Meu Bolo Favorito / Keyke Mahboobe Man

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Imovision em 8/2025.)

Muito, muito, muito. muito bom – mas desconcertante. Essa foi a primeira avaliação que me surgiu na cabeça assim que terminou Meu Bolo Favorito, o filme que a dupla iraniana Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha escreveu e dirigiu, com ajuda de produtoras de França-Suécia-Alemanha, e foi lançado em 2024.

Sim, é isso mesmo – muito, muito, muito, muito bom, mas desconcertante, este filme sobre uma senhora iraniana de 70 anos, viúva há 30, que vive absolutamente só e, de repente, sai à procura de um encontro, acha um homem também de exatos 70 anos, e o convida para ir à sua casa,

Mas é um monte de coisas mais. É virulentamente, visceralmente, corajosissimamente contra o regime dos aiatolás que oprime os iranianos – e com especial rigor as iranianas – desde 1979, quando a revolução derrubou a ditadura pró-Ocidente do xá Reza Pahlevi e instaurou uma sangrenta ditadura teocrática anti-Ocidente, com sua Guarda Revolucionária e sua Polícia da Moral de olho em cada passo de cada pessoa.

A coragem dos autores os levou à prisão. Fala-se disso mais adiante.

Fortíssimo, violento contra o regime, a ditadura, a opressão das mulheres, o filme é, ao mesmo tempo, a coisa mais delicada que pode haver. Meu Bolo Favorito excede, mas excede demais, nos quesitos delicadeza, ternura, suavidade. Doçura – como o alimento que dá nome à obra.

Os personagens, como notou a Mary, são gentis – com exceção, é preciso registrar, do truculento guarda da Polícia da Moral que está no parque público à cata de mulheres que ousem não esconder muito direitinho seus cabelos sob o hijab ou, pior ainda, para casais que ousem fazer demonstrações de carinho em público, essa coisa escandalosa, espúria, nojenta, pecaminosa. E com exceção também da vizinha da protagonista da história, que, por ser casada com um funcionário do governo, acha que tem a autoridade de um chefe de polícia do quarteirão.

Excelente, desconcertante, corajoso demais da conta, delicado, terno, doce, suave, com a imensa maioria dos personagens gentis – e, at last but not at least, um filme que não é rápido, veloz, trepidante, apressado.

Dias antes de vermos este Meu Bolo Favorito, o escritor e cinéfilo Jota Marques, autor do cartapácio Cinememórias (Primeiro Capítulo, 2022), havia enviado para este site um comentário, discordando de minha opinião sobre a refilmagem de 2015 de Longe Deste Insensato Mundo, em que afirmava o seguinte: “Os factos (…) são aqui ‘despachados’ num piscar de olhos, no que ousaria apelidar de ‘corrida louca’. Aliás, é uma característica do cinema de hoje, em que tudo é feito para ganhar o máximo de dinheiro num mínimo de tempo.”

Meu Bolo Favorito é isto tudo: excelente, desconcertante, corajoso demais da conta, delicado, terno, doce suave, com a imensa maioria dos personagens gentis – e, ao contrário do que parece ser uma tendência mundial, lento. Sem pressa alguma.

Walter Franco, um dos meus santos gurus, diria que este belo filme vai a 60 minutos por hora, sem pressa nem demora, pela vida afora.

Uma velha senhora solitária, os filhos fora do país

Mahin (o papel de Lily Farhadpour, estupenda, fantástica) acorda tarde. Tem dificuldade para dormir, só consegue pegar no sono perto do amanhecer – mas sua amiga Puran (Mansoore Ilkhani) não consegue entender isso, e todo santo dia liga para Mahin.

Meu Bolo Favorito começa com tomadas da casa da velha senhora – uma casa agradável, confortável, solidamente classe média – e o som da campainha do celular dela tocando. E, ao ser acionado, o celular de Mahin toca os acordes iniciais do primeiro movimento da “Primavera”, m dos concertos das Quatro Estações de Vivaldi.

(O telefone de Mahin toca diversas vezes ao longo dos 97 minutos do filme, e assim ouvimos bastante aqueles acordes iniciais da “Primavera”. Achei delicioso esse detalhinho – talvez cheio de sutis simbologias, quem sabe? Um concerto da mais tradicional escola de música erudita do Ocidente capitalista decadente tocando em um celular da República Islâmica do Irã não é uma suave subversão?)

– “Te falei uma centena de vezes para não me ligar de manhã”, diz ela, voz de sono, máscara cobrindo os olhos para protegê-los da luz do Sol. (Um instante em silêncio. A amiga seguramente deve estar fazendo alguma objeção.) Mesmo que seja meio-dia. Estou viva. Você sabe que só durmo de manhã. Certo. Te ligo quando acordar.”

Veremos que Mahin mora sozinha naquela confortável, gostosa casa. Bem mais adiante na narrativa, ficaremos sabendo que seus dois filhos saíram do Irã muito tempo antes, fugindo da ditadura dos aitolás. Não se diz para onde foram – o que importa é que foram para longe, não aguentaram mais.

Um dos prazeres de Mahin, talvez o maior, é cuidar do jardim. A casa tem um jardim grande, generoso, e a velha senhora cuida de suas plantas com o maior carinho.

Essa amiga que liga todo dia para saber se Mahin está bem, Puran (Mansoore Ilkhani), parece ser a mais chegada – mas é apenas uma de um grupo de velhas, velhas amigas de Mahin. Pelo que vai sendo dito ao longo da narrativa, quando mais novas elas se reuniam sempre; agora que estão todas ali em torno dos 70 anos, falam-se ao telefone, mas só se reúnem muito de vez em quando – quase apenas uma vez por ano, segundo Mahin diz uma hora lá.

“Você anda com os olhos baixos, não vê o que está a seu redor”

Mahin recebe as amigas – todas viúvas, como ela mesma – para uma dessas reuniões agora tão raras com uma refeição maravilhosa, com diversas entradas e pratos que ela preparou com esmero, dedicação e competência.

A reunião acontece a partir de quando estamos com apenas 6 minutos de filme – e creio que está ali, no encontro com Puran e três outras amigas cujos nomes não gravei e o IMDb também não especifica (os papéis de Soraya Orang, Homa Mottahedin e Sima Esmaeili) as origens do que virá depois na vida dessa simpática senhorinha.

Uma das amigas conta: – “Outro dia, quando eu saía da casa da Jaleh, estava tentando parar um táxi, e um carro branco chique veio direto até mim. Ele me ofereceu uma carona para o bairro Gisha. Abriu a porta para mim e sentei no banco do passageiro.”

Mahin interrompe, um tanto espantada: – “No banco do passageiro?”

E a amiga: – “Por que não? Ele disse: ‘Vou viajar para o exterior, mas antes vou tomar um café. Gostaria de me acompanhar?’ Então fomos comer um mingau juntos. E depois ele me levou em casa. Era bonito e educado. Um verdadeiro gentleman. E não tinha aliança.”

(Sim: no meio das palavras em farsi, a gente ouve o termo da língua falada pelo povo que vive no Grande Satã – gentlemen.)

Uma amiga, encantada, pergunta: – “Por que nunca encontramos homens assim?”

A que contava a história replica: – “É só prestar atenção! Você anda por aí como uma idosa, com os olhos baixos. Você não vê o que está a seu redor. Há 30 anos digo à Mahin para parar de ficar aqui sozinha e procurar um amigo, mas ela não me escuta.”

Puran sentencia: – “Os homens são inúteis. Ele ficaria sentado dando ordens. Ela passaria o dia cozinhando e limpando e, quando ele ficasse doente, ela teria que cuidar dele. Ela foi enfermeira ´por 30 anos. Não foi o suficiente?”

A conversa se encaminha para saúde, doenças – Puran, está na cara, é uma velha daquelas bem hipocondríaca. Fala-se mal dos maridos: – “Que alegria nossos falecidos maridos nos deram?”, pergunta uma, e todas dão gostosas risadas.

A velha senhora convida o homem para ir à sua casa

Parar de ficar sozinha. Sair. Prestar atenção. Ver o que está a seu redor. Procurar um amigo.

Aquelas palavras seguramente ficaram na cabeça da simpática Mahin. Depois daquela gostosa reunião com as amigas, ela passa a sair mais de casa. Uma vez, vai ao café do antigo Hotel Hyatt, onde havia ido muitos, muitos anos atrás, antes da Revolução, quando as mulheres usavam roupas bonitas, às vezes decotadas – e não era obrigatório o uso do hijab.

Uma outra vez vai a um parque – quem sabe lá haveria homens que treinam, caminham, fazem exercícios? Ouve do único homem que avista ao chegar ao parque que os homens praticam exercícios bem de manhãzinha…

Anda mais um pouco – e se depara com um guarda da Polícia da Moral (Mehdi Pilevari), que está recolhendo para a viatura as mulheres que não estão usando corretamente o véu. Com a segurança da respeitabilidade dos seus 70 anos, Mahin chega perto dele para tentar proteger uma jovem. Mas o policial diz que ela própria não está usando o hijab corretamente, está deixando parte de seu cabelo à mostra.

Mais adiante, Mahin vai almoçar – apresentando seu cartão de aposentada – em um restaurante em que há uma mesa grande com diversos trabalhadores. Em uma outra mesa, há um homem idoso, magro, de bigode, um jeito simpático. Pessoas da outra mesa o chamam pelo nome – Faramarz (o papel de Esmail Mehrabi), Havia sido soldado, é motorista de táxi.

Mahin vai atrás dele. Pede que a leve, em seu táxi, para casa. Senta-se no banco do passageiro, na frente. Conversa com ele, convida-o para entrar em sua casa.

Os diretores foram processados e impedidos de sair do Irã

As filmagens de Meu Bolo Favorito começaram em Teerã no segundo semestre de 2022, poucas semanas antes da morte, no dia 16 de setembro daquele ano, da estudante de 22 anos Mahsa Amini, que havia sido presa pela Polícia da Moral porque o hijab não cobria seus cabelos da forma exata como manda o regime dos aiatolás, O crime absurdo, chocante, deu início a uma onda gigantesca de protestos chamados de “Mulher, Vida, Liberdade”, em que nada menos de 185 manifestantes foram mortos pela polícia.

Os realizadores chegaram a interromper as filmagens, temendo reações – mas elas logo foram retomadas.

Era o terceiro filme da dupla de roteiristas e diretores Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha, e eles haviam conseguido o financiamento das produtoras FilmSazan Javan (do próprio Irã), Caractères Productions (França), HOBAB (Suécia) and Watchmen Productions (Alemanha), e ainda o apoio de diversas instituições européias – Swedish Film Institute, Sveriges Television, New Dawn, ZDF/ARTE, Medienboard Berlin-Brandenburg, i World Cinema Fund, a CNC’s Aide aux Cinemas du Monde, o Institut Français, a região Île-de-France, a Eurimages e o Berlinale Co-Production Market.

Em setembro de 2023, Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha foram impedidos de viajar a Paris, para os trabalhos de pós-produção do filme: seus passaportes foram confiscados, e iniciou-se um processo na Justiça contra eles. A casa do montador do filme chegou a ser invadida pelas forças de segurança, e material foi apreendido.

Em dezembro de 2023, cerca de 30 entidades de defesa de direitos humanos e outras ligadas ao cinema mundial, como organizações de festivais, assinaram uma carta aberta ao governo do Irã, pedindo que as acusações contra a dupla fossem abandonadas e que eles pudessem ser autorizados a deixar o país.

O filme foi aceito para participar da mostra competitiva do Festival de Berlim de 2024 – mas os diretores não foram autorizados a deixar o Irã. Os dois atores principais, Lily Farhadpour e Esmail Mehrabi, no entanto, participaram dos eventos na 74ª Berlinale. Antes da exibição do filme, os dois exibiram uma foto de Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha e apresentaram uma mensagem enviada por eles:

“Fomos levados a crer que não é mais possível contar a história de uma mulher iraniana obedecendo leis estritas como as do hijab obrigatório. Mulheres para as quais as linhas vermelhas evitam a representação de suas verdadeiras vidas, como seres humanos plenos. Desta vez, decidimos cruzar todas as linhas vermelhas restritivas, e aceitar as consequências de nossas escolhas, para pintar um quadro real das mulheres iranianas – imagens que foram banidas do cinema iraniano desde a Revolução Islâmica.

Meu Bolo Favorito é um filme feito em louvor à vida. Esta é uma história baseada na realidade das vidas cotidianas das mulheres classe média do Irã, um olhar atento da solidão da mulher na entrada de seus anos dourados. Uma cisão da realidade das vidas das mulheres que não tem sido mostrada com frequência. É a história que é o oposto da imagem comum das mulheres iranianas, e semelhante às histórias de vida de muitas pessoas solitárias neste planeta, sobre saborear os breves, doces momentos da vida…

“Senhoras e senhores, temos o orgulho de dedicar nossa première às honradas e corajosas mulheres de nosso país que ocuparam a linha de frente da luta pela mudança social, que estão tentando derrubar os muros de crenças ultrapassadas e fossilizadas, e que sacrificam suas vidas para ganhar a liberdade.”

Uau!

Os autores presos – e o filme acumula elogios e prêmios

Em dezembro de 2024, Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha permaneciam presos, aguardando julgamento, acusados dos crimes de propaganda contra o regime, quebra das leis islâmicas por ter realizado “um filme vulgar, defendendo a prostituição e libertinismo”.

São as informações mais recentes que encontrei sobre eles, depois de ver esta beleza de filme, em agosto de 2025.

Após a estréia mundial na Berlinale de 2024, o filme foi apresentado em vários outros festivais, na Alemanha, República Checa, Canadá, Espanha, Austrália, Estados Unidos, Japão.

Em agosto de 2025, quando vimos o filme, ele tinha 100% de aprovação entre os críticos no site agregador de opiniões Rotten Tomatoes.

No Guardian de Londres, o crítico Peter Bradshaw escreveu: “Este filme maravilhosamente doce e engraçado vai contribuir para o debate sobre se os regimes repressivos são um berçário de grandeza artística. (…) Há algo suavemente magnífico nele, pois momentos como aqueles na vida são pungentemente breves – mas muitos jamais desfrutam deles.”

No também britânico Observer, a crítica assinada por Wendy Ide diz: “Os planos têm um jeito de dar errado nessa história adorável, íntima, tragicômica de um amor tardio à sombra do repressivo regime do Irã. Com sua maneira gentil, esta é uma realização cinematográfica subversiva.”

No Irish Times de Dublin, Tara Brady escreveu: “Um desenvolvimento narrativo tardio desvia o encontro fofo para um terreno menos seguro. Mas este permanece sendo um encontro inesquecível, animado por protestos políticos silenciosos e notas pungentes sobre a viuvez.”

“Late narrative development” – uma maneira refinada e um tanto tortuosa de se referir aos eventos do final da história.

Não vou, é claro, é óbvio, revelar aqui o que acontece nos minutos finais do filme – mas foram eles que me fizeram usar, na abertura deste comentário, o adjetivo “desconcertante”.

Sim: eu, euzinho aqui, fiquei bastante desconcertado com os eventos do final da história. Não contava com aquilo, de forma alguma – embora, a rigor, o desenvolvimento da narrativa leve mesmo o espectador a pensar na possibilidade de que aquilo pudesse vir a acontecer.

Há uma imensa diferença entre pensar na possibilidade de que aquilo pudesse vir a acontecer e constatar que de fato aconteceu mesmo – e com os detalhes que se seguem.

Até o último minuto, fiquei alimentando a louca esperança de que aquilo não fosse verdade.

E, depois, me irritei demais com o rótulo “comédia de humor negro” que o IMDb usou para o filme, assim como, seguramente, outros sites e publicações.

Bem, eu tenho um problema seriíssimo com esse rótulo. Não consigo entender o que “humor negro” quer exatamente dizer. Muito que as pessoas definem como comédia de humor negro me parece pura e simplesmente trágico.

Para mim, Meu Bolo Favorito tem, sim, momentos engraçados. Poderia ser definido como uma comédia dramática, drama cômico, dramédia. François Truffaut dizia que as duas coisas, drama e comédia, acontecem sempre na vida de cada um de nós, às vezes ao mesmo tempo, e ele gostaria que seus filmes misturassem os dois tons.

Mas, diabo, chamar este filme tão importante, tão belo, tão delicado e ao mesmo tempo tão corajoso de comédia de humor negro me parece uma grande ofensa.

Anotação em agosto de 2025

Meu Bolo Favorito/Keyke Mahboobe Man

De Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, Irã-França-Suécia-Alemanha, 2024

Com Lily Farhadpour (Mahin),

Esmail Mehrabi (Faramarz)

e Mansoore Ilkhani (Puran, a amiga mais próxima de Mahin), Soraya Orang, Homa Mottahedin, Sima Esmaeili (as amigas de Mahin), Aman Rahimi, Azim Mashhadi, Saeed Payamipoor, Ali Asghar Nejat (velhos no restaurante). Mehdi Pilevari (guarda da Polícia Moral), Mohammad Heidari (o motorista de táxi jovem), Mozaffar Esmaeili (o jardineiro), Melika Pazouki (a moça no parque)

Argumento e roteiro Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha

Fotografia Mohamad Hadadi

Montagem Ata Mehrad e Behtash Sanaeeha

Figurinos Maryam Moghadam

Produção Etienne de Ricaud, Peter Krupenin,

Gholamreza Moosavi, Behtash Sanaeeha, Christopher Zitterbart, Caracteres Productions, Filmsazane Javan, Hobab, Watchmen Productions, ZDF/Arte.

Cor, 97 min (1h37)

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3 Comentários para “Meu Bolo Favorito / Keyke Mahboobe Man”

  1. The article beautifully captures the quiet resilience and dreams of an Iranian woman, contrasting her daily life with the oppressive regime. It’s heartwarming yet unsettling, leaving a lasting impression of quiet rebellion and the universal desire for connection.

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