True Detective – Terra Noturna / True Detective – Night Country

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível na HBO em 3/2024.)

True Detective – Night Country, no Brasil Terra Noturna, apresenta um grande mistério no primeiro de seus seis episódios de cerca de 60 minutos cada. Os oito cientistas de uma estação de pesquisa em lugar remoto do Alasca desaparecem de repente – e mais tarde os corpos são encontrados, nus, no meio da neve.

À medida em que vamos vendo mais episódios, o mistério fica cada vez mais denso, e novas questões vão surgindo, tornando a trama cada vez mais complicada.

A série faz questão absoluta de revelar, logo na abertura, e por escrito, o onde e o quando. Assim:

“Alasca. 150 milhas ao Norte do Círculo Ártico.”

Meu, é quase no Pólo Norte. Como é possível que pessoas vivam naquele lugar?

“17 de dezembro. O último pôr-do-sol do ano.”

A ação se passa entre o pôr-do-sol do dia 17 de dezembro até o último dia do ano – duas semanas sem um raio de sol. Catorze dias formados por 24 horas de noite.

É de arrepiar.

Como se fosse um livro, este Terra Noturna tem uma epígrafe. Antes da primeira tomada, antes dos dois letreiros que informam o onde e o quando, o espectador lê:

“Pois não sabemos com que bestas a noite sonha quando suas horas se tornam tão longas que nem Deus fica acordado.”

No segundo episódio, um personagem secundário diz uma frase impressionante, mais ainda do que a epígrafe:

– “É uma noite longa demais. Até os mortos ficam entediados.”

Fala-se muito dos mortos neste Terra Noturna. Os mortos aparecem para vários dos habitantes daquela cidade de Ennis, perdida no meio do gelo eterno e da escuridão que dura semanas. Volta e meia os mortos aparecem na tela, e até mesmo nós, espectadores – que estamos felizmente muito longe de Ennis e temos a luz do Sol durante metade das 24 horas em que o planeta gira em torno de si mesmo – os vemos.

Ali pelo quinto e penúltimo episódio, a gente até começa a desconfiar que foram os mortos que levaram os cientistas da estação de pesquisa Tsalal e depois os abandonaram, nus e mortos, no meio da neve.

Uma policial excelente – mas uma pessoa complicada

A personagem principal da série é a chefe de polícia de Ennis, Liz Danvers – o papel dessa artista fascinante, maravilhosa, que é Jodie Foster. E a criadora da história e do roteiro e diretora dos seis episódios de Terra Noturna, a mexicana Issa López, construiu um personagem fascinante para Jodie Foster interpretar.

Liz Danvers é uma excelente policial. Uma, com perdão pela obviedade, true detective. A tal ponto que seu superior hierárquico, o capitão Ted Connelly (Christopher Eccleston), o cara que a nomeou para ocupar a chefia do destacamento policial da remota cidade de Ennis, é capaz de admitir que ela é uma profissional muito melhor do que ele, e a nomeação teve o objetivo de promovê-la, mas também o de enviá-la para longe dele.

Uma policial de primeiríssima qualidade – mas um ser humano complicado, atormentado, infeliz, sempre mal-humorado, ranzinza – uma daquelas pessoas de que ninguém gosta. Uma chata de galocha.

Motivo para tormento ela teve de sobra na vida. Perdeu o filhinho, Holden, quando ele era bem garotinho, de uns seis anos, apenas, em um acidente de carro. Perdeu também o marido – que a deixou com a filha dele, Leah (Isabella LaBlanc), de casamento anterior, com uma mulher inuíte. (Mais adiante falo dos inuítes.) Com uns 16, 17 anos, Leah está no auge da aborrescência, naquela fase de contestação absoluta de todo tipo de autoridade – e, naturalmente, a relação entre ela e a madrasta é dificílima.

De uma coisa, apenas, Liz Danvers não pode reclamar: a falta de homem. O espectador verá que ela traça todos os que passarem pela frente. O capitão Ted Connelly é só um exemplo. O professor de Ciências da high school do lugar – a quem ela vai pedir informações sobre o tipo de atividade dos cientistas da estação de pesquisa Tsalal é outro. O marido de Kate McKitterick (o papel de Dervla Kirwan) é outro – e isso é um problema um tanto sério, porque essa Kate McKitterick é a principal executiva da companhia mineradora que é responsável por boa parte dos empregos que existem na região.

A mineradora Silver Sky é fundamental na trama de Terra Noturna.

O jovem Peter Prior (Finn Bennett), policial sério, dedicado, a quem Liz Danvers passa muito mais tarefas do que os ombros do rapaz são capazes de carregar, vai descobrir que a Silver Sky é uma das principais financiadoras da estação de pesquisa Tsalal. Com o aprofundamento da investigação, vão ficar cada mais claros os muitos laços que ligam a mineradora à estação de onde foram retirados misteriosamente os oito cientistas.

Como é tradição nas produções de Hollywood, grandes empresas, grandes corporações são sempre suspeitas de algum tipo do crime, de mal-feito – abuso de poder, corrupção, poluição. A água servida às casas de Ennis está cada vez mais suja; aumentam os números de casos de doenças, de crianças mortas – e muita gente tem a certeza de que aquilo é de responsabilidade da mineradora Silver Sky.

Uma antiga parceira volta a colaborar com a policial

Alguns anos antes do desaparecimento e da morte dos cientistas da Tsalal, uma jovem mulher inuíte chamada Annie Kowtok (o papel de Nivi Pedersen, que aparece em vários flashbacks) havia sido brutalmente assassinada, com o corpo inteiramente desfigurado com dezenas e dezenas de golpes. Parteira de profissão, Annie havia se dedicado a investigar as atividades da mineradora, e se tornado uma ativista na luta por exigir que a Silver Sky obedecesse a padrões de respeito ao meio ambiente.

O assassinato de Annie Kowtok jamais havia sido esclarecido – apesar dos esforços todos da policial que investigou o caso, Evangeline Navarro (o papel de Kali Reis, na foto acima). Evangeline, ela também uma mulher inuíte, é uma policial séria, esforçada, batalhadora – um tanto arrebatada demais, esquentada demais, é verdade, mas extremamente dedicada.

Na verdade, resolver o mistério que cercava o assassinato de Annie Kowtok havia virado uma obsessão para Evangeline.

Anos antes, Evangeline havia trabalhado ao lado de Liz Danvers. Haviam sido bem próximas as duas policiais – ambas competentes, dedicadas, mas fisicamente muitíssimo diferentes uma da outra. Liz-Jodie Foster é branquela, lourinha, baixinha, pele enrugada mas intocada. Evangeline-Kali Reis é negra, um mulherão grande, forte, toda cheia de tatuagens.

Depois de um caso de abuso doméstico em que – essa era a versão oficial – o marido espancador havia cometido suicídio diante das duas policiais que chegavam para prendê-lo, Liz e Evangeline haviam se distanciado. Na verdade, Liz afastou Evangeline das investigações e a passou para a patrulha rodoviária.

Depois do desaparecimento e das mortes dos cientistas da estação de pesquisa Tsalal, no entanto, apesar da má vontade inicial, Liz aceita que Evangeline trabalhe com ela na investigação. Evangeline está convicta de que o caso da Tsalal tem a ver com o assassinato, lá atrás, de Annie Kowtok.

As duas mulheres vão investigar juntas – com a ajuda inestimável do rapaz Peter Prior. O pai de Peter, Hank (John Hawkes), ele também policial, não vai ajudar em praticamente nada. É um peso morto. Bem mais adiante, o espectador verá que esse Hank não é apenas um peso morto – é pior que isso.

A palavra “esquimó” não se usa mais. Agora é inuíte

Inuítes. Boa parte da população da cidade de Ennis, boa parte das pessoas que vemos na tela ao longo dos seis episódios deste Terra Noturna é inuíte.

Fui conferir: no Aurélio não existe inuíte. Nem no ótimo Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.

Inuíte é um termo novo, que substitui esquimó – a palavra esquimó, eskimo em Inglês, se tornou proibida pelo politicamente correto. É tida como ofensiva aos esquimós, perdão, aos inuítes. No Inglês politicamente correto de hoje, usa-se Iñupiat, ou Iñupiaq.

Bem, isso aí que afirmei no parágrafo acima é uma simplificação. Segundo a Wikipedia em Português, “os dois principais povos conhecidos como ‘esquimós’ são os inuítes – incluindo os povos iñupiat do Alasca, os inuítes groelandeses e o agrupamento de inuítes do Canadá – e os iúpiques do leste da Sibéria e do Alasca.”

Ensina ainda a Wikipedia: “A palavra ‘esquimó’ deriva de expressões que os algonquinos usavam para designar seus vizinhos do norte. Os inuítes e iupiques geralmente não usam essa denominação para se referir a si próprios, e os governos do Canadá e da Groenlândia (país constituinte do reino da Dinamarca) também deixaram de usá-la em documentos oficiais. Nesses países, o termo ‘esquimó’ é predominantemente visto como pejorativo e foi amplamente substituído pelo termo ‘inuíte’ ou termos específicos para um grupo ou comunidade em particular.”

Tá vendo? Quem foi que disse que série policial não é cultura?

Bem. Para a série, o importante é que a criadora, roteirista e diretora Issa López usou muito bem, para efeitos dramáticos, essa noção generalizada entre todas as pessoas de que os povos originários têm uma relação diferenciada com a natureza, os animais, os mortos, o sobrenatural.

Isso vale tanto para os esquimós, perdão, os inuítes do extremo Norte das Américas quanto para os apaches, sioux, guaranis, pataxós, para os aborígenes australianos, os astecas da terra de Issa López, os incas, os maias.

Dizer que os povos originários eram supersticiosos seria uma simplificação absurda. Não é isso – é algo muito mais amplo, mais profundo. A crença difundida entre as pessoas ditas “civilizadas”, basicamente os descendentes dos europeus, é de que os povos originários têm de fato um relacionamento diferenciado com o mundo, com a natureza. Têm talvez um sexto sentido muito mais desenvolvido do que nós, os “civilizados”.

Na ficção criada por Issa López, muitos dos inuítes têm percepções que os brancos não têm. Como o garotinho Cole interpretado por Haley Joel Osment em O Sexto Sentido (1999) de M. Night Shayamalan, they see dead people. Eles vêem gente morta.

E não só os inuítes. Há uma personagem fascinante na série, chamada Rose Aguineau (interpretada, em uma participação especial, pela ótima irlandesa Fiona Shaw), uma européia branquela que se mudou para aquele fim de mundo e vive feliz até nas semanas inteiras sem luz do Sol. Rose Aquineau vê gente morta, conversa com eles. Na boa.

True Detective é assim uma marca, um guarda-chuva

Outra coisa que aprendi a partir deste Terra Noturna é que Hildred Castaigne, que assina aquela bela epígrafe da série – “Pois não sabemos com que bestas a noite sonha quando suas horas se tornam tão longas que nem Deus fica acordado” – não existe. Quer dizer, não é um ser humano real.

Pois é. Série policial também é cultura mesmo. Depois de ver a série, fiquei curioso em saber quem é ou quem foi essa Hildred Castaigne, autora dessa frase tão interessante. De que nacionalidade será? Que livros escreveu? Então fui perguntar ao Tio Google – e descobri que Hildred Castaigne é a protagonista e narradora do conto “The Repairer of Reputations”, do livro The King is Yellow, do escritor norte-americano Robert W. Chambers. O livro, publicado em 1895, reúne contos de terror e fantasia.

É preciso registrar também que não existe no Alasca uma cidade chamada Ennis. O nome é fictício – foi inventado para a série, exatamente como Vinci, o nome da cidade californiana, vizinha de Los Angeles, em que se passa a ação da Segunda Temporada de True Detective.

True Detective é de fato uma série diferente de quase todas as outras, já que cada temporada se encerra em si mesma, não havendo qualquer ponto de contato entre a trama de uma com as das outras. Os personagens de cada temporada não aparecem nas outras, nem mesmo de passagem. Uma história não tem absolutamente nada a ver com as outras. Nem sequer os locais em que os eventos se passam são os mesmos. A primeira é ambientada no Sul, na Louisiana. Na segunda, tudo acontece na Califórnia, em Los Angeles e arredores. Esta aqui, passada no Alasca, é a quarta temporada – a única que teve um subtítulo, Night Country, Terra Noturna.

As três primeiras temporadas – lançadas em 2014, 2015 e 2019 – saíram da cabeça do mesmo sujeito, Nic Pizzolatto, criador e principal roteirista. Estranhamente, nesta ele é creditado como um dos vários produtores executivos e com a seguinte frase: “baseado na série True Detective, criada por Nic Pizzolatto”.

Me ocorreu que, mais que exatamente uma série, True Detective é assim uma marca registrada que funciona como uma guarda-chuvas para, até agora, quatro minisséries independentes.

Quatro minisséries separadas, independentes – que têm em comum apenas o clima, a atmosfera. Cada uma se passa em um local geográfico diferente, mas em todos eles há um mundo pesado, torto, infeliz, habitado por criaturas profundamente amarguradas, angustiadas.

Night Country é frio, dark e feminino”

Diz o IMDb que a autora e diretora Issa López quis criar um “espelho escuro” da primeira temporada, aquela passada na Louisiana, em que Mathew McConaughey e Woody Harrelson interpretam os protagonistas, os detetives Rust Cohle e Marty Hart. “Enquanto True Detective é masculino e suarento, Night Country é frio, dark e feminino”, disse a realizadora mexicana.

Em entrevistas, Issa López apresentou vários elementos que a influenciaram para criar a trama de Terra Noturna:

* o filme O Enigma de Outro Mundo/The Thing (1982), de John Carpenter, em que um grupo de pesquisadores é perseguido por extraterrestres na Antártida;

* o hotel Overlook de O Iluminado/The Shining, gigantesco e desabitado durante vários dias no auge do inverno;

* a nave espacial Nostromo de Alien – O 8º Passageiro (1979), de Ridley Scott;

* a canção “Bury a Friend”, de Billy Eilish – que é tocada durante os créditos iniciais de cada um dos seis episódios.

As filmagens foram no Alasca e também na Islândia, com um orçamento de US$ 60 milhões, e duraram vários meses gelados, entre novembro de 2022 e abril de 2023. O ambiente durante as filmagens, disse a criadora e diretora, foi o mesmo em que vivem os personagens: “Os atores estavam com frio, toda a equipe estava com frio”, disse Issa López. “Eu sou mexicana, então não gosto muito do frio.”

Issa López nasceu na Cidade do México, em 1971. Escreveu os roteiros de 11 longa-metragens produzidos em seu país – quatro deles dirigidos por ela própria. Um deles, Os Tigres Não Têm Medo, no original Vuelven, que o IMDb descreve como “um conto de fadas sombrio sobre um grupo de cinco crianças tentando sobreviver à horrível violência dos cartéis de drogas”, recebeu 29 prêmios e 26 indicações. Só ao Ariel, o mais importante do cinema mexicano, foram nove indicações, com duas vitórias.

A mulher é um talento incrível, fantástico.

Anotação em março de 2024

True Detective – Terra Noturna / True Detective – Night Country

De Issa López, criadora, diretora, roteirista, EUA, 2024

Com Jodie Foster (Liz Danvers, a chefe da polícia de Ennis, Alasca),

Kali Reis (policial Evangeline Navarro),

Finn Bennett (Peter Prior, o jovem policial), Isabella LaBlanc (Leah Danvers, a filha adotiva de Liz), John Hawkes (policial Hank Prior, pai de Peter), Anna Lambe (Kayla Prior, a mulher de Peter), Xavier Osmanson (Darwin Prior, o filinho de Peter e Kayla). Joel Montgrand (Eddie Qavvik, o namorado de Evangeline), Aka Niviâna (Julia Navarro, a irmã de Evangeline), Nivi Pedersen (Annie Kowtok, a parteira ativista assassinada), Dervla Kirwan (Kate McKitterick, a executiva da empresa mineradora), Klaus Tange (Otis Heiss, o engenheiro viciado), Christopher Eccleston (capitão da Polícia Ted Connelly), Owen McDonnell (Raymond Clark, o cientista que namora Annie), Kathryn Wilder (Blair Hartman, a faxineira),

e, em participação especial, Fiona Shaw (Rose Aguineau)

Fotografia Florian Hoffmeister

Música Vince Pope       

Montagem Matt Chesse 

Casting Francine Maisler

Desenho de produção Daniel Taylor

Figurinos Alex Bovaird 

Produção Layla Blackman, Sam Breckman, Princess Daazhraii Johnson, Cathy Tagnak Rexford, Anonymous Content, Neon Black, Pastel, Parliament of Owls, Passenger.

Cor, cerca de 360 min (6h)

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