Quando os Anjos Dormem / Cuando los Ángeles Duermen

 

 

 

 

 

Nota: ★★☆☆

(Disponível na Netflix em 9/2024.)

Quando os Anjos Dormem, produção espanhola de 2018, é um filme de terror, um dos mais tétricos, apavorantes que pode haver. Não tem fantasmas, vampiros, lobisomens, espíritos do outro mundo – apenas o horror de que são capazes os seres humanos, essa raça capaz, como diria Caetano Veloso, de erguer coisas belas mas que, quando se trata de destruir, é capaz das maiores atrocidades imagináveis e nem sequer imagináveis.

Um filme de terror – mas não o terror psicológico de grandes obras como Repulsa ao Sexo/Repulsion (1965) ou O Inquilino/Le Locataire (1976), ambos de Roman Polanski, um refinado mestre do gênero. Não, não, não – o terror do filme escrito e dirigido por Gonzalo Bendala é material, físico, visível, e muitas vezes explícito, quase como nos slasher movies, os filmes de terror para adolescentes que não passam muito bem da cabeça, aqueles em que jorra sangue da carótida cortada com faca, em close up.

Quase como nos slasher movies. Quase, mas não exatamente, porque há muita explicitude, mas não chega ao exagero do exagero dos filmes de terrir, e, ao contrário deles, não tem nada a ver com o riso, o achar graça de sangueira explícita. É um filme para aterrorizar adultos, e não adolescentes.

Quando os Anjos Dormem é um filme de terror violento, aterrador, chocante, brutal, agressivo.

Verdade, há adjetivos demais aí. Não sou muito econômico no uso de adjetivos. Mas ainda acrescentaria mais um. O terror de Quando os Anjos Dormem é nojento.

Na estrada, à noite, exausto, Germán cochila ao volante

Praticamente toda a ação do filme se passa em uma única noite – a rigor, do entardecer de um dia até o amanhecer do dia seguinte. É o dia do aniversário de Estela (Sira Alonso), a filhinha de uns seis anos de Germán (Julián Villagrán), um executivo de uma grande companhia seguradora, e Sandra (Marian Álvarez).

Por algum motivo que o roteiro de Gonzalo Bendala não se preocupa em nos contar, Germán trabalha em uma cidade um tanto distante daquela em que vive, e sua presença na empresa se faz necessária até o início daquela noite. Sandra cobra com insistência que o marido chegue logo, o quanto antes, mas a estrada, naquele início de noite, está congestionada. Para piorar, bem no começo do trajeto um sujeito em uma caminhonete dá uma ré repentina, bate na frente do carro de Germán, quebrando o farol da direita.

Tudo vai piorar cada vez mais.

Lá adiante, na estrada, Germán tem sono, dá uma cochilada, o carro faz um S – e logo atrás vinha uma viatura da Guardia Civil. Os dois policiais observam o farol quebrado, exigem um teste de bafômetro. Germán não havia bebido nada, mas os policiais percebem que ele tem sinais de exaustão, e exigem que ele passe a noite em um hotel à beira da estrada. Pressionado pela mulher, o sujeito não cede; espera que a viatura policial se distancie um pouco, volta para o carro, retoma a viagem.

A essa altura, o filme já havia nos apresentado bem rapidamente Silvia (o papel de Ester Espósito). Os pais de Silvia não queriam deixar que ela saísse naquela noite, mas a moça, de uns 17 anos, puxa uma faca para eles e diz que faz o que bem entende. Sai e vai se encontrar com a maior amiga, Gloria (Asia Ortega). As duas se unem a dois conhecidos de Gloria, Mario e El Chato (os papéis de, respectivamente, Daniel Jumillas e Christian Mulas).

O passeio dos quatro jovens inclui umas cheiradas de cocaína, uma trepada de um dos rapazes com Gloria. O outro rapaz tenta ir para cima de Silvia, mas ela o repele e sai do carro.

Lá vem Germán pela mesma estrada. Dá uma nova e rapidíssima cochilada, e acorda ao sentir que o carro deu um solavanco. Havia atropelado Gloria.

Isso acontece quando o filme está chegando a 20 de seus 91 minutos. Os 71 minutos que virão a seguir são longos, intermináveis – parecem durar mais que as 15 horas e 30 minutos de Berlin Alexanderplatz de Rainer Werner Fassbinder.

Várias vezes, ao longo do filme – a partir do momento em que Germán faz a volta na estrada e vai ver como está a pessoa que seu carro atropelou, e tenta levar a garota gravemente ferida para seu carro, enquanto Silvia, histérica, quase em estado de choque, faz tudo o que uma pessoa não deveria fazer – Mary virou o rosto para o lado, para não ter que ver as explicitudes.

Claro, caberia a pergunta: mas então por que raios eu não apertei a teclinha stop, logo ali ao lado? Bem, em parte porque sou meio doido. E também porque tenho um site de filmes, escrevo sobre filmes, diacho!

“O filme provoca um dilema moral”

Ainda no começo desse terror que é Quando os Anjos Dormem, passou pela minha cabeça a lembrança de Depois de Horas/After Hours (1985), o ótimo filme de Martin Scorsese sobre aquela que certamente foi a pior noite da vida do pacato, careta rapaz interpretado por Griffin Dunne, quando ele vai ao Soho visitar uma moça que havia conhecido.

Interessante: as sinopses do IMDb em português sobre os dois filmes são bem parecidas. A de After Hours: “Um processador de texto tem a pior noite da sua vida depois que concorda em visitar uma garota no Soho que conheceu em um café”. A deste Quando os Anjos Dormem: “Um CEO vive a pior noite de sua vida depois de atropelar acidentalmente uma adolescente”.

É, de fato há uma pequenina semelhança. Mas a distância entre eles é amazônica, jupiteriana, coisa assim de alguns milhões de anos-luz.

Minhas opiniões à parte, procuro informações objetivas e outras visões.

O autor e diretor Gonzalo Bendala é da classe de 1978, nascido em Sevilha. Sua filmografia como diretor tem apenas nove títulos, incluindo curtas e episódios de séries de TV. Este Quando os Anjos Dormem foi seu segundo longa-metragem como diretor, depois de Asesinos Inocentes, de 2015, que o IMDb classifica como comédia de humor negro-comédia-crime-mistério-thriller.

Quando os Anjos Dormem não parece ter sido um filme de grande sucesso. Tem nota 5,5 em 10 no IMDb, média das notas dadas por 4,1 mil leitores do site.

Há quem goste muito do filme. Meu amigo Sergio Caldas, cinéfilo de carteirinha, falou bem dele no Facebook – e foi o que me fez ir atrás. Depois que vi, pedi que ele fizesse suas considerações, para ter aqui. Sempre acho fundamental apresentar outras opiniões.

Lá vai o que diz Sergio Caldas:

“A grande sacada de Quando os Anjos Dormem é escancarar que, para o cidadão médio, o ideal de harmonia familiar se sobrepõe ao conceito de moral. O executivo quer fazer ‘a coisa certa’, que é estar presente para esposa e filha, por mais que o trabalho e outras circunstâncias o impeçam. Ele volta para a estrada, apesar da advertência policial, e se envolve em um acidente, bastante previsível, mas, ainda assim, um acidente.

“De novo, ele tenta fazer ‘a coisa certa’, que é levar a moça atropelada a um hospital. Mas a amiga histérica, que quer fodê-lo a todo custo e se recusa a chegar a um acordo, torna-se um obstáculo intransponível. (Aqui meu Xará comete um spoiler, que omito.)

“Para a esposa, os delitos do executivo são irrelevantes. O importante é tê-lo de volta e retomar a vidinha de propaganda de margarina.

“Diante de uma situação extrema semelhante, como nos comportaríamos?”

No blog espanhol Film Dreams, encontro o que me pareceu também uma boa avaliação, assinada por Christopher Laso. Ele deu 3 estrelas em cinco ao filme. Transcrevo trechos:

“O diretor sevilhano Gonzalo Bendala, depois de estrear anos atrás com Asesinos Inocentes, volta a nos presentear com um thriller passado em uma estrada, protagonizado por Julián Villagrán e Marian Álvarez. (…)

“A situação que o protagonista tem que viver poderia acontecer com qualquer um de nós; por isso, o filme é muito realista e o espectador se identifica rapidamente com o protagonista, que é uma pessoa normal que é golpeado por todo o mundo, porque ao ser tão bom torna-se facilmente uma vítima dos outros.

“O filme também provoca um dilema moral, porque faz você se perguntar como você agiria naquela situação, e faz com se pense onde estão os limites do bem do mal. A partir de tudo por que vai passando, Germán vai se dando conta da importância que é para ele sua família.

“Além da dupla protagonista, também se destaca a atuação de Ester Expósito, a jovem que tira o pobre Germán dos trilhos. A fita é uma contínua corrida contra o relógio, em que a ação não pára e cada vez mais você quer ir descobrindo o desenlace.

“Talvez o roteiro pudesse ter sido um pouco mais elaborado e seja o ponto mais negativo da história, mas ainda assim é um filme que fará você passar por momentos agradáveis e se pergunte muitas coisas.”

Para mim, o filme se diverte com o horror que mostra

Sim. Com boa vontade, com um olhar à la Roger Ebert – o crítico que gostava de filmes e de ver filmes, e procurava realçar o melhor de cada obra, e não seus defeitos – dá para ver em Quando os Anjos Dormem essas qualidades que apontam os dois cinéfilos citados, o paulista e o espanhol. O dilema moral. A revisão do conceito de moral.

– “Eu sou uma boa pessoa”, diz, várias, várias vezes esse executivo que muito certamente jamais havia tido, antes daquela n oite, qualquer gesto de violência contra um ser humano. Só que ele diz isso para essa garota Silvia que é uma pessoa completamente, absolutamente insensata, desvairada – e que está sem dúvida quase em estado de choque diante do atropelamento da maior amiga.

E, sim, o filme pode ser visto como uma demonstração de como uma boa pessoa, um bom ser humano, pode se transformar em um animal bestial quando se vê atacado, acuado.

E – de novo – sim, o filme é bem realizado nos aspectos técnicos. Não é uma porcaria, não.

Mas é aterrorizante demais. Violenta, aterradora, chocante, brutal, agressiva, nojentamente aterrorizante.

A sensação que ele me deu é de que, em vez de se chocar com toda o horror que mostra, o filme se compraz dele. Diverte-se com ele.

Credo em cruz.

Anotação em setembro de 2024

Quando os Anjos Dormem/Cuando los Ángeles Duermen

De Gonzalo Bendala, Espanha, 2018

Com Julián Villagrán (Germán),

Marian Álvarez (Sandra, a mulher de German), Ester Expósito (Silvia, a adolescente), Sira Alonso (Estela, a filha de Germán e Sandra), Asia Ortega (Gloria, a outra adolescente), Daniel Jumillas (Mario, o rapaz que sai com Silvia e Gloria), Christian Mulas (El Chato, o outro rapaz que sai com Silvia e Gloria), Adolfo Fernández (o sargento da Guardia Civil), Javier Ruiz de Somavía (Luis, o vizinho), Marisol Membrillo (Rosa), Ramiro Alonso (Antonio), Font García (Eduardo), Antonio Márquez (Guardia Civil 1), Daniel Mantero (Guardia Civil 2), Helena Castañeda (Guardia Civil 3)

Argumento e roteiro Gonzalo Bendala

Fotografia Sergi Gallardo

Música Pablo Cervantes

Montagem Antonio Frutos

Casting Ana Sainz-Trápaga, Patricia Álvarez de Miranda

Direção de arte Vanesa de la Haza

Figurinos Esther Vaquero       

Produção Marta Velasco, Áralan Films.

Cor, 91 min (1h31)

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