Delicioso: Da Cozinha Para o Mundo / Délicieux

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível no Amazon Prime Video em 2/2025.)

Délicieux, caprichadíssima co-produção França-Bélgica de 2021, é visualmente belíssimo, uma coisa acachapante. A fotografia, a direção de arte, o cuidado com cada detalhinho para transformar as tomadas em pinturas de requintada beleza – é tudo uma absoluta maravilha. O filme é também suavissimamente mentiroso – e corre o perigoso risco de raspar no maniqueísmo. Méritos e probleminhas pesados, creio que é um filme que merece ser visto.

Abre com um prólogo, uma introdução, um letreiro para dar ao espectador o contexto do que verá ao longo dos 112 minutos do filme:

“No século 18, a nobreza usava a culinária para lutar contra o tédio e mostrar sua grandeza. O povo mal tinha o suficiente para se nutrir. Albergues e hospedarias serviam refeições simples aos viajantes, e era raro se alimentar fora de casa. O restaurante, um lugar de criação e convivência, ainda não havia sido inventado…”

O que vem a seguir é a história do cozinheiro-chefe do castelo de um duque que, por um evento fortuito, perde sua posição. De volta à pequena propriedade da família, no interiorzão da França do final do século 18, o superdotado Pierre Manceron (o papel de Grégory Gadebois) acabará por se tornar o dono e o chef do primeiro restaurante de que se tem conhecimento.

Houve aquele prólogo, e há também, ao final da narrativa, um epílogo. Depois da última cena – uma tomada geral de beleza estonteante, a câmara seguramente em um drone, da propriedade de Manceron e de seus arredores no verdíssimo campo francês -, um letreiro informa:

“Poucos dias depois, a Bastilha caiu.”

A história foi criada e roteirizada por Éric Besnard e Nicolas Boukhrief – o primeiro é também o diretor de Délicieux, que, no Brasil, ganhou o título de Delicioso: Da Cozinha Para o Mundo.

Em momento algum está dito explicitamente, com todas as letras, que aquela é uma história real – mas eu seria capaz de apostar que muita gente sai do filme com a sensação de que Pierre Manceron foi o sujeito que criou o primeiro restaurante, esse lugar – como se diz na abertura – “de criação e convivência”, que “ainda não havia sido inventado…”

Na abertura, sequências literalmente espetaculares

O co-autor do roteiro original e diretor Éric Besnard começa seu filme com uma série de sequências literalmente espetaculares. A primeira é no conjunto de cômodos que formam a imensa, gigantesca, interminável cozinha do castelo do duque de Chamfort. O cozinheiro-chefe Pierre Manceron caminha por aquele espaço jupiteriano dando ordens às dezenas de pessoas que trabalham sob seu comando.

É, obviamente, uma coisa encenada, artificial. Coisa de cinema. Minuciosamente bolada para ser espetacular.

Aparece na cozinha o chefe dos serviçais, o que seria o mordomo, se estivéssemos em mansão da aristocracia inglesa, tipo Downton Abbey. Ali se diz que é o intendente do marquês, Hyacinthe (Guillaume de Tonquédec). Uma das frases que ele troca com Manceron é uma advertência para que o filho dele pare de frequentar a biblioteca do castelo – ali não é lugar de filho de serviçal.

A fala é para definir quem é Benjamin Manceron (Lorenzo Lefèbvre), o filho único do cozinheiro-chefe – um jovem aí de uns 20 anos apaixonado pela leitura, que devora os grandes autores – lá pelas tantas Benjamin vai citar uma frase de Jean-Jacques Rousseau.

A segunda sequência mostra a imensa, riquíssima sala de refeições do castelo do duque (o papel Benjamin Lavernhe). À mesa está um grande grupo de convidados, todos da nobreza, mais o bispo da região. Estão tcom aquelas perucas e aquela maquilagem pesada dos nobres franceses que o cinema já mostrou milhares de vezes. Falam abobrinhas – e tudo é absoluta, mas absolutamente caricatural. Os nobres nos são apresentados como seres detestáveis, asquerosos, nojentos, da pior escória que pode haver na humanidade.

Fazem-se fartos elogios aos diversos pratos preparados para aquele repasto.

O duque manda chamar Manceron para ouvir o que seus convivas têm a dizer – e aí rola não exatamente a continuação da segunda sequência, mas uma terceira.

São feitos elogios aos pratos – até que o bispo (Gilles Privat) começa a criticar, de forma cada vez mais dura, um acepipe que Manceron havia introduzido naquela ocasião, ao qual havia dado o nome de “délicieux”, delicioso.

Acontece então um efeito manada. A partir dos ataques do bispo, todos os nobres presentes às mesas começam a desancar com cada um dos pratos que haviam acabado de elogiar.

É uma sequência espetacular, literalmente espetacular. Mais uma vez, não tem nada a ver com qualquer tipo de realidade – é tudo falso, artificial, encenação.

O duque ordena que Manceron peça desculpas.

Vemos Manceron de pé ali diante dos convidados e do patrão, um homem absolutamente consciente de seu imenso talento.

Corta, e segue-se uma sequência em que Manceron pai e Manceron filho caminham longamente do castelo do duque até a casa que havia pertencido ao pai do agora ex-cozinheiro-chefe – quase inteiramente abandonada, em ruínas.

Surge uma mulher na vida do agora demitido chef

Na casa da família vivia um senhor bem idoso, Jacob (Christian Bouillette). Não se diz explicitamente se ele havia sido um servo, amigo antigo ou parente da família, mas o fato é que passam a viver ali com o velho Jacob os dois Manceron recém-chegados.

Não se explicita também a localização da propriedade da família do agora ex-cozinheiro-chefe do duque de Chamfort – mas fica claro que ela estava próxima de uma estrada que ia dar em Paris. Das terras do duque até Paris passava-se perto da propriedade – e isso é bastante importante na trama.

(O filme teve como uma das co-produtoras a região administrativa Auvergne-Rhône-Alpes, que fica bem no centro da França, ao Sul de Paris, que tem Lyon como uma das maiores cidades.)

Nos primeiros tempos após a demissão, há uma curiosa inversão dos papéis entre pai e filho. Pierre Manceron, o pai, fica absolutamente desencantado, sem interesse algum pela cozinha. Já Benjamin, o filho, que no castelo pouco ajudava o pai no trabalho, passa a ser muito mais ativo do que era antes. É o primeiro a perceber que eles poderiam passar a ganhar dinheiro servindo boas refeições aos viajantes que passavam pela estrada ali perto – e começa, com a ajuda do velho Jacob, a atender a alguns primeiros clientes.

Quando estamos com 17 minutos de filme, uma mulher aparece na propriedade, e se apresenta para Manceron: – “Meu nome é Louise. Quero ser sua aprendiz”.

Uma lei de Hollywood não escrita mas tão velha quanto o cinema diz que é sempre necessária a existência de um “female interest”, uma mulher que desperte o interesse das platéias. A lei não vale apenas para Hollywood, como demonstra esta co-produção França-Bélgica.

A entrada em cena de Louise muda o filme. Na verdade, acho que a existência de Louise, a relação que se estabelece entre ela e Manceron, e o fato de ela vir na pele de Isabelle Carré, são as melhores coisas deste Délicieux.

Uma trama que traz muitas surpresas

A sequência em que Louise aparece pela primeira vez é bem interessante.

Manceron está sentado diante de uma mesa no que parece ser um celeiro da propriedade, trabalhando com um martelo para acertar uma ferramenta. A câmara está colocada dentro do celeiro; vemos Manceron à esquerda na tela, enquanto Louise está à direita, junto da porta. Ela está, portanto, totalmente contra a luz do exterior, e assim não vemos seu rosto.

Depois da primeira frase em que se apresenta, ela diz:

– “Eu fazia as geléias do conde de Briançon, mas quero cozinhar de verdade.”

Manceron responde dando mais algumas marteladas no troço que está tentando consertar.

Corta, a câmara inverte de posição; está agora do lado de fora do celeiro. Vemos Louise de costas, e Manceron de frente, que se levanta, se aproxima dela, passa por ela e segue em frente:

– “Lamento. Eu não cozinho mais. Adeus.”

A câmara faz então um suave zoom em direção a Louise, que usa uma capa com capuz. Ela se vira para olhar para o cozinheiro que diz não cozinhar mais e se distancia dela – e o espectador vê pela primeira vez, e em close-up, o rosto de Louise-Isabelle Carré.

Nas comédias românticas, mocinho e mocinha brigam o tempo todo, até que fim ficam juntos. Délicieux não é uma comédia, é um drama de época, mas tem um lado romance. Quem já viu mais do que dois filmes na vida sabe que alguma coisa vai rolar ali.

Manceron demora muito a admitir que Louise fique ali e aprenda a cozinhar com ele – mas a moça é determinada. Diz que não vai arredar o pé dali enquanto ele não mudar de idéia.

Isso que relatei longa e detalhadamente é só o início da trama – e a verdade é que Éric Besnard e Nicolas Boukhrief criaram uma trama muito rica, na qual não faltam surpresas.

Lá pelas tantas, bem depois dessa sequência em que surge Louise, Manceron dirá a ela que ela havia mentido, que não era uma trabalhadora, uma pessoa que fazia geléias para o conde de Briançon. Que os modos dela, o jeito de andar, de fazer as coisas, eram ou bem de uma nobre ou de uma prostituta.

De imediato ela admite que, sim, era uma prostituta.

Bem mais adiante, mas bem mais adiante, quando o filme está já com uns dois terços da narrativa, ficamos sabendo que ela mentiu.

Uma bela mulher, uma bela atriz essa Isabelle Carré

Interessante: Isabelle Carré-Louise parece bem mais jovem que Grégory Gadebois-Manceron. Este é um sujeito corpulento, grande, com uma barba grisalha. Ela é bastante magra, o que sempre dá uma aparência de mais jovem, mas traz no rosto bonito os tais traces de poussièrre, os vestígios da poeira do tempo de que fala Georges Moustaki na canção La Ligne Droite. Les traces de poussière estão bem visíveis no rosto de Isabelle Carré desde aquele primeiro close-up, quando o filme está com 18 minutos.

Eu não me lembrava desse Grégory Gadebois, e confesso que seu Pierre Manceron me pareceu estar aí com uns bons 50 e muitos anos. Me espantei um tanto ao saber que é de 1976, um ano mais jovem que minha filha, e estava portanto com apenas 45 anos quando o filme foi lançado, em 2021.

Já Isabelle Carré eu conhecia; havia um bom tempo que não a via, é verdade, mas este site aqui tinha já quatro filmes com ela, Bem Me Quer, Mal Me Quer/À la Folie… Pas du Tout (2002), Quatro Estrelas/Quatre Étoiles (2006), Medos Privados em Lugares Públicos/Coeurs (2006), de Alain Resnais, e O Refúgio/Le Refuge (2009), de François Ozon.

Sobre Quatro Estrelas, anotei, em 2008, já lá se vão, portanto, 17 anos: “Não tem graça alguma – a não ser a beleza e a sensualidade dessa garota Isabelle Carré, o tempo todo de vestidinho fino e esvoaçante mostrando as perninhas finas e os peitinhos lindos.”

Sobre O Refúgio, escrevi, em 2011: “Isabelle Carré dá um show de interpretação. Em vários momentos, Ozon deixa a câmara em cima de seu rosto belo e jovem – e a moça desfia uma grande gama de expressões, da mais profunda tristeza, amargura, até uma alegria juvenil, despreocupada, passando por momentos em que parece alheia ao mundo ao redor. Isabelle tem diversas caras diferentes ao longo do filme, à medida em que vai vivendo diferentes climas, situações.”

Isabelle Carré é cinco anos mais velha que seu parceiro Grégory Gadebois: é da classe de 1971, a mesma geração de Cécile de France, Marion Cotillard, Chiara Mastroianni, Judith Godrèche. Já teve nada menos de oito indicações ao César, e levou o troféu em 2003 por Se Souvenir des Belles Choses. Que belle chose é essa mulher…

Na verdade, os primeiros restaurantes surgiram em Paris

A gastronomia, e a elevação do restaurante a algo próximo a um templo, um local de adoração, estão presentes, é claro, em todos os lugares do mundo, mas talvez a França seja o país que mais os cultiva. É o país do Guia Michelin, dos chefs reconhecidos mundo afora como grandes artistas – aliás, o país que deu origem à palavra chef, usada universalmente.

Délicieux mostra bem que a gastronomia e a adoração pelos restaurantes são de fato uma paixão francesa.

“Através de leituras sobre o século 18, acabei me deparando com a invenção do conceito de restaurante”, disse o co-autor e diretor Eric Besnard, em entrevista reproduzida no site AlloCiné. “Eu nunca tinha me perguntado sobre a origem desse lugar tão patrimonial. Rapidamente fiz pesquisas e compreendi que tinha qualquer coisa ali. Tudo estava lá: a gastronomia, com essa especialidade francesa que consiste em usar o tempo para se sentar para comer a partilhar um momento de convivência, mas também o século das Luzes e da Revolução.”

Na realidade, os primeiros restaurantes franceses apareceram em Paris, e não no interior, mas Eric Besnard decidiu que, em seu filme, ele surgiria no interior, na Province, como eles dizem: “Paris não é a França. A França que me interessa é aquela do interior”.

Segundo o site AlloCiné, que tem tudo sobre o cinema francês, a média das avaliações dos críticos foi de 3,3 em 5. A dos espectadores, 3,7 em 5. No IMDb, o filme tem nota 7.0 em 10.

Anotação em fevereiro de 2025

Delicioso: Da Cozinha Para o Mundo/Délicieux

De Éric Besnard, França-Bélgica, 2021

Com Grégory Gadebois (Pierre Manceron),

Isabelle Carré (Louise),

e Lorenzo Lefèbvre (Benjamin Manceron, o filho de Pierre), Benjamin Lavernhe (o duque de Chamfort), Guillaume de Tonquédec (Hyacinthe, o intendente do duque), Christian Bouillette (Jacob, o velho amigo da família Manceron), Marie-Julie Baup (a marquesa de Saint-Genet, amante do duque), Laurent Bateau (Dumortier), Manon Combes (Francine), Félix Fournier (o auxiliar de cozinha que gosta de canela), Christophe Rossignon (o lacaio à luz de velas), François De Brauer (o marquês Frigoli), Jérémy Lopez (o marquês de Fourvière), Antoine Gouy (o marquês de Croisic), Benjamin Lhommas (o marquês dos Essais), Gilles Privat (o bispo)

Argumento e roteiro Éric Besnard e Nicolas Boukhrief

Fotografia Jean-Marie Dreujou

Música Christophe Julien

Montagem Lydia Boukhrief

Casting David Bertrand 

Desenho de produção Bertrand Seitz

Direção de arte Sandrine Jarron        

Figurinos Madeline Fontaine

Produção Philip Boëffard, Christophe Rossignon, Nord-Ouest Films, SND Films, France 3 Cinéma, Région Auvergne-Rhône-Alpes, Artémis Productions e e outras.

Cor, 112 min (1h52)

**1/2

 

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