
(Disponível na Franciellen Taynara do YouTube em 3/2025.)
Em 1952, uma década antes das grandes manifestações do movimento feminista, a Metro lançou um filme baseado na autobiografia da primeira mulher a ser aceita como médica em um hospital público de Nova York – a primeira médica a atender pacientes de emergências em ambulância em todo o mundo.
The Girl in White, no Brasil A Jovem de Branco, conta a dura luta de Emily Dunning (1876-1961) para exercer a Medicina no meio absolutamente machista dos hospitais da maior metrópole dos Estados Unidos bem no início do século XX. Foi dirigido pelo competente John Sturges, que depois faria grandes sucessos como Sete Homens e um Destino (1960) e Fugindo do Inferno (1863), e tinha no elenco atores respeitados, famosos da época, June Allyson, Arthur Kennedy e Gary Merrill.
Foi um estrondoso fracasso de público e crítica.
Segundo o IMDb, citando dados oficiais do estúdio, o filme deu um prejuízo à MGM de US$ 292 mil – o equivalente, em moeda de 2018, a US$ 2,8 milhões.
Quando escreveu seus guias de filmes, que foram os mais vendidos do mundo, a partir da década de 1970, Leonard Maltin deu apenas 2 estrelas em 4 para The Girl in White e o definiu como “biografia humdrum de Emily Dunning, a primeira mulher a trabalhar como médica em um hospital público da cidade de Nova York”. Humdrum é monótono, enfadonho.
A crítica publicada pelo New York Times logo após a estréia do filme, em maio de 1952, foi bastante desfavorável. Elogia o trabalho dos atores que fazem os principais papéis, mas entende que “os fatos sobre seu pioneirismo (da protagonista) e a luta contra preconceito, intolerância e má vontade raramente são transformados em impacto dramático”.
Ao ver o filme agora, mais de 70 anos depois do seu lançamento, uns 120 anos depois dos fatos que ele mostra, tive opinião oposta. Tudo bem – pode não ser um filmaço, como foi, por exemplo, Conspiração do Silêncio/Bad Day at Black Rock, que John Sturges lançou três anos depois, em 1955, mas é um bom filme, com belas atuações, direção segura, e uma história impressionante, fascinante mesmo. Não é monótono, enfadonho, de forma alguma, e tem impacto dramático, sim.
Fiquei pensando que o fracasso comercial do filme na época do seu lançamento, em 1952, é bem difícil de entender. Até porque as platéias adoram filmes baseados em histórias reais – e adoram obras passadas em hospitais, os casos, a força de vontade, a fibra dos médicos. Estão aí para comprovar isso séries de imenso, gigantesco sucesso de público – Plantão Médico/ER, com seus 331 episódios em 15 temporadas, Dr. House, com 176 episódios em 8 temporadas, e Grey’s Anatomy, 448 episódios em 21 temporadas.
Um site/blog voltado para profissionais da área de medicina, iclinic, fez uma relação de 52 filmes que tratam de saúde, hospitais. Mais de meia centena de filmes – e não inclui este A Jovem de Branco! https://blog.iclinic.com.br/filmes-que-todo-profissional-da-saude-deveria-assistir/
Não dá para entender como este bom filme sobre a impressionante história real de uma pioneira da história da Medicina foi desprezado.

“A Mdicina é o universo dos homens”
O filme abre com um letreiro, logo após os créditos iniciais: “Um pioneiro é alguém que vai à frente para preparar o caminho para os outros. Emily Dunning, que viveu em Nova York na virada do século, era uma pioneira. Esta é sua história.”
Não haverá outros letreiros com as datas exatas dos fatos – apenas essa menção à virada do século. Como Emily Dunning, nascida em 1876, graduou-se Faculdade de Medicina da Universidade Cornell em 1901, as primeiras sequências do filme se passam, portanto, nas últimas décadas do século XIX. Na abertura da narrativa, Emily é bem jovem, adolescente ainda; a mãe está esperando mais um bebê, e começa a passar mal. A garota vai correndo a uma loja próxima para tentar telefonar para algum médico. Uma freguesa indica o dr. Yeomans, que atende ali perto.
Quando Emily chega ao endereço indicado e se depara com uma mulher, pergunta pelo médico. Para surpresa da garota, a dra. Marie Yeomans (o papel de Mildred Dunnock (à direita na foto acima) responde que ela é a médica.
Claro que a médica conduz com perfeição o parto e o nascimento do novo irmão de Emily – fazendo a garota ajudá-la nos procedimentos. (O filme mostra três irmãos; na verdade, Emily teve quatro.)
A dra. Yeomans terá uma importância imensa na história de The Girl in White. Ficam amigas a médica experiente e a jovenzinha. E, ao terminar o secundário, Emily anuncia que pretende estudar Medicina. A ducha de água fria que a dra. Yeomans lança sobre a garota é impressionante:
– “Não tenho muita certeza se eu seria uma médica hoje se tivesse que começar tudo de novo. Completa-se o curso de Medicina e todos os outros conseguem residência. Mas nós não conseguimos – porque os hospitais da cidade não aceitam mulheres. Para os profissionais de Medicina e para o público em geral, não passamos de parteiras – privilegiadas por poder acrescentar um MD (medical doctor) ao nome.”
Emily, assombrada, assustada com o que ouve: – “Mas você conseguiu.”
– “Sim, abri meu consultório. Enfrentei intolerância, preconceito… Esqueceu da primeira vez que entrou neste consultório? Você quase saiu correndo quando me viu.”
– “Bem, eu…”
– “Você não foi nenhuma exceção. Está vendo estes livros? (Ela aponta para grossos livros médicos em sua estante.) Escrevi quatro deles. Médicos os consultam, professores os usam para ensinar. Sou uma autoridade. Sou também uma mulher. Emily, a Medicina é um universo dos homens.”
Mas Emily é uma pessoa determinada. E entra na faculdade de Medicina de Cornell.

“Mas eu sou homem!”, diz o namorado. Vira ex-namorado
Na faculdade, ela sofre. Enfrenta os frequentes gracejos, piadinhas dos colegas – mas segue em frente. Quando mais a agridem, mais ela estuda.
Vai surgindo uma amizade entre ela e um dos colegas de classe, Ben Barringer (o papel de um Arthur Kennedy muito, muito jovem). Fica muito óbvio que Ben está se apaixonando pela moça.
Quando estamos com uns 18 minutos de filme, Ben pede Emily em casamento.
Ela argumenta que os dois ainda têm muitos anos de estudo à frente: – “Você estará em Harvard, eu em Nova York. Que tipo de casamento seria esse?”
Ele: – “Bom… Emily… Numa família bem organizada, um médico só já basta.”
Ela: – “Não vejo qual é a graça. O que eu mais quero neste mundo é ser médica. Você tem que entender. Você sente a mesma coisa.”
Ele: – “Mas eu sou um homem!”
É duro…
Depois desse diálogo, os dois vão passar anos sem se ver.

As mulheres não se dão bem na ciência, diz o médico-chefe
Formada, Emily se sai maravilhosamente bem nos exames para ser admitida para fazer residência médica no Gouverneur Hospital, na Lower Manhattan – mas não é admitida. Faz-se passar por uma paciente e consegue então se encontrar com o médico-chefe do hospital, o dr. Seth Pawling (o papel de Gary Merrill, naquela época marido de Bette Davis – juntos, haviam feito dois anos antes a obra-prima A Malvada/All About Eve).
– “Eu fiquei entre os primeiros colocados durante todo o curso de Medicina”, ela diz, depois de pedir desculpas por usar aquele artifício para conseguir falar com ele. “Acha justo me negar o direito de pôr em prática tudo o que aprendi?
O médico-chefe: – “Sinto dizer que sim. Há 3 mil anos, as mulheres se limitam ao papel de parteiras, na Medicina. Já parou para pensar por quê?”
Ela: – “Medo da competição.”
Ele: – “Pode ser. Mas há uma série de outras objeções. Biologia, pura e simplesmente. Considerações específicas que têm que ser levadas em conta. A Medicina é uma profissão que deve se basear na ciência. E as mulheres têm uma tendência a confundir emoções com fatos. Nosso hospital depende de verba pública. E os pacientes não costumam ser vanguardistas ou progressistas. Eles só querem convalescer.”.
É duro… 3 mil anos de machismo. É duro.
A dra. Yeomans vai então mexer seus pauzinhos. Conversa com o comissário de hospitais da Prefeitura de Nova York (o papel de Curtis Cooksey). Consegue que o comissário ordene que Emily seja admitida no Gouverneur Hospital.
Isso é o que mostra o filme – uma forma simples e rápida de contar como a coisa aconteceu. Segundo a Wikipedia, para ser admitida no hospital Emily contou com o apoio de figuras influentes da política e da religião.
Não foi nada fácil. Nada foi fácil. A implicância, as piadinhas, as besteiras dos colegas de faculdade vão parecer coisa pouca comparado ao que a dra. Emily Dunning vai enfrentar no hospital. Muitos dos médicos haviam posto seus nomes em um abaixo-assinado pedindo à direção do hospital para rever a decisão e expulsá-la.
O que o filme mostra é que ela, por sua coragem, resistência – e competência, é claro – foi aos poucos, bem aos poucos, conseguindo conquistar a simpatia de mais e mais gente no hospital.
Teve a ajuda de um velho amigo: Ben Barringer já estava trabalhando lá quando ela chegou. Capaz da atitude machista de entender que Emily teria que abrir mão da profissão para se casar com ele, Ben, no entanto – é o que o filme mostra claramente – era uma boa pessoa.

A ambulância em disparada – uma sequência extraordinária
Insisto: uma história destas – e, diacho, uma história real destas – não tem absolutamente nada de monótona, de enfadonha.
Há uma sequência extraordinária, muitíssimo bem realizada, quando estamos ali com 37 dos 93 minutos do filme. Como todos os médicos que estão fazendo residência no hospital, Emily é incluída na lista dos plantonistas que farão atendimento de emergência em ambulância. No dia do seu plantão, chega uma chamada para atendimento a um homem que se acidentou em um píer do porto, em tal e tal localidade. O condutor da ambulância, Alec (Jesse White), um homem grande, corpulento, diferentemente de tantos médicos no hospital, não demonstra má vontade, preconceito, com o fato de que o profissional que ele vai levar é uma mulher.
E então a câmara do diretor de fotografia Paul Vogel, sob as ordens dele e de John Sturges, segue a ambulância em uma corrida desenfreada pelas ruas de Nova York, enquanto Emily se segura firme para não ser lançada para fora.
Era a primeira vez, na história da humanidade, que uma médica mulher era conduzida por uma ambulância rumo ao local de uma emergência.
Estávamos na primeira década do século XX. A ambulância era uma charrete, puxada a cavalo, no meio de um número imenso de charretes que corriam pelas ruas da já então maior metrópole dos Estados Unidos.
Monótono, enfadonho é a vovozinha.
Sim, é verdade que essa aí é a única sequência assim de ação do filme. Mas, diacho, isto aqui não é um filme de ação – é a cinebiografia de uma personalidade importante, fascinante!
O roteiro escrito por Irmgard von Cube e Allen Vincent dá ênfase – de maneira bastante correta, me pareceu – às experiências de Emily na faculdade e depois no hospital, e às suas relações com os colegas, especialmente a amiga e inspiradora, a dra. Yeomans, o colega Ben Barringer e o chefe, dr. Seth Pawling. (Na foto, June Allyson-Emily, Gary Merrill-Seth e Arthur Kennedy-Ben.)

Aqui se revela algo que o filme não mostra
Seth Pawling, o médico-chefe do hospital, vai aos poucos sendo obrigado a admitir que a moça é competente, trabalhadora, esforçada, e tem um ótimo jeito para conviver com os pacientes. Lá mais para o fim da narrativa, mostra-se que o dr. Pawling passou a ficar interessado em conquistar a moça. O que formaria, claro, um triângulo amoroso, já que Ben – depois da besteira que havia feito ao unir o pedido de casamento com a condição de ela virar dona de casa – volta a demonstrar que ama Emily.
No hospital, Ben Barringer divide seu tempo entre os deveres de médico com pesquisas que realiza fora do horário normal de trabalho. O filme o mostra fazendo pesquisas com radiação em ratos com câncer – e em uma sequência lá ele diz para Emily que gostaria mesmo de se dedicar totalmente às pesquisas. Quando a narrativa se aproxima do fim, Ben se candidata a uma vaga de pesquisador em uma faculdade de Medicina de Paris. E – acho que essa informação não chega a ser um spoiler – ao final viaja para a Europa, depois de, finalmente, finalmente, dar um beijo apaixonado em Emily.
A história termina aí – o espectador pode imaginar o que quiser. Quando afinal o dr. Ben Barringer voltar de Paris, a dra. Emily Dunning estará esperando por ele? Ou cada um vai seguir por outros caminhos?
O filme deixa inteiramente em aberto o que acontecerá.
Quando, em 1950, ela lançou sua autobiografia, Bowery to Bellevue – que, como o filme, relata desde sua adolescência até os primeiros anos como médica no Gouverneur Hospital –, ela se assinava Emily Dunning Barringer.
A dra. Emily Dunning deve seguramente ter gostado do filme
Hollywood foi rápida no gatilho: o livro saiu em 1950, o filme foi lançado, como já foi dito, em maio de 1952. A dra. Emily Dunning Barringer (na foto) estava com 76 anos. Viveria até os 85.
Deve haver em algum lugar um registro da opinião da biografada sobre o filme, mas, em uma busca rápida, preguiçosa, não achei. Seguramente deve ter gostado. Certamente deve ter aprovado a escolha de June Allyson para viver a Emily Dunning do filme.
June Allyson era uma atriz simpática, muito querida pelo público. Não é uma mulher de beleza acachapante, faiscante, como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Ava Gardner, Kim Novak. A língua inglesa tem uma expressão usadíssima para atrizes como ela, mulheres bonitas mas não de beleza extraordinária: girl-next-door. Garota da vizinhança. O banco de dados Baseline usa a expressão na primeira frase do seu verbete sobre June Allyson (1917-2006):
“Estrela vivaz de musicais da MGM nos anos 1940, com uma voz rouca e uma qualidade de melancólica girl-next-door. Depois de uma carreira de sucesso na Broadway, Allyson apareceu em diversos curtas e depois fez sua estréia em longa, recriando seu papel de ingênua animada na versão cinematográfica do musical da Broadway de 1941 Best Foot Forward (1943, no Brasil A Rainha dos Corações). Muitas vezes escalada para papéis doces e saudáveis, Allyson amadureceu para papéis de esposa solidária nos anos 1950 até mudar de rumo para interpretar a esposa mal-humorada em The Shrike (1955, no Brasil Almas em Desespero). Foi casada com Dick Powell de 1945 até a morte dele em 1963.”
Entre os filmes mais marcantes de sua carreira de 75 títulos, estão Quatro Destinos/Little Women (a versão de 1949 do clássico de Louisa May Alcott, o com Elizabeth Taylor e Janet Leigh), Sangue de Campeão/The Stratton Story (1949), Como Ganhar um Marido/The Reformer and the Redhead (1950), Um Homem e Dez Destinos/Executive Suite (1954), Música e Lágrimas/The Glenn Miller Story (1954).
Outro dia mesmo vimos O Mundo é da Mulher/Woman’s World, também de 1954, em que ela interpreta a mulher de um executivo de uma grande indústria automobilística. Esse filme tem sete atores importantes, famosos, em sua época – e o nome de June Allyson aparecia em segundo lugar nos cartazes e nos créditos iniciais, um indicativo de prestígio dela na indústria.
Insisto, repito: apesar de ter sido esnobado por crítica e público, este A Moça de Branco é bastante interessante. É um bom filme.
Anotação em março de 2025
A Jovem de Branco/The Girl in White
De John Sturges, EUA, 1952
Com June Allyson (dra. Emily Dunning),
Arthur Kennedy (dr. Ben Barringer),
Gary Merrill (dr. Seth Pawling, o médico-chefe do hospital),
Mildred Dunnock (dra. Marie Yeomans),
Jesse White (Alec, o condutor de ambulância), Marilyn Erskine (enfermeira Jane Doe), Herbert Anderson (dr. Barclay), Gar Moore (dr. Graham, o mau caráter), Don Keefer (dr. Williams), Ann Tyrrell (enfermeira Bigley), James Arness (Matt), Curtis Cooksey (o comissário de hospitais), Carol Brannon (enfermeira Wells), Ann Morrison (enfermeira Schiff), Jo Gilbert (enfermeira Bleeker), Erwin Kalser (dr. Schneider), Kathryn Card (sra. Lindsay), Jonathan Cott (dr. Ellerton), Joan Valerie (enfermeira Hanson)
Roteiro Irmgard von Cube, Allen Vincent
Baseado na autobiografia de Emily Dunning Barringer, “Bowery to Bellevue”
Adaptação Irmgard von Cube, Philip Stevenson
Fotografia Paul Vogel
Música David Raksin
Montagem Ferris Webster
Direção de arte Cedric Gibbons, Leonid Vasian
Figurinos Helen Rose, Gile Steele.
Produção Armand Deutsch, MGM.
P&B, 93 min
***
