Ninguém Escreve ao Coronel / El Coronel No Tiene Quien le Escriba

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 6/2024.)

O diretor Arturo Ripstein e a roteirista Paz Alicia Garciadiego levaram dois anos negociando com Carmen Balsells, a agente literária de Gabriel García Márquez, os direitos de El Coronel No Tiene Quien le Escriba, no Brasil Ninguém Escreve ao Coronel.

A história de como o mexicano Ripstein e o colombiano García Márquez se conheceram, como afinal foi acertada a compra dos direitos, como Paz Alícia trabalhou no roteiro, como o grande escritor reagiu – tudo é absolutamente fascinante. Quase tanto quanto a história do coronel e sua mulher – ou tanto quanto, sem o quase.

É muito bom o filme realizado por Ripstein e Paz Alícia – casados na vida real, parceiros em várias, várias obras. São uma beleza, uma absoluta maravilha a fotografia de Guillermo Granillo (as filmagens foram em locações naturais no estado mexicano de Veracruz), a direção de arte de Antonio Muño-Hierro, os figurinos de Guadalupe Sánchez, as interpretações de todo o elenco, sobretudo dos atores que fazem os papéis principais, Fernando Luján e Marisa Paredes.

Foi uma co-produção México-França-Espanha – Arturo Ripstein teve à sua disposição o equivalente, na época, 1999, a US$ 2 milhões. Uma merrequinha para uma produção hollywoodiana, um orçamento confortável para um drama latino-americano. É importante registrar isso, o orçamento bom – porque o filme demonstra que foi feito com boas condições, além de com talento, essa coisa que não tem preço.

As atuações são sensacionais – mas fotografia, direção de arte, figurinos… Esses quesitos técnicos não ficam atrás; me impressionou muito o extremo cuidado com os figurinos.

Antes de sair de sua casa pobre, bem pobre, para qualquer andada pelas ruas de seu vilarejo pobre, bem pobre, o coronel faz questão de vestir seu melhor terno – o melhor e provavelmente o único ainda inteiro. Um terno de linho branco, agora muito folgado, já que ele e Lola faz muito tempo que comem o mínimo possível, porque não têm dinheiro para mais que o absoluto mínimo. Camisa social branca, terno branco, e, claro, gravata – que ele se põe a acertar diante do espelho velho, gasto, do banheiro.

Toda sexta-feira, o dia em que o Correio chega, o coronel vai até o pequeno porto do vilarejo, e fica à espera do barco que chega pelo rio, com o funcionário que carrega o saco de correspondência. O coronel vai em seguida até a agência do Correio, para ver se finalmente chegou a carta que há 18 anos ele espera – a carta com a informação de que ele passará a receber pensão pelo seu trabalho no Exército.

O cuidado do coronel com seu terno, e o cuidado da produção com os figurinos, são detalhes – mas são importantes no filme. Quase tanto quanto a atuação admirável do mexicano nascido em Bogotá Fernando Luján e da espanhola de Madri Marisa Paredes.

Foi a segunda obra de García Márquez, escrita em Paris

Me ocorreu, depois de ver o filme pela primeira vez agora, um quarto de século depois do lançamento (não tinha tido oportunidade de ver antes), e depois de dar uma olhada no livro e ler alguns textos na internet, que o processo de adaptação para o cinema do romance El Coronel No Tiene Quien le Escriba poderia ser matéria para um semestre inteiro numa escola de cinema.

Mas é preciso haver uma sinopse feita por quem sabe fazer sinopse. Aqui vai o início da descrição da trama do livro na Wikipedia em espanhol:

“O coronel é um veterano da Guerra dos Mil Dias que vive mal em uma casa em uma vila da costa atlântica colombiana com sua esposa asmática. A ação se passa em 1958.

“A história começa em uma manhã de outubro em que o coronel se prepara para assistir a um funeral e dar os pêsames a uma família que acaba de perder um filho.

“Durante 15 anos o coronel vai, a cada sexta-feira, ao Correio do porto com a esperança de receber a confirmação de uma pensão de veterano da guerra civil. Sem nenhuma fonte de renda, a única esperança de receber algum dinheiro é um galo de briga, herdado de seu filho morto, que o coronel está criando em sua casa, com a intenção de fazer com que ele lute em janeiro, e ele obtenha ganho com as apostas.

“O coronel e sua esposa discutem sobre a conveniência de investir os parcos recursos restantes na compra de milho para alimentar o galo.”

Tenho admirado cada vez mais as sinopses dos livros nos sites da Amazon, seja em Inglês, Francês, Espanhol ou Português. No site em Português, há não apenas uma excelente sinopse do livro como também informações que contextualizam o romance dentro da vida e da obra de Gabo.

“Enquanto espera o pagamento de sua aposentadoria pelo Correio, um coronel reformado luta para sobreviver em uma cidadezinha hostil. Ao seu lado, apenas a mulher asmática e um galo de briga que pertencia a seu falecido filho. A correspondência sempre chega uma vez por semana, às sextas-feiras, mas a aposentadoria não, perdida nos trâmites burocráticos. “Ninguém escreve ao coronel”, diz com desdém o carteiro. Mesmo com uma trama simples, Ninguém Escreve ao Coronel é repleta de ironia e comentários sutis sobre a história e a política de seu país.

“Segunda obra de García Márquez, Ninguém Escreve ao Coronel foi escrito em 1957, em Paris. (Acrescento que a primeira foi La Hojarasca, de 1955.) Na época, aos 29 anos e trabalhando como correspondente de um jornal colombiano, o escritor vivia a depressão causada por uma grande nostalgia da sua Colômbia natal, agravada por sérias dificuldades financeiras. Pretendia estudar cinema na capital francesa, mas o periódico para o qual trabalhava foi fechado pelas autoridades colombianas.

“García Márquez redigiu três versões dessa novela curta, recusada por diversos editores até conseguir publicá-la, em 1961. Esse tempo de maturação depurou o estilo preciso do autor nesse relato cheio de humanismo, que satiriza a tortuosa burocracia dos países latino-americanos.”

O início e o fim do filme são idênticos aos do livro

O roteiro que Paz Alicia Garciadiego fez a partir do romance de García Márquez tem muitas alterações – e, ao mesmo tempo, é fidelíssimo ao espírito do texto do autor.

Não li o livro, devo dizer. Embora Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera sejam dois dos livros mais belos que já li na vida, deixei passar Ninguém Escreve ao Coronel. Agora, depois de ver o filme, que chegou à Netflix pouco tempo atrás (escrevo em junho de 2024), peguei o livro na estante, olhei a abertura e o fim. São idênticos ao filme escrito por Paz Alicia e dirigido pelo seu marido Arturo Ripstein. I-dên-ti-cos!

Não vou aqui, evidentemente, falar do finalzinho. Mas dá vontade de transcrever a abertura do livro – que Paz Alícia roteirizou e Arturo Ripstein encenou com brilhantismo. Aqui vai, na tradução de Danúbio Rodrigues na edição da Record:

“O Coronel destampou a lata do café e notou que apenas restava uma colherinha de pó. Tirou a panela do fogo, jogou no chão de barro batido a metade da água e raspou de faca todo o interior da vasilha, até botar na panela o que restava, uma mistura de raspas com ferrugem.

“Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs. Havia cinquenta e seis anos – desde que acabara a última guerra civil – que ele não fazia outra coisa senão esperar. Outubro era uma dessas raras coisas que chegavam.

“Quando entrou no quarto, trazendo o café, a mulher abriu o mosquiteiro da cama. Ela tivera uma crise asmática a noite inteira e agora atravessava um estado de modorra. Mesmo assim ergueu o braço para apanhar a xícara.

“ – E você – disse.

“ – Já bebi – mentiu o marido.”

No livro, tudo se passa na Colômbia; no filme, no México

Um homem velho que ama sua velha esposa, capaz de fazer esse carinho, esse gesto de desprendimento – não tomar o único café que sobra na casa para ofertá-lo à mulher. Ao longo do filme, assim como seguramente no livro, há várias demonstrações de amor do coronel e também de Lola. Os dois discutem, discutem – mas se amam. Achei isso lindo – e, de forma fascinante, remete ao romance que Garcia Márquez escreveria já na maturidade, sobre o amor imenso entre Florentino Ariza e Fermina Daza, O Amor nos Tempos do Cólera.

Muita fidelidade a todo o espírito do livro. Começo e fim idênticos – e, seguramente, muitas outras passagens exatamente iguais no livro e no filme. E, no entanto, há alguns pontos em que o roteiro se distancia bastante do original.

A começar do local em que se passa a história. O livro ser passa em uma cidadezinha da Colômbia, o país do escritor. O filme, em uma cidadezinha do Estado de Veracruz, no México, o país do diretor e da roteirista.

A guerra em que o coronel lutou, portanto, teria que ser diferente. No livro, o coronel é um veterano da guerra civil colombiana, travada entre 1889 e 1902. Para seu roteiro, Paz Alicia Garciadiego colocou o coronel como um veterano da Guerra Cristera mexicana, que resultou da perseguição do governo contra os padres da Igreja Católica e seus fiéis, ocorrida entre 1926 e 1929. Assim, no filme a ação se passa ali por 1949.

“No livro ele é um coronel liberal das guerras colombianas”, explicou Paz Alicia. “No México é um livre-pensador, que era – assim como meu avô – a favor da educação socialista e da educação sexual.”

A declaração está em uma longa, detalhada entrevista de Paz Alicia à repórter Ana Bianco, do jornal argentino Página 12, na época do lançamento do filme, 1999. Perguntada se manteve o estilo narrativo do texto original, a roteirista afirmou:

“Mantive a elegância da simplicidade. Procurei não ir pelos galhos, as ramificações. Acreditei nos personagens e os fui seguindo em uma história que não precisava de artifícios. Um roteiro simples e direto se aguenta de pé. Esta é a história mais simples de todas as que escrevi. Mantive o ambiente. Alguém que espera uma carta durante 18 anos é passivo. No romance o personagem da mulher é posto de lado; ela acompanha o coronel em sua longa espera e procura conseguir a comida. Na realidade, ela é a ativa. No filme o personagem cresceu à altura do coronel, e esta seria a maior distorção com relação ao texto.”

Há outros pontos em que o roteiro se descolou do romance. Paz Alicia admite que deu maior importância à personagem da prostituta Julia – que era amante do filho único do casal e foi morto – do que ela tem no original:

“No livro ela é só uma linha. Me interessava acrescentar a presença do filho morto na voz da prostituta. Dei vida ao verdadeiro assassino do filho (Nogales, interpretado por Daniel Giménez Cacho), que no conto não aparece.”

Não que a prostituta Julia apareça muito na tela. Ela está presente em três sequências, apenas, creio – mas são sequências um tanto longas e importantes. E ela vem na pele de Salma Hayek.

Em 1999, o ano de lançamento de Ninguém Escreve ao Coronel, Salma Hayek já era uma estrela internacional, com vários filmes feitos em Hollywood, e continuava em vigorosa ascensão. Dá perfeitamente para supor que ela aceitou fazer a participação especial no filme pela respeitabilidade do projeto – um filme de Arturo Ripstein, com base em livro do Prêmio Nobel García Márquez.

Claro, o filme pode ter aumentado a aura de respeitabilidade da estrela em ascensão – mas a presença dela nos cartazes seguramente deve ter ajudado o filme nas bilheterias.

Ela está lindérrima, é claro. Mas – repito – aparece pouco tempo na tela.

García Márquez não quis ler o roteiro

Os caminhos de García Márquez e Arturo Ripstein haviam se cruzado bem antes de 1999. Lá atrás, em 1965, seus nomes apareceram juntos nos créditos iniciais de um filme chamado Tiempo de Morrir. Era um western mexicano, sobre um pistoleiro que havia sido libertado da prisão depois de cumprir sua sentença e pretendia levar uma vida tranquila em sua cidade – mas os filhos de um dos homens que ele matara não querem saber de tranquilidade.

A história era de García Márquez, já então, aos 38 anos, um nome respeitado. O roteiro era assinado por ele e por Carlos Fuentes, um dos maiores romancistas do México. O produtor era Alfredo Ripstein Jr, um nome importante do cinema mexicano – e ele botou para dirigir o western o seu filho Arturo, então um garotão de ridículos 22 anos de idade.

Dá para o eventual leitor imaginar o desnível que havia na época entre o já famoso Gabo e o fedelho Arturo? O escritor era 16 anos mais velho que o diretor iniciante, já havia escrito seis romances – em 1967, apenas dois anos depois do lançamento do western, viria o sétimo, Cem Anos de Solidão.

A passagem do tempo muda tudo – e, em meados dos anos 1970, na época em que García Márquez lançou O Outono do Patriarca (1975), Arturo Ripstein já era um cineasta respeitado, consagrado. Em 1973, seu O Castelo da Pureza recebeu dez indicações ao Ariel, principal prêmio do cinema mexicano – e venceu em cinco categorias, inclusive as de melhor filme e melhor direção.

Quando, finalmente, depois de dois anos de negociações, Ripstein e sua mulher Paz Alicia Garciadiego conseguiram fechar a compra dos direitos para filmar Ninguém Escreve ao Coronel, García Márquez disse a eles que não gostaria de ler o roteiro, nem ver os copiões das sequências – preferia ver o filme já pronto, depois da montagem final.

Paz Alicia disse na entrevista à repórter do Página 12 que García Márquez tomou essa decisão por ter “absoluta confiança” nela e no marido. “Ele nos pediu para fazermos. Sou muito supersticiosa, e calculo que García Márquez seja tão supersticioso quanto eu. No primeiro dia de filmagens me visto de roxo, e nos dias seguintes tenho outros rituais. (…) Quando terminei o roteiro, levei para ele. Jantamos juntos os três algumas vezes e me disse: ‘Não fique com raiva; tenho muita confiança em você e não quero me intrometer. Não vou ler (o roteiro). E decidiu não ver o filme antes que ele estivesse completamente terminado, e na tela, para não ter a tentação de meter sua colher…”

O filme não teve o reconhecimento que merece

Nessa ótima entrevista, Paz Alicia fala da escolha dos atores principais – e fiquei surpreso com a informação que ela dá de Fernando Luján. O ótimo ator – que está excelente no papel do coronel – ainda não tinha tido, até então, oportunidade de interpretar o personagem principal em seus filmes. Havia sido sempre um coadjuvante.

– “Eu queria Marisa Paredes como a mulher do coronel. É uma atriz muito flexível, que pode ser dura e suave e maneja bem essas possibilidades. Com o coronel não era simples (…). Devia ser um bom ator mexicano e não muito conhecido. Arturo e eu nos lembramos de Fernando Luján, que além de tudo tem um físico privilegiado. É filho de Alejandro Changueroti, um ator argentino radicado no México desde os anos 40 e de uma atriz mexicana (Mercedes Soler, de uma dinastia de atores). Nasceu e foi criado no mundo do cinema. Luján sempre fez papéis secundários, como o amigo do mocinho.”

Parece que o papel do coronel mudou a carreira de Fernando Luján. Teve, depois deste filme, e de uma novela de grande sucesso, Olhar de Mulher (1997-2000), os papéis importantes que não havia tido antes. Está excelente em Cinco Dias Sem Nora (2008), pelo qual ganhou o Ariel de prata.

E Marisa Paredes prova que, de fato, é uma atriz “flexível, que pode ser dura e suave”, como bem notou a roteirista Paz Alicia. Da classe de 1946 (a mesma de Charlotte Rampling, Diane Keaton, Hector Babeco, Marieta Severo, Stefania Sandrelli, Susan Sarandon), estava portanto, com apenas 53 anos em 1999 – mas está ótima como a senhorinha de 70 e tantos que perdeu o único filho tragicamente e enfrenta com fibra a quase extrema pobreza ao lado do marido.

Uma figura essa Maria Paredes. No mesmo ano de 1999, foi lançado também Tudo Sobre Minha Mãe, um dos vários filmes que fez com Pedro Almodóvar.

El Coronel No Tiene Quien le Escriba não recebeu muitos prêmios. Foi admitido para a mostra competitiva do Festival de Cannes, o que já é um grande reconhecimento. Teve indicação ao Goya, o maior prêmio espanhol, para o roteiro de Paz Alicia Garciadiego, e, no Sundance, o Festival de Cannes do cinema independente, Arturo Ripstein venceu o Latin America Award.

No IMDb, tem nota de 6,6, média da avaliação de 1,3 mil leitores. E, no site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, Nobody Writes to the Colonel tem 61% de aprovação.

É pouco para este filme de muitas qualidades.

Anotação em junho de 2024

Ninguém Escreve ao Coronel/El Coronel No Tiene Quien le Escriba

De Arturo Ripstein, México-França-Espanha, 1999

Com Fernando Luján (o coronel),

Marisa Paredes (Lola, a mulher do coronel)

e Salma Hayek (Julia, a prostituta), Rafael Inclán (padre Ángel), Ernesto Yáñez (Don Sabas, o amigo do coronel), Daniel Giménez Cacho (Nogales, o que matou o filho do coronel), Esteban Soberanes (Germán), Patricia Reyes Spíndola (Jacinta, a mulher de Don Sabas), Odiseo Bichir (dr. Pardo, o médico), Julián Pastor (Lugones), Eugenio Lobo (Álvaro)

Roteiro Paz Alicia Garciadiego

Baseado no romance de Gabriel García Márquez

Fotografia Guillermo Granillo

Música David Mansfield

Montagem Fernando Pardo     

Casting Manuel Teil

Desenho de produção Antonio Muño-Hierro

Figurinos Guadalupe Sánchez 

Produção Gabriel Ripstein, Jorge Sánchez, Amaranta Films,

Canal+, DMVB Films, Fondo para la Producción Cinematográfica de Calidad, Fundación de la Universidad Veracruzana.

Cor, 122 min (2h02)

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