(Disponível no HBO Max em 9/2022.)
A Colméia é um daqueles filmes tão belos quanto importantes. Dirigido por uma jovem realizadora do Kosovo, Blerta Basholli, com elenco de kosovares, liderado por uma fantástica atriz, lllka Gashi, falado em albanês, é muito provavelmente o primeiro filme daquele país a ter grande repercussão mundo afora. E o primeiro filme internacional a vencer as três principais categorias do Sundance, o festival de Cannes dos filmes independentes, feitos à margem dos grandes estúdios.
Uma co-produção Kosovo-Suíça-Albânia-Macedônia do Norte, A Colméia conta a história – real – de Fahrije Hoti, uma mulher de uma pequena cidade cujo marido, como tantas centenas de homens do Kosovo, desapareceu durante a guerra movida pela Sérvia, em 1999. Faharije fica sozinha para cuidar dos dois filhos, uma adolescente aí de uns 12 anos e um garoto de uns 7 ou 8, e do sogro paraplégico. A vida é duríssima. E tão pavorosa, horrorosa quanto a guerra é a sociedade em torno de Fahrije e das muitas outras viúvas do lugar – viúvas ainda que os corpos de seus maridos não tenham sido encontrados: não se aceita que mulher trabalhe fora de casa.
Mulher que trabalha fora de casa é vagabunda, vadia. A própria filha de Faherije joga a palavra em albanês equivalente a vadia na cara da mãe. Uma frase mais ou menos assim: – “Todo mundo diz que você é uma vadia. Você é uma vadia”.
Como é possível botar comida na mesa para si mesma, dois filhos e o sogro se a sociedade em seu redor proíbe você de trabalhar?
Tudo bem: a pergunta “como é possível ter havido aquelas guerras fratricidas tão pavorosamente sangrentas nos Bálcãs, em plena Europa, às vésperas do ano 2000?” não tem qualquer resposta racional possível. Sem dúvida alguma.
Isso a gente já sabia, sempre soube.
O que o filme dessa talentosa moça Blerta Basholli nos faz perguntar é essa outra questão para a qual não pode haver resposta: como uma mulher pode fazer para alimentar sua família se a sociedade diz que mulher que trabalha é vadia?
Anos e anos sem a certeza de que o marido está morto
Blerta Basholli – ela também autora do roteiro – abre seu filme com uma sequência em que uma mulher – veremos que é Fahrije, a protagonista da história – está cuidando de uma colméia de abelhas. Em seguida, essa mulher – em um impressionante plano-sequência – caminha junto de um local em que um grupo de trabalhadores da ONU expõe, em lençóis dispostos no chão e cobertos por outros lençóis, roupas, pertences que o corpo de paz encontrou e podem servir para os familiares dos desaparecidos identificarem como sendo de seus parentes.
É uma sequência que fazer arrepiar frade de pedra.
Fahrije não é do tipo que se conforma facilmente com as normas. Passa por baixo de uma faixa horizontal que proíbe a entrada de outras pessoas que não o pessoal da ONU, entra em uma tenda, começa a levantar os lençóis para ver o que está lá embaixo. Depois anda mais um pouco nessa área reservada, sobe num caminhão.
Será necessário que um funcionário diga que ali é proibido entrar, que a mande descer.
Não há, durante o filme, no meio da narrativa, qualquer letreiro com o onde e o quando – só ao final, narrativa encerrada, há letreiros com diversas informações importantes, fundamentais. Como a de que em 2021, ano de lançamento deste A Colméia, mais de 20 anos depois dos massacres de kosovares pela Sérvia na cidade de Krushë e Madhe e região, cerca de 1.600 pessoas seguiam desaparecidas – cerca de 1.600 famílias ainda não haviam conseguido enterrar seus mortos.
Assim, o espectador não sabe exatamente em que ano se passa a ação. Dá para perceber que já faz muito tempo que desapareceram o marido de Fahrije e os maridos de todas aquelas mulheres que se reúnem para conversar, trocar informações. Muito tempo: a mesa com a serra de carpinteiro em que o marido de Fahrije trabalhava está acumulando poeira em uma espécie de porão da casa. A filha adolescente diz que gostaria de ter mais fotos do pai, para se lembrar como ele era. Muito tempo – mas exatamente quanto, isso o espectador não fica sabendo. Depois que vimos o filme, achei a informação de são sete anos, mas de fato não percebi no próprio filme nenhum dado que pudesse levar a esse número.
Nunca uma mulher havia dirigido um carro ali
O grupo de mulheres recebe de presente um carro, e coloca-se à disposição delas um instrutor para dar as aulas de direção. As mulheres, no entanto, não têm coragem de aprender a dirigir. Nunca antes uma mulher havia dirigido carro ali. As pessoas falariam mal de quem ousasse contrariar a tradição. Mulher não trabalha fora – e muito menos dirige carro. Isso é coisa exclusiva para os homens.
Fahrije topa.
A cena em que Fahrije pára o carro perto de um café onde alguns homens velhos se reúnem (os mais jovens estão quase todos desaparecidos, mortos), e uma pedra quebra um dos vidros do assento traseiro, é outra de chocar um frade de pedra.
Há várias cenas assim neste belo filme.
É duríssima toda a luta de Fahrije para conseguir estabelecer uma produção de ajvar, e depois para entregar para o supermercado que aceitou colocar os potes do alimento à venda. É imensa a dificuldade dela de conseguir a adesão de amigas e conhecidas, as outras viúvas de vítimas da guerra. Ela persiste, com uma força de vontade fantástica, admirável – até ir conseguindo a adesão de mais e mais mulheres para ajudar na produção da iguaria.
Claro que eu jamais tinha ouvido falar em ajvar; depois de ver o filme, verifico que há diversas matérias em sites brasileiros sobre ele – uma conserva à base de pimentão vermelho assado que ficou conhecida como “o caviar vegano”.
Não como há não se envolver emocionalmente
A Colméia é um filme belo, importante, marcante, de tirar o chapéu – mas triste. Quanta tristeza, meu Deus, quanto sofrimento! Confesso que houve momentos em que foi duro continuar a ver aquilo, porque era imenso demais o sofrimento daquela mulher admirável. Já falei aqui outras vezes, repito: sou cada vez menos adepto do “distanciamento brechtiano”. Cada vez mais me envolvo com os personagens que vejo nos bons filmes.
E não há como a gente não se envolver por essa Fahrije criada pela diretora e roteirista Blerta Basholli e pela atriz Yllka Gashi.
Blerta Basholli e seu diretor de fotografia Alex Bloom demonstram ter perfeito domínio dessa ciência que é saber dosar com perfeição os planos amplos com o close-up. (Pode parecer óbvio, pode parecer simples demais, mas é de fato uma ciência. São extremamente comuns os filmes que abusam demais do primeiro plano, por exemplo.) Mostram Fahrije-Yllka Gashi de todas as formas possíveis, desde os planos gerais até os close-ups – e a atriz tem uma atuação de fato impressionante, fantástica, coisa de veterana.
A Yllka Gashi que vemos na tela como Fahrije é uma mulher sofrida, maltratada pela vida difícil, muitas vezes seca, dura, mas intensa, forte, uma leoa lutando pelos seus direitos. Em muitas tomadas, ela não parece uma mulher bonita, de tão duros que ficam seus traços. Em outras, especialmente algumas tomadas mais rápidas, no entanto, parece bonita. Ela me fez lembrar uma atriz que admiro demais, que faz muitos papéis assim, de mulheres sofridas mas fortes, fortíssimas – a palestina Hiam Abbas, de Lemon Tree (2008), A Fonte das Mulheres (2011), Uma Garrafa no Mar de Gaza (2012), O Casamento de May (2013), Dégradé (2015).
Levei um susto quando, depois de assistir ao filme, vi fotos de Yllka Gashi sem estar maquiada para ter aquela expressão tão dura, tão sofrida (como esta abaixo). A moça é lindérrima.
Uma atriz jovem, uma escritora-diretora jovem
Em 1999, época da guerra da Sérvia contra o Kosovo, Yllka Gashi era uma adolescente de 17 anos e estava começando sua carreira, após uma primeira audição. Nasceu em Kosovo, de família albanesa, em 1982, e bem jovem interpretou um dos principais papéis numa série albanesa chamada – durma-se com um barulho desses – Familja Moderne. Em 2015, emigrou para os Estados Unidos com o marido e a filhinha. Foi escolhida como uma embaixadora da Unicef.
Sua pequena filmografia inclui um outro título da diretora Blerta Basholli, o curta-metragem Ledna dhe Unë (2011).
Atriz jovem, diretora jovem, jovem país.
Blerta Basholli nasceu um ano depois de Yllka Gashi, em 1983, em Pristina, a cidade que viria a ser a capital do Kosovo depois que o país proclamou sua independência da Sérvia, em 2008. Passou quatro anos estudando em Nova York, voltando em seguida para Pristina; é casada com um fotógrafo de fama no Kosovo, Artan Korenica, com quem tem dois filhos.
A Colméia foi o quarto título da careira da realizadora – e o primeiro longa-metragem. Ela estreou em 2006 com um documentário de 26 minutos, Mirror, mirror, em inglês, sobre como as mulheres são representadas nas emissoras de TV do Kosovo.
Em 2009, realizou um curta de ficção, Gjakova 726, passado no período entre 1980 e 1999 em Giakova, uma das cidades mais destruídas na guerra. A história é mostrada através dos olhos de um garoto de 12 anos de idade, que descobre a vida de sua família durante aqueles anos de horror.
Seu terceiro trabalho, o curta de apenas 15 minutos Lena dhe Unë, é a história de dois kosovares, Lena e Ardi, que concordam em se casar para satisfazer um arranjo feito pelas suas famílias, e emigrar para os Estados Unidos. Assim como este A Colméia, Lena dhe Unë é baseado em uma história real – e a atriz Yllka Gashi faz o papel de Lena.
Em todos os seus quatro filmes, Blerta Basholli foi também a autora do roteiro. Neste A Colméia aqui, ela foi também a responsável pelo casting, a escolha dos atores.
Um país pequeno, não reconhecido por 97 estados
Senti falta, no belo filme dessa talentosa Blerta Basholli, de algo que tentasse, ainda que muito sutilmente, contextualizar, dar alguma indicação de por que, raios, a sociedade daquele lugar tem essa mentalidade pré-medieval, pré-cavernas, essa coisa horrorosa, machista ao extremo, que faz parecer avançadas, progressistas, sociedades pavorosamente machistas como, por exemplo, a siciliana, que até poucas décadas atrás exigia que o lençol manchado de sangue da noite de núpcias fosse pendurado na janela do par recém-casado.
Fiquei imaginando que provavelmente tenha a ver com religião. Talvez um islamismo daqueles de interpretação mais absurdamente careta do seu livro santo, o Corão.
A Colméia não fala, em momento algum, de religião. Em momento algum. Não há imagens religiosas visíveis em nenhuma tomada – a menos que eu não tenha reparado direito.
A população do Kosovo, aprendo na internet, tem imensa maioria de albaneses – em torno de 97%. E o islamismo (principalmente o sunita) é a religião da maior parte da população do país.
Aproveito para registrar: o Kosovo ainda não teve sua independência da Sérvia reconhecida pela totalidade das nações; 97 dos 193 estados membros das Nações Unidos a reconhecem, contra os outros 96. A população estimada do país é de 1,8 milhão de habitantes, menos que meu pedaço da Zona Oeste de São Paulo, em um território de 10,887 km2 – menos de metade de Sergipe, o menor estado brasileiro, que tem 22.050 km2, ou 0,26% do território do país.
O negócio iniciado por Fahrije Hoti é um sucesso
Como acontece em muitos filmes sobre histórias reais, depois do final da narrativa letreiros nos contam o que aconteceu com a protagonista – e com imagens da Fahrije Hoti da vida real. É uma mulher com um porte admirável, que de fato transmite força, firmeza. A atriz Yllka Gashi não tem traços físicos semelhantes aos da personagem que interpreta – mas ela passa toda essa sensação de força da Fahrije real.
Não dá para saber, é claro, como reagem os espectadores, mas confesso que fiquei bastante surpreendido com as informações que surgem após o final da narrativa, sobre o grande sucesso do empreendimento iniciado por ela com a ajuda de amigas na cozinha de sua casa acanhada.
Ao dar essas informações, a diretora usa a primeira pessoa. Diz uma frase assim: “Da última vez em que estive com Fahrije, ela estava tratando de contratos para exportação para os Estados Unidos” – isso depois de já exportar para vários países europeus.
Fahride Hoti é um fantástico caso de superação de problemas, um exemplo de absoluto sucesso. Dá para ver isso com uma rápida consulta pelo Google. Mas de fato isso nos surpreendeu, a mim e à Mary. Não contávamos com isso. (Na foto abaixo, a atriz lllka Gashi e Fahrije Hoti.)
Três prêmios no Sundance, e mais 16 outros
Como já foi dito, Hive – este é o título em inglês do filme – foi o primeiro filme a vencer os três prêmios principais no Sundance Film Festival, na categoria Cinema Mundial – Drama: o prêmio do júri, o prêmio da audiência e o de melhor diretor. No Sundance, há premiações separadas para Cinema Mundial e para os filmes dos Estados Unidos. Naquele mesmo ano, 2021, um filme americano também conseguiu a proeza de vencer os três prêmios mais importantes, júri, audiência e diretor. Foi No Ritmo do Coração, de Sian Heder, aquela beleza.
Ao todo, A Colméia recebeu 19 prêmios e outras 11 indicações em festivais mundo afora.
A Colméia ou Colméia, sem o artigo? Pois é. O IMDb diz Colméia. Já no próprio filme, exibido na HBO Max, está A Colméia. (Ah, sim, o acento não existe mais, segundo o desacordo ortográfico assinado pela Dilma. Verdade. Mas este site ignora o desacordo ortográfico, assim como muita gente boa, em especial em Portugal.)
O site RogerEbert.com deu 3 estrelas em 4 a este Hive. Transcrevo a abertura e o final do texto de Tomris Laffly:
“A história de homens saindo para guerras e virando vítimas, e as mulheres deixadas para trás heroicamente carregando o fardo na ausência deles é velha como o tempo. É também o centro do forte drama Hive, da escritora-diretora Blerta Basholli, um triplo vencedor do Sundance que honra a força feminina e aplaude sua pegada resiliente contra o pano de fundo do patriarcado severo da Europa do Leste. (…)
“Embora não desbrave novos caminhos, Hive nos lembra como é importante honrar esse espírito de luta único das mulheres, e quanta alegria cinemática há em ver aquele espírito florescer contra todas as adversidades.”
Anotação em setembro de 2022
A Colméia/ Zgjoi
De Blerta Basholli, Kosovo-Suíça-Albânia-Macedônia do Norte, 2021.
Com lllka Gashi (Fahrije Hoti)
e Çun Lajçi (Haxhi, o sogro), Aurita Agushi (Zamira), Kumrije Hoxha (Nazmije), Adriana Matoshi (Lume), Molikë Maxhuni (Emine), Blerta Ismaili (Edona), Kaona Sylejmani (Zana), al Noah Safqiu (Edon), Xhejlane Terbunja (Melisa), Ilir Prapashtica (instrutor), Bislim Muçaj (garçom), Blin Sylejmani (Edi), Shkelqim Islami (Ardian), Adem Karaga (Rasim), Zarije Jonuzi Çeliku (Hana), Astrit Kabashi (Bahri), Luan Kryeziu (Selman), Valire Haxhijaj Zeneli (Mihrie),
Roteiro Blerta Basholli
Fotografia Alex Bloom
Música Julien Painot
Montagem Félix Sandri, Enis Saraçi
Casting Blerta Basholli
Direção de arte Vlatko Chachorovski
Figurinos Fjorela Mirdita, Hana Zeqa
Produção Ikone Studio, Industria Film, Alva Film, AlbaSky Film, Black Cat Production.
Cor, 84 min (1h24)
***1/2
Título nos EUA e Reino Unido: Hive.
Música: Julien Painot .
Achei linda, porém não consegui localizar esse nome no youtube, nem google. Alguem poderia me dizer onde encontrar?