Ao Norte do Norte / North of North

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em abril de 2025)

Uma total, absoluta surpresa – e, meu Deus do céu e também da Terra, que gratíssima surpresa! A série Ao Norte do Norte nos leva para uma realidade desconhecida por praticamente todos os habitantes do planeta: como é a vida, hoje, ano da graça de 2025, dos inuítes, aquele povo originário do Norte do Canadá, no ponto mais perto do Pólo em que há seres humanos, até décadas atrás conhecidos como esquimós.

Sim, não se pode mais dizer esquimós: tachada de ofensiva, a palavra foi banida.

Ao Norte do Norte oferece material para sérias reflexões a respeito de como devem ser tratados os povos originários – dos apaches, cheyennes e sioux daquele país ao Sul do Círculo Polar aos aborígenes da Austrália, dos nahuas, mixtecas e zapotecas do México aos mapuches e quechuas do Chile e aos xavantes e ianomâmis do Brasil. Devem permanecer com seus costumes intocados, como viviam seus antepassados, vários séculos atrás, antes que os homens “brancos” chegassem perto deles? Deveriam, ao contrário, se aculturar, passar a usufruir das vantagens (pagando por isso com todas as desvantagens) do desenvolvimento científico, tecnológico?

Antropólogos, sociólogos, estudiosos de Ciências Humanas em geral podem fazer a festa com o que a série apresenta.

Mas não é esta, seguramente, a pretensão dos realizadores – ao menos não a intenção principal. A série fala, sim, de coisas sérias – por exemplo, uma das mais sérias de todas, o machismo x a vontade e o direito das mulheres de serem independentes. Mas é uma comédia – uma deliciosa comédia de costumes.

E North of North é tão livre leve e solta, tão irreverente, que lá pelas tantas até usa a palavra que o politicamente correto proibiu: Vocês jovens são cheios de melindres; tem muito esquimó casado com branco, qual é o problema?, diz para a protagonista da história a mãe dela, uma figura interessantíssima.

A personagem central, Siaja (o papel de Anna Lambe, uma inuk da classe de 2000), tem 26 anos, sua filha de uns seis, sete anos, já está na escola, e agora ela quer ser independente do marido, trabalhar, ter sua própria vida.

Quando ela anuncia isso, na pequena comunidade em que vive, que tem o simbólico nome de Ice Cove, o céu cai sobre sua cabeça – como os gauleses Astérix e Obélix morriam de medo de que um dia isso pudesse acontecer.

Inuk, é preciso que a gente saiba, é o singular de inuíte. Em inglês, a grafia é inuk e inuit. E a pronuncia do nome da moça é Siáia – o j como i.)

Com todos os confortos da vida moderna

Ao Norte do Norte tem oito episódios – mas eles são bem curtinhos, apenas 30 minutos cada. Como é gostosa, interessante, e muitíssimo bem realizada, a série passa depressa demais; quando terminou, me deixou com gostinho de quero mais.

A abertura da série é simplesmente um brilho. Explica a base de tudo da maneira mais clara e encantadora que poderia haver.

A primeira imagem que vemos é o close-up de uma moça de rosto bonito, simpático, alegre, olhando diretamente para a câmara e, portanto, para o espectador. Siaja-Anna Lambe diz: – “Se me perguntam de onde sou, digo: pense no lugar mais ao Norte que já foi. É mais ao Norte. Continue indo. Continue indo.” Vemos imagens de lugares cobertos de neve, em uma série de tomadas rápidas. Quando surge uma paisagem totalmente nevada, com um daqueles jet-skis, ela diz: -“Sim, aí estamos nós”. Vemos tomada geral de umas poucas dezenas de casas no meio da neve sem fim. Um mapa da América do Norte surge bem rapidamente na tela, com um símbolo vermelho, como o do Google Maps, em cima de uma daquelas ilhas ao norte do Canadá continental, na altura do ponto mais ao Norte da Groenlândia, já dentro – repito a informação, porque ela é importante, e impressionante – do Círculo Polar Ártico.

– “Ice Cove, Nunavut, no coração do Ártico”, diz a voz alegre de Siaja.

Ice Cove – literalmente, esconderijo no gelo. O nome é fictício. A série foi filmada em Iqaluit, a capital de Nunavut, mas as realizadoras inventaram um nome porque a intenção é dizer que aquela cidadezinha da história poderia ser qualquer uma daquela região. Nunavut é o maior dos territórios em que se divide o Canadá, e ocupa os pontos mais ao Noroeste do gigantesco país, uma parte no continente e diversas ilhas situadas no Oceano Ártico.

E aí vem uma fantástica sacada das realizadoras. Siaja diz: – “É assim que as pessoas do Sul nos vêem:”

Vemos, em uma montagem rapidíssima, diversas fotos em preto-e-branco de esquimós, perdão, de inuítes – imagens que poderiam perfeitamente ter saído de Nanook, o Esquimó/Nanook of the North, o antológico, fundamental documentário de 1922 de Robert J. Flaherty,

Volta o rosto simpático da moça que será a protagonista da história, em close-up. Ela está de ombros nus, entrando embaixo de um chuveiro. – “Apesar de tudo isso ser tecnicamente verdade, eu sou uma mulher inuk moderna, seja lá o que isso signifique.”

Tomadas bem rápidas do celular dela com mensagens de texto, com selfies – exatamente como de qualquer jovem de 26 anos de Manhattan, do Marais, de Ipanema, da Vila Madalena, entre tomadas em close-up do rosto de Siaja enquanto ela toma banho.

– “Minha vida inteira tentei fazer tudo certinho. Casei ao sair da escola secundária, comecei uma família, e agora ele é o queridinho da cidade e eu… sou a mulher dele.”

Vemos fotos de Siaja e do marido, Ting (o papel de Kelly William).

– “Mas este ano eu finalmente serei a minha prioridade. Vou procurar um emprego, reconectar com os amigos, ser a melhor mãe e talvez até mesmo…”

Ela é interrompida por batidas na porta do banheiro e a voz do marido, querendo apressá-la: – “Anda, amor! Ninguém vai olhar para você mesmo!”

Para o marido, Siaja diz que está indo. Para a câmara, para o espectador, ela complementa o que vinha dizendo: – “Eu cheguei a mencionar… mudar de vida?”

Entra o título da série – e logo Siaja se apressa, e a família sai de casa – o maridão em uma bela caminhonete, a mulher e a filhinha, uma delícia de garota, Bun (Keira Cooper, na foto abaixo), em um ski-doo, uma motonete sobre a neve. Vão para o local em que se realiza o Festival de Primavera de Ice Cove.

Por que exatamente o maridão não bota a mulher e a filha na espaçosa caminhonete, e faz com que elas se locomovam no meio da neve enfrentando o vento do Círculo Polar, não é explicado em momento algum da série. Encaremos isso como uma pequena liberdade poética das realizadoras para realçar o machismo do macho.

É necessário registrar: todos os inuítes mostrados na série conversam em inglês. Os mais velhos ainda falam entre si na língua de seus antepassados, mas os mais jovens – assim como os irlandeses, por exemplo – conhecem pouco da língua mãe, e só falam inglês.

O trabalho de Siaja é fundamental na série

Siaja anuncia que quer se separar de Ting em plena reunião de toda a comunidade para o Festival de Primavera – e todos, todos ficam chocadíssimos. Haverá quem a chame de galinha, de imoral – os mesmos xingamentos que a comunidade já havia usado contra a mãe dela, Neevee (Maika Harper, na foto abaixo), que, quando jovem, era tida como uma namoradeira em série.

E é com Neevee que ela vai morar, para grande tristeza de Ting. O cara de fato é um danado de um machista, mas tem grande amor pela bela mulher. Vai tentar conquistá-la de volta, vai se esforçar para isso. E é um bom pai, presente, carinhoso. Com a separação, Ting – como tem mesmo que ser, sempre – mantém os laços com a garotinha Bun; na prática, ele e Siaja fazem uma guarda compartilhada da filha.

A moça parte em busca de emprego junto à administradora da pequena cidade, Helen (Mary Lynn Rajskub). A princípio, Helen resiste, mas, diante da insistência de Siaja, acaba contratando a moça. Há uma bela sequência mostrando a alegria dela ao receber o primeiro salário da sua vida.

A relação de Siaja com Helen e com o trabalho, com os colegas ali naquela espécie de pequena prefeitura, têm uma importância imensa na trama. Siaja é inteligente, esperta, diligente, esforçada, conhece bem a comunidade – e acabará sendo o braço direito de Helen.

A série mostra – sem didatismo algum – que as pequenas cidades dos inuítes têm um administrador, uma espécie de prefeito, nomeado pelo governo federal. Um administrador branco, não um inuk. Volta e meia o nome Ottawa, a capital canadense, é citada nos diálogos – as ordens de Ottawa, Ottawa decidiu que, esse tipo de coisa.

Chegam de Ottawa, ainda no primeiro dos oito episódios, dois pesquisadores, encarregados de fazer levantamento sobre Ice Cove e também de uma outra cidade próxima. Com base no estudo que eles realizarem, uma grande empresa decidirá onde instalar um projeto – algo que seguramernte trará progresso, empregos, dinheiro ao lugar escolhido.

O principal pesquisador se chama Alistair (Jay Ryan, na foto abaixo). Depois de beber bastante em uma festa, comemorando a coragem de romper com Ting, Siaja tasca no coroa bonitão um beijo. Ainda bem que só um beijo – porque logo ela fica sabendo que Alistair vem a ser seu pai. Ele tinha tido um caso com Neevee 27 anos antes; Neevee rompera com ele, mandara o cara ir embora de Ice Cove, e ele nunca ficara sabendo que tinha uma filha.

O relacionamento da inuk Neeve e do branco Alistair havia sido sério, profundo, para os dois – e é claro que, quando se revêem, volta a paixão. Neevee tenta evitar – por medo de depois ser abandonada -, mas é claro que voltam a ter um caso. Um tanto tempestuoso, devido ao temperamento dela, e também, claro, devido ao fato de casos tempestuosos serem mais interessantes numa comédia…

E, por sua vez, vai surgindo uma atração crescente entra Siaja e o jovem assistente de Alaistair, Kuuk (o papel de Braeden Clarke), ele também filho mestiço de branco com inuk ali mesmo daquela região.

As duas criadoras da série são inuítes de Nunavut

North of North é uma criação de duas mulheres – duas inuítes, Stacey Aglok MacDonald e Alethea Arnaquq-Baril, ambas nascidas no território em que se passa a história, Nunavut. As duas são sócias em uma produtora, Red Marrow Media, que realizou a série juntamente com a Northwood Entertainment. As duas empresas tiveram a colaboração das redes de TV Canadian Broadcasting Corporation e Aboriginal Peoples Television Network, e da Netflix.

(Meu, o Canadá tem uma rede de TV voltada para os povos originários!)

Stacey Aglok MacDonald dedica-se mais à produção – foi produtora de sete títulos, inclusive Twice Colonized, Duas Vezes Colonizada, de 2023, que venceu o Canadian Screen Award de melhor documentário longa-metragem.

Alethea Arnaquq-Baril tinha na filmografia, em abril de 2025, 12 títulos como produtora, 5 como roteirista e 6 como diretora. Já recebeu sete prêmios, em diversos festivais, e, em 2017, ganhou do governo de Ottawa a

Canadian Meritorious Service Cross como reconhecimento de seu trabalho como realizadora e ativista em defesa da cultura dos inuítes.

As duas criadoras, roteiristas e produtoras dedicaram North of North à memória de Emerald MacDonald; ao ver a homenagem nos créditos finais, Mary e eu ficamos curiosos, é claro, em saber quem foi ela. Emerald, atriz e música, era irmã de Stacey Aglok MacDonald, e morreu assassinada em 2021.

Tanto Alethea Arnaquq-Baril quanto a atriz Anna Lambe, que interpreta a personagem central Siaja, nasceram em Iqaluit, a capital do território Nunavut – onde a série foi filmada, entre março e junho de 2024. “Uma grande parte da comunidade está no nosso show, na tela e também trabalhando atrás das câmaras”, disse em entrevista Alethea Arnaquq-Baril.

A atriz Anna Lambe contou: “As pessoas vinham constantemente me abraçar e dizer que estavam orgulhosas por mim e como estava sendo bom para Nunavut, para os inuítes e para o cinema e a televisão indígena. Foi um derramamento de amor e apoio que recebemos.”

E atenção: aqui vai um spoiler!

Seria de se esperar um happy ending para os dois casais, os jovens Siaja e Kuuk e os maduros Neevee e Alistair. Afinal, happy ending faz parte integrante das comédias românticas. Mas, espertas, as duas criadoras deram um jeitinho para que, no fim, a gente não pudesse dizer sobre os dois casais: “E viveram felizes para sempre…”

Isso porque a história termina, sim, tem uma conclusão, mas… deixa-se aberta uma porta. Quem sabe o troço não faz sucesso, e aí eles produzem uma segunda temporada?

Está cedo para saber: a série foi exibida nas duas redes canadenses que participaram da produção, a Canadian Broadcasting Corporation e a Aboriginal Peoples Television Network, a partir de 7 de janeiro de 2025, e teve estréia mundial na Netflix em 10 de abril. Mary e eu vimos poucos dias depois da estréia…

Mas, se tiver segunda temporada, estamos nessa.

Anotação em abril de 2023

Ao Norte do Norte/North of North

De Stacey Aglok MacDonald e Alethea Arnaquq-Baril, criadoras, roteiristas, Canadá, 2025.

Direção Anya Adams, Danis Goulet, Aleysa Young (2 episódios cada), Zoe Leigh Hopkins, Renuka Jeyapalan (1 episódio cada)

Com Anna Lambe (Siaja),

Mary Lynn Rajskub (Helen, a administradora da pequena cidade), Maika Harper (Neevee, a mãe de Siaja), Jay Ryan (Alistair, o pesquisador que no passado teve um caso com Neevee), Braeden Clarke (Kuuk, filho de inuk com branco, assistente de Alistair), Kelly William (Ting, o marido de Siaja, o ‘golden boy” do lugar), Keira Cooper (Bun, a filhinha de Siaja e Ting), Zorga Qaunaq (Millie, amiga de Siaja), Bailey Poching (Colin, o homem da rádio local), Nutaaq Doreen Simmonds (Elisapee, a veterana funcionária), Tanya Tagaq (Nuliajuk), Vincent Karetak (Jeffrey, o administrador do lixão), Taylor Hickson (Alexis, a namorada de Kuuk)

Roteiro Stacey Aglok MacDonald & Alethea Arnaquq-Baril, criadoras, Katherine Arcus, Aviaq Johnston, Vinnie Karetak, Moriah Sallaffie, Moriah Sallaffie, Garry Campbell, Susan Coyne, Linsey Stewart, Kathryn Borel, JP Larocque.

Fotografia Jackson Parrell

Música Brian Chan, Caleb Chan, Sherri Chung

Montagem Sam Thomson, Marianna Khoury, Duff Smith

Casting Stephanie Gorin, Alyssa Weisberg,

Desenho de produção Andrew Berry

Figurinos Debra Hanson

Produção Patricia Curmi, Northwood Entertainment. Red Marrow Media, em associação com Aboriginal Peoples Television Network, Canadian Broadcasting Corporation (CBC), Netflix.

Cor, cerca de 240 min (4h)

***1/2

 

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