(Disponível no Mubi e em DVD Versátil.)
Amor à Flor da Pele, a co-produção Hong Kong-França de 2000 escrita e dirigida por Wong Kar-Wai, lançada nos Estados Unidos, Reino Unido, França e Itália como In the Mood for Love, é um filme que merece um monte de superlativos. Para começar, é uma das mais tristes histórias de amor que o cinema já contou, ao longo destes 130 e tantos anos.
Um dos mais belos filmes sobre história de amor. Meu Deus, que filme belo, que visual extraordinário… E. claro, por que não? Que belos atores esses Tony Leung Chiu-wai e Maggie Cheung – belos em todos os dois principais sentidos da palavra, bons atores e bonitas pessoas.
Um dos filmes mais sensuais que já foram feitos – sem que haja nada parecido com uma cena de sexo, nenhum pedaço de corpo daqueles que as roupas tradicionais cobrem à mostra. Alguma língua ferina poderia dizer para o japonês Nagisa Ôshima, o autor do explicitérrimo O Império dos Sentidos (1976): cara, filme sensual é isso aí, tá?
Um dos filmes que mais perfeitamente souberam integrar a história, o visual, e a música. Meu, é impressionante como as melodias de Michael Galasso e Shigeru Umebayashi são parte integrante e fundamental da trama, do clima de cada tomada. E, além delas, há ainda, em diversas ocasiões, a voz aveludada de Nat King Cole, na sua fase de cantar em espanhol, oferecendo a nossos ouvidos suas versões – lindíssimas – de dois dos mais famosos boleros, “Aquellos Ojos Verdes” e “Quizás, Quizás, Quizás”.
Me ocorreu, entre rever o filme agora, um quarto de século depois de seu lançamento, e começar a escrever esta anotação, que, de uma certa maneira, o I’m in the Mood for Love deste realizador chinês nascido em Xangai (em 1956) tem bastante a ver com Les Parapluies de Cherbourg, do francês nascido em Pontchâteau, Loire-Atlantique (em 1931) Jacques Demy.
São, os dois, de uma beleza visual acachapante; são, os dois, filmes em que música e ação estão umbilicalmente juntas; e, sobretudo, são, os dois, histórias de amor absolutamente, absolutamente tristes – embora eu ache que a história passada em Hong Kong a partir de 1962 seja ainda mais triste que aquela passada em Cherbourg ali por 1961. Afinal de contas, Geneviève-Catherine Deneuve e Guy-Nino Castelnuovo ao menos tiveram uma belíssima noite de amor – algo que o destino negou à sra. Chan- Maggie Cheung e ao sr. Chow-Tony Leung.
Homem e mulher que moram lado a lado, se vêem sempre
Uma história de amor à flor da pele, de um casal que está in the mood for love, ou, como diz o título do filme em Portugal, Disponível para Amar – e que, no entanto, não consegue se entregar ao amor.
“Hong Kong, 1962” – Wong Kar-Wai faz questão de abrir seu filme com um letreiro que informa para o espectador o onde e o quando. Na primeira sequência do filme, Su Li-zhen, a sra. Chan, está visitando o apartamento da sra. Suen (Rebecca Pan), que tinha um quarto para alugar. E Su procurava um quarto para ela e o marido morarem.
No exato momento em que Su está se despedindo da sra. Suen, já no corredor, um homem chega à porta do apartamento – ele, o sr. Chow, também está procurando um quarto para morar com sua mulher, e seguramente havia visto, assim como Su, um anúncio no jornal.
Nesse primeiro encontro, os dois mal se vêem.
Chow pergunta à sra. Suen se é ali que estão alugando um quarto – e ela explica que acabou de alugar para aquela mulher que acabava de sair dali. Mas o vizinho dela bem ali ao lado, o sr. Koo, também tem um quarto para alugar. – “O filho do sr. Koo se casou. O quarto ficou vazio”.
Quis o destino que aquelas duas pessoas, Su, a sra. Chan, e o sr. Chow alugassem quartos em apartamentos vizinhos, lado a lado.
Quis a imaginação de Wong Kar-Wai que o espectador não veja, em momento algum, nem o sr. Chan, o marido da bela Su, nem a sra. Chow. A gente até ouve as vozes deles (feitas pelos atores Roy Cheung e Paulyn Sun, respectivamente); há umas duas sequências em que até aparece a sra. Chow, falando ao telefone com o marido, mas ela está de costas.
Têm uma característica em comum os dois cônjuges de Su e Chow: viajam bastante a trabalho. Passam boa parte do tempo longe dos respectivos mulher e marido.
Talvez haja uma outra característica em comum, como vão passar a desconfiar Su e Chow: talvez cada um deles tenha um amante.
Su e Chow, estes também trabalham muito. Ela é a secretária de confiança de um homem de negócios, o sr. Ho (Lai Chen). Ele é jornalista.
Mas, diferentemente de seus respectivos cônjuges, estão sempre ali, em Hong Kong. E moram lado a lado, em quartos alugados de apartamentos contíguos. E volta e meia se vêm nos corredores do prédio, nas escadas do bairro, no caminho entre o prédio em que vivem e o restaurante em frente, que faz comida para os clientes levaram para casa.
Quando Su Li-zhen-Maggie Cheung caminha pelos corredores, pelas escadas, pela vizinhança, sempre com seus vestidos floridos, coloridos, elegantes, que realçam seu belo corpo, a câmara de Wong Kar-Wai e seus diretores de fotografia Christopher Doyle, Pun Leung Kwan e Ping Bin Lee a acompanha um pouquinho mais lentamente que a velocidade normal de 24 quadros por segundo. A câmara parece absolutamente derretida de paixão – e, nesses momentos, que são muitos, muitos, muitos, muitos, ao longo dos 98 minutos de filme, ouvimos ou as melodias doces, suaves, cativantes de Michael Galasso e Shigeru Umebayashi, ou a voz aveludada de Nat King Cole.
Um enclave capitalista cercado de China comunista
Em 1962, é fundamental lembrar, Hong Kong era enclave capitalista pertencente ao Império Britânico cercado de mar e de China comunista por todos os lados. Como a própria China, Hong Kong sempre foi superpovoada – mas tornou-se mais e mais superpovoada ainda depois da Revolução Comunista de 1949, quando milhares e milhares e milhares de chineses fugiram do continente para o enclave britânico.
O filme, é claro, não tem que ficar explicando isso, mas a superpopulação, e a pequena quantidade de imóveis naquele pequeno território onde se comprimiam mais de 5,3 milhões de pessoas nos anos 1980 evidentemente explicam por que aqueles dois casais de classe média, todos com empregos estáveis, tinham que se sujeitar a morar em quartos alugados dentro de apartamentos de famílias.
Hong Kong ser uma colônia britânica também explica – me parece bem claro – por que os modos, as atitudes, as roupas, tudo é extremamente parecido com o padrão ocidental. Chow, e também o sr. Ho, o patrão de Su, estão sempre de gravata e camisa social – e de paletó quando saem à rua. E todas as pessoas se tratam por senhor e senhora, cerimoniosamente. A sra. Suen, que aluga o quarto para o casal Chan, sempre que pode elogia as pessoas, dizendo que elas são educadas – como se fosse uma londrina.
Mas o capricho de Su Li-zhen ao se vestir, sua figura sempre corretamente maquiada, isso parece um pouco fora do padrão, mesmo naquele pedaço de Império Britânico habitado por chineses. Wong Kar-Wai fez questão de colocar uma frase na boca de uma das pessoas no apartamento da sra. Suen para mostrar isso, lá pelo meio da narrativa. – “Ela sai vestida assim só para ir até ali comprar macarrão?”, pergunta uma visita à sra. Suen.
Sim. A belíssima, deslumbrante sra. Chan anda sempre como se estivesse vestida para jantar num restaurante fino, ou para ir ao teatro.
Vestida para matar.
Não, não – isso aí é nome de outro filme, que não tem nada a ver.
Os títulos, os títulos. In the Mood for Love, que os distribuidores brasileiros tiveram a rara sensibilidade de chamar de Amor à Flor da Pele, é no original o que passa para o nosso alfabeto como Fa yeung nin wah –
“a idade das flores” ou “os anos floridos” – uma metáfora chinesa para o tempo fugaz da juventude, da beleza e do amor, segundo a Wikipedia. E é uma expressão que dá o título de uma canção popular de Zhou Xuan cantada em um filme de 1946. A sacada de usar o título de uma canção popular americana – “I’m in the mood for love”, de Jimmy McHugh-Dorothy Fields – para o título nos Estados Unidos e Reino Unido foi sugerida a Wong Kar-Wai, que não é bobo nem nada e aceitou, deixando de lado o título que vinha pensando dm usar, Secrets.
Os protagonistas são de Xangai, expatriados – como o diretor
No seu longo verbete sobre o filme, a Wikipedia em inglês afirma que tanto Chow Mo-wan quanto Su Li-zhen, e também a sra. Suen, são expatriados, naturais de Xangai – exatamente como o próprio autor e diretor Wong Kar-Wai, que foi criado em Hong Kong pelos pais que saíram da Mainland China comunista para o enclave britânico. Eu não havia percebido isso – e creio que não há no próprio filme uma indicação clara de que os protagonistas da trama são da grande metrópole Xangai. A não ser, é claro, para os próprios chineses, que podem reconhecer o sotaque, algo assim.
Na segunda metade dos anos 1960, da revolução sexual e comportamental no Ocidente e da Revolução Cultural de Mao-Tsé Tung, Jean-Luc Godard fez La Chinoise e Marco Bellocchio fez La Cina è Vicina, no Brasil A China Está Próxima (ambos de 1967). Nos mais calmos anos 80, deixando a política absolutamente de lado, Kate Wolf, com sua poesia à flor da pele, comparou que a China é tão absolutamente grande quanto o coração da mulher – “na China ou no coração de uma mulher há lugares que ninguém conhece”, cantou a compositora fantástica.
Como não concordar com Kate Wolf? A China é grande demais, é um troço fora de série – aquilo ali é outro planeta.
É tão outro planeta que a gente nunca sabe qual é o prenome das pessoas, qual é o sobrenome. Nos créditos do próprio filme, na capa do DVD, na capa do CD com a belíssima trilha sonora (que encomendei para a Mary e ela me trouxe de Paris em 1991), está Wong Kar-Wai. Assim como no IMDb e na Wikipedia. No livro 501 Movie Directors, editado por Steven Jay Schneider, ele é Kar Wai Wong.
“A Nova Onda do cinema da Ásia produziu vários excêntricos e iconoclastas notavelmente ambiciosos. Que o inimitável e misterioso Kar Wai Wong ainda permaneça como um criador particularmente distinto sublinha sua abordagem não convencional e suas obras realizadas de forma única”, diz o livro.
Segundo o 501 Movie Directors, este In the Mood for Love – “a história poderosa e evocativa de paixão frustrada” – ajudou a solidificar sua reputação entre os críticos tanto quanto as características de seu trabalho, em especial o fato de que seus roteiros são amplamente improvisados e seus filmes têm o impulsivo trabalho de câmara do diretor de fotografia Christopher Boyle.
Foram criados 46 vestidos para Maggie Cheung usar no filme
É obrigatório haver um registro sobre Maggie Cheung. A beldade – assim como seu colega Tony Leung – não nasceu na República Popular da China, e sim lá mesmo, em Hong Kong, o enclave capitalista. Ela é de 1964 – dois anos após a época em que se passa a maior parte da ação deste Amor à Flor da Pele, dois anos antes do início da Revolução Cultural, a radicalização do comunismo modelo chinês liderado por Mao Tsé-Tung. É, portanto, do mesmo ano de Bridget Fonda, Juliette Binoche, Sandra Bullock, Kristin Scott Thomas, Monica Bellucci, Laura Linney. E estava, portanto, com 36 anos quando foi lançado este Amor à Flor da Pele.
Segundo o IMDb, ela é fluente em cantonês, mandarim e xangainês – um dialeto que eu sequer sabia que existia – na China e no coração da mulher há coisas que a gente nunca sabe. Isso assim além de inglês e francês. Foi casada, entre 1998 e 2001, com o diretor e roteirista francês Olivier Assayas.
Venceu 26 prêmios mundo afora. Inclusive – impressionante! – os de melhor atriz em Berlim e em Cannes, respectivamente por Ruan Ling Yu (1992) e Clean (2004), filmes que, pelo jeito, não foram lançados no Brasil.
Há dois registros interessantíssimos sobre Maggie Cheung e sua personagem Su Li-zhen. A personagem usa um vestido diferente em cada cena – não há repetição. Foram criados 46 vestidos para serem usados por Su Li-zhen-Maggie Cheung ao longo do filme. E preparar a atriz para a filmagem, a cada dia – o trabalho dos cabeleireiros e maquiadores – levava cinco horas…
Afe.,. Uma mulher linda, gostosa, vestida e maquiada para matar…
Amor à Flor da Pele ganhou 45 prêmios. Participou da mostra competitiva do Festival de Cannes, e lá Tony Leung venceu o prêmio de melhor ator. Os três fotógrafos, Christopher Doyle, Pun Leung Kwan e Ping Bin Lee, venceram o Grande Prêmio Técnico. O filme levou o César francês de melhor filme estrangeiro – mesmo tendo a França como co-produtora. Teve indicação ao Bafta, o Oscar britânico, na categoria de melhor filme estrangeiro, e também ao David di Donatello, o Oscar italiano, na mesma categoria.
Gostei muito mais do filme ao rever agora, 24 anos depois
Todas as minhas anotações sobre filmes são absolutamente pessoais e intransferíveis, feito dor de dente. Mas quero terminar esta aqui com algo profunda, mas profundamente pessoal, uma espécie de confissão. Se o eventual leitor tiver tido paciência para chegar até aqui, poderia perfeitamente parar de ler, porque o que vai adiante tem a ver apenas com as minhas avaliações sobre o filme.
Há vários meses retirei o DVD do filme – lançado, em edição rica, com vários especiais, pela sempre boa Versátil – do seu lugar na estante, e coloquei ali entre os “a ver”. Achava, é claro, que era um título importante para estar neste + de 50 Anos de Filmes.
Ao finalmente rever, sozinho, Mary ali ao lado trabalhando, fui percebendo que me lembrava bem pouco da trama. Me lembrava muito bem da música, da trilha sonora – porque ouvi muito o CD, e ele está no que chamo de A Rádio Sérgio Vaz, as 15 mil músicas nos meus iPods. Então fui me lembrando das sequências em que Su Li-zhen-Maggie Cheung caminha em leve, suave câmara-lenta ao som da fantástica trilha sonora.
Depois que terminei de ver – e vi parando muito, e voltando para ver de novo uma sequência, para checar se havia entendido corretamente um diálogo, coisa típica de quem vê filme em DVD (ou no streaming também, claro) –, fiquei curioso para checar quando foi que tinha visto, e o que havia escrito.
Não escrevi uma linha sequer de comentário. Apenas anotei os dados básicos do filme, a data – 24/2/2001 –, o lugar – a então Sala UOL de Cinema, na Fradique Coutinho, em Pinheiros, e tasquei duas estrelas. Duas estrelas em quatro.
Consigo entender plenamente: em 2001, seguramente devo ter achado o filme cheio de maneirismos, de criativóis, de fogos de artifício, de invencionices formais – e, diabo, eu não gosto disso.
Pois é.
Enquanto via o filme agora, 24 anos depois, achei que ele é, sim, cheio de maneirismos, de criativóis, de fogos de artifício, de invencionices formais. Só que é tudo maneirismo, criativol, fogos de artifício, invencionice bonito pra cacete.
Não tem jeito. É um filme cheio de maneirismos, de criativóis, de fogos de artifício, de invencionices formais – mas é belíssimo.
Anotação em fevereiro de 2025
Amor à Flor da Pele/Fa yeung nin wah/In the Mood for Love
De Wong Kar-Wai, Hong Kong-França, 2000
Com Tony Leung (Chow Mo-wan),
Maggie Cheung (Su Li-zhen, a sra. Chan)
e Siu Ping Lam (Ah Ping, o amigo de Chow), Rebecca Pan (sra. Suen, a locadora do casal Chan), Lai Chen (sr. Ho, o patrão da sra. Chan), Joe Cheung (outro locatário do sr. Koo), Chan Man-Lei (sr. Koo, o locador do casal Chow), Chin Tsi-ang (Amah, a criada da sra. Suen), Roy Cheung (a voz do sr. Chan), Paulyn Sun (a voz da sra. Chow)
Argumento e roteiro Wong Kar-Wai
Fotografia Christopher Doyle, Pun Leung Kwan e Ping Bin Lee
Música Michael Galasso e Shigeru Umebayashi
Montagem William Chang
Direção de arte Lim-Chung Man
Figurinos William Chang
Produção Wong Kar-Wai, Jet Tone Production, Block 2 Pictures
Paradis Films.
Cor, 98 min (1h38)
R, ***1/2
Título nos EUA, Reino Unido, França e Itália: “In the Mood for Love”. Em Portugal: “Disponível para Amar”.
Olá Sérgio,
Espero que esteja tudo bem por aí. Por aqui tá tudo bem, tá tudo certo.
Estava aguardando essa resenha há um bom tempo, porque queria saber qual seria sua nota, mas principalmente sua visão sobre esse filme que assim como Medianeras trata dos acasos que o amor pode gerar na vida de duas pessoas, e concordo contigo quando diz que essa é a mais triste história de amor que não aconteceu. Porém, mesmo sendo assim é muito gratificante acompanhar a jornada desses dois protagonistas que quando se encontram dá para sentir a sinergia ao redor deles e que falta apenas atitude de algum deles para algo acontecer.
Eu em minhas anotações no letterboxd e tv time (dois apps sobre filmes que dá para anotar suas impressões e dar nota) dei cotação máxima e favoritei, exatamente por tudo o que disse: parte técnica impecável, trilha sonora brilhante e as atuações excepcionais.
Não sei se sabe, mas mesmo se souber, ai vai uma informação importante: Amor à flor da pele é o segundo filme de uma trilogia desse diretor que tem Dias Selvagens (1990) como primeira parte e 2046 (2004) como última parte.
Aguardo a resenha desses outros filmes…
Um abraço,
Junior Rodrigues