, é mostrado, no filme de 1949, sem explicitudes, com uma boa elipse. No filme de 2001, ao contrário, tudo o que não é mostrado na primeira versão torna-se explícito, e explícito até demais, em repetidas seqüências feitas sob a água.
Até aí, tudo bem – são os estilos de cada uma das épocas. A partir dos anos 80, o cinema, em especial os vários tipos de cinema feitos nos Estados Unidos, abandonou as elipses e abraçou todas as explicitudes possíveis. Martin Scorsese deu uma fantástica lição de cinema sobre essa questão, ao fazer Cabo do Medo/Cape Fear, de 1991, refilmagem de Círculo do Medo/Cape Fear, que J. Lee Thompson havia dirigido em 1962. (Se um dia eu soubesse escrever bem e tivesse gás para tanto, faria um tratado sobre o que mudou no cinema entre 1962 e 1991, analisando as duas versões de Cape Fear.)
Até aí, é uma questão de estilo.
O que mais faz distanciar Na Teia do Destino deste Até o Fim não são os aspectos formais – são as questões de fundo, de conteúdo.
Uma história que corre em cima do fio da navalha
Max Ophüls, cineasta grande, experiente, conseguiu fazer uma mistura bem balanceada de suspense e melodrama, de trama policial, de mistério, thriller, e exame de personalidades, de meio social. Contou uma história aterrorizante de uma dona de casa de classe média até então feliz, ajustada, perfeita, que de repente suja as mãos e a vida para sempre, envolvida num mundo criminoso – e seu encontro improvável, quase absurdo, com um marginal, um pequeno escroque, que de repente resolve lavar as mãos e a vida de toda a sujeira em que sempre esteve metido.
O encontro – tão improvável, tão estranho – entre a dona de casa interpretada por Joan Bennett e o marginal de coração bom feito por James Mason, assim como o encontro entre o suspense e o melodrama familiar, se torna plausível, crível, pela competência do realizador inteligente, sensível, maduro, que era Max Ophüls.
Para fazer bem essa história que corre em cima do fio da navalha, para impedir que tudo desande, é preciso mesmo um talento excepcional. Coisa que pouca gente alcança. E que a dupla Scott McGehee-David Siegel parece ainda não ter alcançado – nem no roteiro, nem na direção.
Foi uma sacada inteligente ter transformado o marido ausente da dona de casa – que no filme original era um engenheiro – em um militar. Essa é uma situação bem comum, bem típica: os Estados Unidos estão sempre metidos em alguma guerra, seus militares estão sempre sendo enviados para muito longe de casa.
Há um esforço para se mostrar o peso do trabalho eterno da dona de casa, o trabalho nunca reconhecido pelos filhos. Mostra-se que mãe e filho não conseguem se comunicar – mas, de alguma maneira, o quadro familiar que se mostra no filme não é redondo, não é bem traçado, não é sensível, arguto, como o do filme de 1949.
Falta melodrama à parte melodramática da história, e falta thriller, suspense, à parte thriller, suspense, da história.
Pior ainda: todo o final da história parece esgarçado, sem sentido. Uma fábula sem moral.
Os roteiristas trocaram o sexo do personagem adolescente – e aí desandou
Acho (posso estar enganado, é claro) que uma boa parte dos problemas do roteiro deriva da decisão da dupla de roteiristas-diretores de transformar o que no filme original era a relação da filha de 17 anos com um canalha bem mais velho na relação do filho de 17 anos com um canalha.
Em 1949, tinha todo sentido uma mãe assoberbada, solitária, tendo que tomar todas as decisões sozinha, tentar impedir o namoro da filha de 17 anos com um canalha bem mais velho. Havia o tabu da virgindade, o perigo da gravidez indesejada, a ameaça de a filha deflorada (credo: que palavra, que noção mais absurda!, mas era assim que se pensava) não encontrar pretendentes para o casamento. Tinha todo o sentido a mãe fazer tudo o que fez.
Tá bom: em 2001, já não teria muito sentido a mãe tentar impedir o namoro da filha de 17 anos com alguém mais velho. E aí os roteiristas trocaram o gênero: o que era filha virou filho. E o que era o temor da perda da virgindade, da gravidez indesejada, da falta de pretendentes, virou o temor da má influência, da má companhia, do convite ao álcool, às outras drogas.
Mas… quanto à homossexualidade, nada?
Pois é. O filme trouxe a questão da homossexualidade à tona, mas não soube o que fazer com ele. Afinal: Margaret sabia da opção homossexual do filho? Ou não, apenas temia que o filho pudesse ser homossexual, o que seria inaceitável para o pai militar? Ou jamais tinha desconfiado, até saber do caso do filho com o bandido? O filme jamais deixa isso claro.
E, mais ainda: a existência de um pequeno marginal, um pequeno escroque, de coração bom, nas cercanias de Los Angeles, em 1949, não era algo absolutamente improvável. Mas é absolutamente improvável a existência de um pequeno bandido tão doce e de coração tão bom nas cercanias de Reno, Nevada, em 2001.
A rigor, é aquela velhíssima coisa: por que, meu Deus do céu e também da terra, tentar refilmar histórias que foram bem contadas em bons filmes?
Foi feito o filme, a história foi contada, pronto, acabou. Que se crie uma nova história, que se adapte para o cinema um novo livro. Existem tantas dezenas de milhares de livros novos a cada ano.
Oxente!
Até o Fim/The Deep End
De Scott Mcgehee e David Siegel, EUA, 2001
Com Tilda Swinton (Margaret Hall), Goran Visnjic (Al Spera), Jonathan Tucker (Beau Hall), Peter Donat (Jack Hall), Josh Lucas (Darby Reese), Raymond Barry (Carlie Nagel), Tamara Hope (Paige Hall), Jordon Dorrance (Dylan Hall)
Roteiro Scott Mcgehee e David Siegel
Baseado no livro The Blank Wall, de Elisabeth Sanxay Holding
Fotografia Giles Nuttgens
Música Peter Nashel
Produção 20th Century Fox. DVD Fox.
Cor, 101 min
*1/2
olá, Sérgio! até que esse filme dá pra distrair, mas é cheio de gaps e nonsenses, mesmo. com certeza o anterior é melhor. A propósito, faz dias que não consigo entrar no site por categorias, vc sabe se tem algum problema?
abraço