O Duplo Enigma / Fast Company

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Franciellen Taynara no YouTube em 2/2025.)

Joel e Garda Sloane, os protagonistas de Fast Company, no Brasil O Duplo Enigma, produção da MGM de 1938, são inteligentes, espertos, safos e – sobretudo – bem-humorados, alegres, pra cima. Estão sempre, sempre fazendo piada um com o outro, sem parar, mesmo nos momentos mais tensos, mais perigosos – e eles enfrentam muitos momentos tensos, perigosos, porque são cercados por bandidos.

A especialidade do casal – interpretado por Melvyn Douglas e Florence Rice – são os livros raros e caros, primeiras edições, exemplares autografados, pelos quais os aficionados se dispõem a pagar fortunas. Eles não apenas vendem os livros raros, mas também pesquisam muito até encontrá-los, e ainda identificam as falsificações, algo extremamente comum naquele mercado em que rola muito, muito dinheiro.

Bem rapidamente o espectador vê que Joel e Garda ganham muito dinheiro das agências de seguro, que contam com a preciosa expertise do casal na identificação das falsificações para evitar ter que pagar por perda ou extravio de obras não autênticas.

Um casal simpático, alegre, piadista, que tem um trabalho parecido com o de detetives particulares, e enfrenta bandidos a toda hora.

Uma receita que já havia se revelado perfeita, e levara multidões aos cinemas naqueles anos terríveis, tristíssimos, da Grande Depressão que se seguiu à quebra da Bolsa de Nova York de 1929.

Quando lançou este O Duplo Enigma/Fast Company, a Metro confiava na receita já testada nos filmes com o casal de detetives Nick e Nora Charles, os da série Thin Man. E deu certo. O filme teve sucesso nas bilheterias, e o estúdio lançou em seguida mais dois com o casal Joel e Garda Sloane.

Cachoeiras de palavras por minuto, boas piadas

Meu Deus do céu e também da Terra, quanta palavra por minuto tem esta comédia gostosa! É incrível como falam esses Joel e Garda Sloane! Eles parecem a persona criada por Woody Allen algumas décadas depois, o judeu nova-iorquino neurótico intelectualizado e ligado à arte e à cultura. Falam mais que a boca, meu!

E há um monte, mas um monte de boas piadas no meio da falação toda.

A primeira sequência é uma tentativa de enganar/surpreender o espectador: o patrão entra em seu escritório e logo dá em cima da secretária!

– “Bom dia, Garda”, diz o homem, entrando no escritório e tirando o chapéu.

– “Bom dia, sr. Sloane”, a mulher responde, sentada, datilografando algo na máquina de escrever.

Joel Sloane chega por trás dela, observa a folha de papel na máquina, retira a folha – “O que é isto? Dois erros em uma linha.”

– “Onde?”, ela pergunta, levantando-se e ficando ao lado dele. Joel passa o braço esquerdo sobre os ombros dela. – “Sr. Sloane, quais são os deveres de uma secretária neste escritório?”

Ele a abraça e avança para beijá-la, enquanto ela protesta: – “Não! Não! Mil vezes não…”

O patrão machista, filho da mãe, um assaltante sexual, beija a secretária – e ela pára de resistir, e lança o braço sobre a nuca do agressor.

Depois do abuso, ele se distancia dela como se houvesse feito um favor: – “Descontarei do seu salário”.

Entra para sua sala privada, e pergunta se ela encontrou a primeira edição do livro de Robert Burns. Ela responde que sim, que estava na estante dele o tempo todo.

– “Alguma venda?”, ele pergunta, enquanto ela sobe em uma escada para pegar um livro em uma prateleira bem alta da estante.

– “O simpático ricaço sr. Sandish veio, mexeu um pouco nos livros e disse que era uma pena trancar uma garota tão atraente como eu neste cubículo. Quando demonstrei algum interesse, comprou um exemplar de A Ilha do Tesouro por US$ 200,00.”

Duzentos dólares! Não parece hoje tanto dinheiro assim – mas aquilo ali era 1938. Segundo o IMDb, sempre atento a todos os detalhes de todos os filmes que já foram feitos, em 2021 aqueles US$ 200 que o sr. Sandish pagou pelo exemplar raro de Treasure Island do escocês Robert Louis Stevenson seriam o equivalente a cerca de US$ 3.800,00.

– “Então ele ficou um tanto brincalhão”, continua a secretária de Joel Sloane. “Sem golpes, sem corridas, sem erros.”

Joel se aproxima da moça: – “Sem erros?”

Ela: – “Sem erros”.

Ele: – “Que sorte tenho de ter uma secretária com tanto jeito”.

Senta-se em sua cadeiras de trabalho e faz com as mãos aquele gesto de vem cá. – “Venda-me um livro”.

A jovem secretária não se faz de rogada. Avança até a cadeira do patrão e senta-se no colo dele: – “Outra vez me sinto como uma secretária”.

– “Outra vez me sinto como um patrão.”

– “Sr. Sloane…”

– “Sim, minha pequena?”

– “Posso comprar um vestido novo?”

Joel bota a moça para fora do seu colo: – “Preciso trabalhar”.

Ela, de pé atrás dele, mexendo em seu cabelo: – “Você me ama?”

Ele: – “Loucamente”.

Ela: – “Vai me amar sempre, aconteça o que acontecer?”

Elke: – “Claro”.

Ela, colocando os braços em volta dele: – “Bem, querido…”

Ele: – “O que é isso? O que é isso? Você é a mesma garota que não me deixou colocar um sofá no escritório?”

E, logo em seguida: – “Me diga, onde estão aqueles 200?”

Ela: – “Bem, é isso. Saí para almoçar, depois tudo ficou branco. Quando voltei a mim, eu tinha acabado de comprar um vestido.”

Ele (com um ar ameaçador): – “Espere um pouco. Eu não comprei um vestido novo para você quando nos casamos?”

Ela: – “Sim, mas isso foi dois anos atrás.”

Ele: – “Foi?”

Ela: – “E eu paguei pelo vestido”.

Ele: – “Isso é irrelevante. Irrelevante.”

Ela: – “E eu paguei pela licença de casamento, também.”

Ele: – “Mas é claro. Maridos como eu não aparecem todos os dias.”

Os dois estão abraçadinhos quando chega uma visita – veremos que é Steve Langner (Minor Watson), o representante de uma seguradora.

– “Desculpem”, diz ele. – “Pensei que isto aqui fosse um local de trabalho..,”

Joel não tem dúvida: puxa Garda para mais perto e tasca-lhe um beijo na boca. Primeiro a diversão, depois a obrigação…

Uma trama intrincada, mas gostosa, divertida

É preciso que haja uma sinopse. Uso como base o que diz a Wikipedia.

Joel e Garda Sloane tocam uma empresa de livros raros em Nova York. Para suplementar seus ganhos, Joel recupera livros roubados. O casal também ganha dinheiro de empresas de seguro. Os dois tentam ajudar Ned Morgan (Shepperd Strudwick) a achar um emprego; o rapaz havia cumprido pena de prisão acusado de haver roubado livros de outro negociante da área, Otto Brockler (George Zucco). Os Sloane têm certeza da inocência de Ned Morgan – que namora a filha de Brockler, Leah (Mary Howard), contra a vontade do pai, é claro.

Esse Otto Brockler tem negócios com uma dupla de bandidos, Eli Bannerman e Sid Wheeler (os papéis, respectivamente, de Louis Calhern e Dwight Frye), este último um forjador, um falsário, que cria livros que passam por edições velhas e raras. Trabalha como secretária de Brockler uma loura atraente, elegante, que usa jóias caras, Julia Thorne (Claire Dodd).

Brockler é assassinado – e o principal suspeito do policial encarregado do caso, o tenente James Flanner (Donald Douglas), é o namorado da filha do morto, Ned Morgan.

Joel Sloane vai tentar obter informações com a esperta secretária Julia Thorne. Haverá mais um assassinato, Joel vai levar um tiro – felizmente só de raspão, na bunda.

Uma história um tanto intrincada, mas gostosa, divertida.

O autor se chama Harry Kurnitz (1908-1968), um nova-iorquino dramaturgo, romancista e roteirista, que escreveu roteiros para aventuras capa-e-espadas com Errol Flynn, comédias para Danny Kaye, e sucessos como Testemunha de Acusação (1957), Hatari! (1962), Um Tiro no Escuro (1964), Como Roubar um Milhão de Dólares (1966). Escreveu também alguns romances de mistério, com o pseudônimo Marco Page – e um deles foi exatamente Fast Company. Como Marco Polo, ele assinou também o roteiro do filme, ao lado de Harold Tarshis.

O casal criado por ele, esses alegres, divertidos Joel e Garda Sloane, voltaria em dois outros filmes produzidos pela MGM já no ano seguinte, 1939, Fast and Loose e Fast and Furious. Em uma decisão estranha, no entanto, essas duas sequências não foram estreladas pelo casal do primeiro filme, Melvyn Douglas e Florence Rice. Em Fast and Loose, no Brasil Um Susto por Minuto, Joel e Garda são interpretados por Robert Montgomery e Rosalind Russell. E. em Fast and Furious, no Brasil Um Casal como Poucos, por Franchot Tone e Ann Sothern.

Não conheço outro caso assim, de filmes com os mesmos personagens sendo interpretados por diferentes atores…

O filme veio para ocupar o espaço que era de The Thin Man

Um casal simpático, alegre, piadista, que tem um trabalho parecido com o de detetives particulares, e enfrenta bandidos a toda hora.

Antes deste Fast Company aqui, já havia um casal assim em produções da Metro – e era um sucesso absoluto.

O casal de detetives Nick e Nora Charles foi uma criação do gigante Dashiell Hammett (1894-1961), e surgiu em 1934, no romance The Thin Man, no Brasil Ceia dos Acusados. Os personagens são tão absolutamente marcantes que, depois do sucesso do livro, foram criadas novas histórias com eles para uma série de filmes, a partir do mesmo ano de lançamento de The Thin Man, 1934. Mais tarde, entre 1941 e 1950, Nick e Nora Charles apareceram em uma série de novelas de rádio, em uma série de TV entre 1957 e 1959, um musical da Broadway em 1991 e uma peça de teatro em 2009.

Depois do primeiro dos seis filmes, The Thin Man, no Brasil A Ceia dos Acusados, de 1934, exatamente como no romance, vieram After the Thin Man, no Brasil A Comédia dos Acusados, de 1936, e Another Thin Man, no Brasil O Hotel dos Acusados – ambos dirigidos por W.S. Van Dyke, com o galã William Powell como Nick e Mirna Loy como Nora.

Em 1937 – relata o IMDb na página de Trivia sobre este O Duplo Enigma –, William Powell foi diagnosticado com um câncer, e a MGM de repente enfrentou a perspectiva de não conseguir continuar a série The Thin Man. “Em uma tentativa de criar filmes alternativos, na mesma veia, o estúdio produziu três filmes em 1938 e 1939 que eram vistos como possíveis substitutos para The Thin Man. Este filme (Fast Company) foi o primeiro deles, e foi claramente estampado no estilo dos filmes com Powell e Loy,”

A vida tem reviravoltas como as histórias de Harlan Coben, e William Powell se recobrou com a ajuda de um tratamento então experimental, de radiação, e reassumiu o papel do elegante e bem humorado detetive Nick Charles ao lado de Mirna Loy. Foram mais quatro filmes da série, em 1939, 1941, 1945 e 1947. O de 1941, Shadow of the Thin Man, no Brasil A Sombra dos Acusados, foi baseado em uma história criada por Harry Kurnitz, com roteiro dele e Irving Brescher. E o último da série, Song of the Thin May, aqui A Canção dos Acusados, foi dirigido por Edward Buzzell, o diretor deste Fast Company aqui.

Edward Buzzell (1895-1985) dirigiu 42 títulos, entre 1931 e 1961. Em uma rápida passada de olhos pela filmografia dele, não reconhecia nada importante. Mas o Dicionário de Cinema – Os Diretores do mestre Jean Tulard não o trata mal:

“Sem At the Circus e Go West, duas das obras-primas dos (Irmãos) Marx, seu nome teria sido esquecido, o que seria injusto. Ator em inúmeros filmes, roteirista e realizador de curtas-metragens cômicos para a Columbia no fim dos anos 20, ele assinou, desde o advento do cinema falado, obras consistentes e não desprovidas de humor. De William Powell em Song of the Thin Man a Esther Williams em Neptune Daughter, o saldo é positivo, rendendo-lhe espaço no capítulo das comédias na história do cinema norte-americano.”

Um filme de fato gostoso de se ver

Eis o que diz o livro The MGM Story: “Uma divertida trilogia começou com Fast Company, filmado as partir de um whodunit (quem fez, quem matou) de Marco Page sobre um aficionado por livros raros, sua mulher e seu trabalho de detetive amador. Feito para apaziguar os exibidores que reclamavam da demora entre os filmes ‘Thin Man’, foi seguido com mais dois com os mesmos personagens – estranhamente interpretados por diferentes astros em cada um. Os originais eram Melvyn Douglas e Florence Rice, com Claire Dodd como a ameaça loura, e Louis Calhern, Shepperd Strudwick, Nat Pendleton, Douglass Dumbrille, George Zucco, Horace MacMahon, Thurston Hall, Minor Watson e Mary Howard. Edward Buzzell dirigiu e Frederick Stephani produziu, a partir do roteiro de Page. Page virou um roteirista contratado, com seu próprio nome, Harry Kurnitz.”

Leonard Maltin deu apenas 2 estrelas em 4 ao filme:

“Alegre mistério sobre casal que transforma seu negócio de livros raros em trampolim para a investigação detetivesca – especialmente quando um outro negociante é assassinado e um amigo deles se torna o principal suspeito. Baseado em um romance de Marco Page (um pseudônimo de Harry Kurnitx, que também co-escreveu o roteiro. Seguido por Fast and Loose (1939). Título na TV: The Rare-Book Murder.”

Gostei de ver o filme. Bem, eu sou apaixonado por velhos filmes de Hollywood – mas ele é de fato uma gostosa diversão. E está na página Franciellen Taynara no YouTube, de graça que nem um passeio no parque.

Anotação em março de 2025

O Duplo Enigma/Fast Company

De Edward Buzzell, EUA, 1938.

Com Melvyn Douglas (Joel Sloane),

Florence Rice (Garda Sloane)

e Claire Dodd (Julia Thorne), Shepperd Strudwick (Ned Morgan, o rapaz protegido pelo casal Sloane), Louis Calhern (Eli Bannerman), Nat Pendleton (Paul Terison), Douglass Dumbrille (Arnold Stamper, o advogado de Ned Morgan), Mary Howard (Leah Brockler, a filha de Otto, namorada de Ned Morgan), George Zucco (Otto Brockler), Minor Watson (Steve Langner, da companhia de seguros), Donald Douglas (tenente James Flanner), Dwight Frye (Sidney Z. Wheeler), Thurston Hall (promotor MacMillen), Horace McMahon (Danny Scolado), Barbara Bedford (a secretária do promotor MacMillen), James B. Carson (especialista em cofres)

Roteiro Marco Page (pseudônimo de Harry Kurnitz|) e Harold Tarshis

Baseado no livro de Marco Page (pseudônimo de Harry Kurnitz)

Fotografia Clyde De Vinna

Música William Axt

Montagem Fredrick Y. Smith 

Direção de arte Cedric Gibbons

Figurinos Dolly Tree     

Produção Frederick Stephani, MGM.

P&B, 73 min (1h13).

**1/2

Título em Portugal: “Detetives a 100 à Hora”. Na Franças: “Règlement de Comptes”.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *