(Disponível na Neflix em 5/2023.)
Quase toda a ação se passa em Flandres, Bélgica, no município litorâneo de Oostende, à beira do Mar do Norte, mas é uma produção dos Países Baixos; os personagens são todos holandeses, falam, é óbvio, na língua que conhecemos como holandês. Mas a epígrafe e o título do filme são em inglês.
A epígrafe, a primeira coisa que vemos na tela após os nomes das companhias produtoras, é uma bela frase do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw (1856-1950) sobre a mentira e os mentirosos:
“The liar’s punishment is, not in the least that he is not believed, but that he cannot believe anyone else.”
A legenda em português faz uma tradução correta, embora sem a força e a beleza formal do original: “O castigo do mentiroso não é o fato de ninguém acreditar nele, mas sim de ele não acreditar em ninguém.”
Humm… Dá para tentar algo formalmente mais próximo da frase de Shaw. A punição do mentiroso não é que não creiam nele – isso é o de menos. Mas sim que ele não pode crer em ninguém mais.
O título do filme, que surge em letras imensas na tela, após os nomes dos atores e tomadas rápidas, feitas para instigar a curiosidade do espectador, é Faithfully Yours. Fielmente seu. Seu de forma absolutamente fiel. A Netflix o apresenta no Brasil como Fiéis.
Fiéis/Faithfully Yours é um dos tantos filmes com títulos que expressam exatamente o contrário do que mostram. Como A Cidade Está Tranquiila/La Ville Est Tranquille (2000), do francês Robert Guédiguian, ou Estamos Todos Bem/Stanno Tutti Bene (1990), do italiano Giuseppe Tornatore, ou Tudo Vai Ficar Bem/Every Thing Will Be Fine (2015), do alemão Wim Wenders, ou Um Marido Fiel/ Kærlighed for Voksne (2022), da dinamarquesa Barbara Topsøe-Rothenborg
Os personagens centrais do filme são dois casais aí na faixa dos 40 e muitos ou 50 e poucos anos, classe média para média alta, bem de vida – e as duas mulheres são infiéis, absolutamente infiéis. Mentem, mentem, mentem. E, como bem lembra George Bernard Shaw, os mentirosos são punidos.
Um cão com as patas sujas de sangue
O filme abre com a frase de Shaw e em seguida mostra tomadas rápidas, chamativas, instigantes, enquanto rolam os nomes dos atores. Já disse isso, mas é que agora quero detalhar.
A primeira imagem que vemos é uma tomada aérea do mar. A câmara deve estar em um drone a uns poucos metros da água, uns quatro ou cinco; o drone em que ela está permanece parado, mas a câmara faz um suave movimento à esquerda, em direção à praia. Vemos um trecho de uma praia deserta; atrás da faixa de areia há dunas, com grama sobre elas, e, mais atrás, a uns 500 metros da praia, uma grande casa.
Corta, e vemos um rosto de um homem de idade em close-up, assobiando, como se chamasse um cachorro. Corta. Tomada de uma estradinha na areia, um cão vem correndo. Corta. Plano de conjunto: vemos aquele homem de pé, numa estradinha entre plantas à esquerda e o mar à direita – o senhorzinho está de terno, colete, paletó, chapéu, como se estivesse numa cidade grande, a caminho de um compromisso social.
Corta. Plano americano, o cão correndo, um cãozão preto, grandão. Corta. Plano de conjunto de novo: vemos o homem agora pelas costas, o cãozão correndo em direção a ele, levantando as patas dianteiras para bater com elas no peito do sujeito. Corta. Plano americano: vemos o homem com o colete todo vermelho de sangue que veio nas patas do cãozão; o homem abre o paletó, examina, estupefato, o sangue na sua roupa.
Corta, somem as imagens. Fundo preto, e, em letras gigantescas e caixa alta, FAITHFULLY YOURS.
Corta, e estamos agora em uma sala de tribunal. Uma juíza, de toga, está anunciando para um casal que se divorcia a decisão sobre a guarda dos filhos. Os filhos ficarão com a mãe – e, diante da sentença, o pai se levanta, ameaça a juíza, diz que ninguém o separa dos filhos. Os guardas do tribunal são obrigados a intervir.
A juíza, Bodil Backer é a personagem central da trama. Ela é interpretada por Bracha van Doesburgh (na foto acima), uma atriz bonita e competente, mais de 40 títulos na filmografia, 41 anos de idade quando o filme foi lançado, em 2022.
Mais mentirosa e infiel ainda do que Bodil, veremos, é Isabel, sua melhor amiga (o papel de Elise Schaap, à direita na foto abaixo), com quem ela vai viajar no fim de semana até Ootende, ali na vizinha Flandres belga.
Duas amigas infiéis que sabem muito bem mentir
Bodil é uma daquelas mulheres danadinhas, competentes demais da conta. Ao sair do fórum em que trabalha, no final da tarde da sexta-feira, pega na escola o filho aí de uns oito anos de idade, em seguida vai até o hospital em que o marido médico trabalha – e surpreende os dois oferecendo a eles entradas para o jogo do fim de semana do Ajax contra o AZ Alkmaar. Evidentemente, ficam encantados tanto o filho quanto o marido, Milan (Nasrdin Dchar).
Ela dirige até a estação ferroviária, onde os três se encontram com o casal de amigos Isabel e Luuk (Gijs Naber). Cumprimentam-se, beijam-se. Os maridos desejam boa viagem às mulheres, elas embarcam. Milan até convida o amigo Luuk para uma cerveja, mas ele diz que não pode, tem um prazo para entregar um texto – é um escritor.
No belíssimo trem que as levará para Oostende – onde uma tia de Bodil tem uma bela, imensa casa junto de uma praia afastada da cidade, sempre deserta –, as duas amigas combinam os próximos passos, enquanto saboreiam um vinho branco.
Ao contrário do que seria de se esperar, ao contrário do que crêem os dois maridos, Bodil e Isabel não ficarão juntas na casa perto da praia. Isabel vai partir para a farra, a esbórnia. Da casa de praia, Bodil mandará mensagens para os dois maridos, do seu próprio celular e do celular de Isabel. Mais tarde, irá à uma palestra de um filósofo da moda, Michael Samuels, onde fará fotos e enviará mensagens para os dois maridos.
– “O Luuk acha que eu não sei que ele colocou um rastreador no meu celular”, ela conta para a amiga. Naturalmente, ela usará, durante o fim de semana, um outro celular, um pré-pago. No sábado à noite, as duas se encontrarão e Isabel pegará de volta seu próprio celular.
Na saída da estação ferroviária de Oostende, fazem fotos para enviar para os respectivos. Dão um abraço de despedida, e cada uma vai para seu lado.
Pensaram em tudo, organizaram tudo. São infiéis e sabem mentir muito bem. Ou pelo menos acham que sabem.
Na tomada seguinte à da despedida, vemos um carro – o Uber chamado por Bodil – passando pela mesma estradinha junto à praia deserta que já havíamos visto minutos antes, onde estava aquele senhor de terno, colete e gravata, chamando seu cachorrão que aparece com as patas encharcadas de sangue.
Isabel desaparece – e a amiga não pode dizer a verdade à polícia
A palestra do filósofo da moda Michael Samuels ((o papel de Matteo Simoni, ator jovem, boa pinta) é sobre mentira. Começa assim: – “Pesquisas indicaram que pessoas com vida social mentem mais do que pessoas com tendências antissociais. Mentimos porque a verdade, às vezes, pode ser insuportável. Bem-vindas à palestra sobre A Mentira da Verdade.”
Simultaneamente, vemos tomadas de Isabel num amplo salão de dança de nightclub (na foto acima).
Michael Samuels filosofa: – “Nós acreditamos no que for conveniente para nós.”
O nightclub em que Isabel está tem vários aposentos, uma clara atmosfera sensual: quem vai ali é para encontrar parceiro ou parceiros. Michael Samuels encerra sua filosofada sobre A Mentira da Verdade com aquela frase de George Bernard Shaw.
Obviamente, no bar do local em que se realizou a conferência, Michael Samuels e a juíza holandesa Bodil ficam se conhecendo. Logo vão para a casa da praia, trepam, passam a noite juntos.
Na manhã seguinte, quando volta da praia, depois de delicadamente expulsar o filósofo e nadar bastante no mar (fica bem claro que ela é uma excelente nadadora), Bodil encontra a casa aberta e óbvios sinais de que ela havia sido invadida. Há vasos de planta quebrados – e uma poça de sangue no chão. O telefone de Isabel está tocando, e quem chama é Luuk, o marido. Bodil não atende, e em seguida liga para o celular pré-pago da amiga. Ninguém atende.
Uma detetive da polícia, Ann van Passel (Sofie Decleir), chega à casa da praia para investigar o desaparecimento de Isabel, comunicado por Bodil. É uma mulher de meia-idade, experiente; faz perguntas a Bodil com toda a calma do mundo. A holandesa explica que haviam vindo as duas amigas para um fim de semana na praia, atividades culturais…
Bodil não pode revelar que Isabel não passou a noite na casa da praia, onde o celular da amiga estava. Mentira leva a mentira, e ela tem que mentir para a investigadora experiente.
Neste momento, estamos com 25 minutos, apenas, do filme que tem 95. Até aqui os autores apenas haviam apresentado os fatos básicos. Tudo vai se complicar é a partir daí. E haverá surpresas, reviravoltas, surpresas, reviravoltas na história original criada diretamente para o filme por três roteiristas, Paul Jan Nelissen, Elisabeth Lodeizen, André van Duren.
É um filme bem realizado, que tem qualidades
Fiéis/Faithfully Yours é um filme bem realizado, feito com competência nos quesitos básicos todos – boa fotografia, boa direção de arte, atores corretos. No entanto, não gostei dele. Achei a história toda artificial demais, distante demais da vida real das pessoas. Uma trama típica de novela ou filme policial para agradar a quem gosta de tramas intrincadas e cheias de reviravoltas – mas que não parece nada com a realidade.
Não chega a ser um julgamento, uma opinião racional, com base em argumentos lógicos. Não, foi uma reação assim emocional: não gostei, e pronto. Por estar envolvido com outras coisas, outros textos, acabei não escrevendo sobre ele nos dias imediatamente seguintes. Cheguei a achar que acabaria deixando o filme de lado, sem anotar sobre ele. Mais de uma semana depois, no entanto, sobrou um tempinho, comecei a fazer esta anotação, revi o início do filme – e, diabo, ele tem qualidades. A trama de fato envolve o espectador naquele início. É tudo muito bem apresentado, até esse ponto aí que relatei – e depois as coisas vão se enrolando e surpreendendo. Tá, é verdade, é artificial – mas, diabo, se for exigir naturalidade, verossimilhança estrita, boa parte das histórias policiais parecerão ruins…
Pego ao acaso a avaliação do site Movie Reviews 101:
“Faithfully Yours é um thriller de mistério que segue duas grandes amigas que encobrem seus casos. No entanto, tudo muda quando uma das amigas é assassinada. A trama segue a amiga que resta, tentando manter seus segredos enquanto tenta descobrir a verdade.”
Ahnn… Há um erro aí. O certo seria dizer – embora vá aí um certo spoiler: No entanto, tudo muda quando uma das amigas parece ter sido assassinada.
O site prossegue: “É um thriller escrito com esperteza, mostrando os segredos das pessoas. Ele usa a idéia de que as melhores amigas têm um plano perfeito para fazer o que desejam longe de seus maridos. No entanto, quando um crime envolvendo uma delas acontece, torna-se necessário que os segredos sejam revelados. Nós somos levados a ficar imaginando quem estava por trás do ataque e, lá pelo final do filme, ficaremos chocados com o que ficamos sabendo.”
Uma avaliação bem correta, me parece – pena que o autor, cujo nome não encontrei, cometa aquele errinho que apontei.
Uma olhadinha nos comentários dos leitores do IMDb mostra que muita gente desce a lenha sem dó nem piedade no filme do diretor e co-autor da história e do roteiro André van Duren. Alguns exemplos de títulos e notas de 1 a 10: “Alguns aspectos interessantes, mas não grande.” 3/10. “Atuações realmente ruins.” 3/10. “Final bobo, não é o que parece ser.” 2/10. “Nonsense previsível.” 1/10. “Esteja avisado: nada é o que parece…” 4/10.
Credo.
Ver essas críticas assim tão ácidas, rever o início do filme e escrever esta anotação me fizeram gostar bem mais deste Fiéis/Faitufully Yours do que quando acabei de assistir…
Países Baixos, Holanda, Flanders – informações úteis
Pessoas holandesas que viajam para um fim de semana na cidade belga de Oostende (bem embaixo, à esquerda, no mapa) e falam a mesma língua dos locais. Esses elementos do filme me deixaram curioso para checar informações que tenho, mas de maneira dispersa, desorganizada. O que se segue não tem a ver diretamente com o filme, é Geografia Humana, Conhecimentos Gerais, mas resolvi fazer o registro – mais para mim mesmo, para ter os fatos gravados.
Países Baixos é o nome oficial, o nome correto, da nação que conhecemos como Holanda. Em inglês, Netherlands. Em neerlandês, a língua dos Países Baixos – que na linguagem coloquial sempre chamamos de holandês –, Nederland.
Holanda, especificamente, é um trecho dos Países Baixos, ou duas das mais de 30 províncias do país – Holanda Meridional e Holanda Setentrional. Como é o pedaço mais densamente povoado, onde fica Amsterdã, a maior cidade e a capital dos Países Baixos, o nome daquela região acabou se sobrepondo ao nome oficial da nação. E não só em português, mas em inglês, em francês, em espanhol, em italiano… Holland em inglês, Hollande em francês…
Já há alguns anos, o governo dos Países Baixos (cuja sede, aliás, fica em Haia, e não em Amsterdã) vem batalhando para que a nação seja tratada como Netherlands em inglês, Países Baixos em português, Pays-Bas em francês…
“Holanda não. Países Baixos, por favor. Essa é a mensagem que as autoridades do país no noroeste da Europa querem transmitir ao resto do mundo em uma iniciativa para difundir o nome oficial de sua nação”, dizia notícia da BBC News Brasil de outubro de 2019. ”Ministérios e instituições desportivas e culturais, acompanhados das principais cidades do país, lançaram uma campanha de marketing a fim de eliminar o uso do nome Holanda. Por exemplo, o site oficial de turismo deixará de se chamar Holland.com, e a seleção de futebol será promovida como Países Baixos, evitando o uso de Holanda.”
A língua que se fala nos Países Baixos, que coloquialmente sempre chamamos holandês, é o neerlandês. Tecnicamente, holandês é um dialeto do neerlandês falado na Holanda, aquela região dos Países Baixos. O neerlandês é falado também no Norte da Bélgica, na região de Flandres, onde é comumente chamado de flamengo.
Flandres – vivendo, aprendendo e depois esquecendo – é o nome da planície do Noroeste da Europa voltada para o Mar do Norte que se estende por partes de três países vizinhos, França mais ao Sul, Bélgica no meio e Países Baixos mais ao Norte. Em Flandres – independentemente das fronteiras geográficas, dos limites dos três países –, fala-se neerlandês.
Dá para imaginar, assim, a grosso modo, que as duas mulheres infiéis que saíram dos Países Baixos para “um fim de semana de descanso e atividades culturais”, como diz Bodil para a veterana investigadora da polícia belga Ann van Passel, conversavam com qualquer pessoa da cidade de Oostende como se fosse, digamos, uma pessoa de Lisboa falando com um carioca, ou um gaúcho.
Uau, gostei de organizar essas informações… A pesquisinha esclareceu para mim várias coisas.
E, já que vim até aqui, aproveito para lembrar um filme e duas séries produzidos e/ou passados na região belga de Flandres e que já foram comentados aqui: Choque de Classes/Confituur. filme, 2004; Doze Jurados/De Twaalf, minissérie, 2019; Dois Verões/Twee Zomers, minissérie, 2022.
Anotação em junho de 2023
Fiéis /Faithfully Yours
De André van Duren, Países Baixos, 2022
Com Bracha van Doesburgh (Bodil Backer),
e Nasrdin Dchar (Milan Saber, o marido de Bodil), Gijs Naber (Luuk Luijten, marido de Isabel, amigo de Milan), Elise Schaap (Isabel Luijten, mulher de Luuk, amiga de Bodil), Matteo Simoni (Michael Samuels), Hannah Hoekstra (Yara Backer, a irmã de Bodil), Sofie Decleir (investigadora Ann van Passel), Anna De Ceulaer (investigadora Sophie Verschueren), Soufiane Chilah (Beau Alami). Damiano Incani (Ben Saber), Juda Goslinga (Meneer Houtveen)
Argumento e roteiro Paul Jan Nelissen, Elisabeth Lodeizen, André van Duren.
Fotografia Josje van Erkel
Música Laurens Goedhart, Fons Merkies
Montagem Tim Wijbenga
Casting Susanne Groen
Desenho de produção Jorien Sont
Produção Millstreet Films, Netherlands Film Production Incentive, distribuição Dutch FilmWorks, Netfflix.
Cor, 95 min (1h35)
**1/2
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