Silenciadas / Akelarre

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em janeiro de 2022.)

Silenciadas, no original Akelarre, uma palavra da língua basca, é uma inquietante, sombria, estranha mistura de belíssimas imagens com fatos apavorantes, dos mais vergonhosos, mais inomináveis da História: a Inquisição, a morte na fogueira de mulheres acusadas de serem bruxas.

Essa junção de espantosa beleza visual com espantosa desumanidade me pareceu a principal característica do filme, uma co-produção Espanha-França-Argentina de 2020 dirigida e co-escrita pelo jovem argentino Pablo Agüero, nascido em Mendoza em 1977.

O roteiro original, de autoria de Agüero e Katell Guillou, a fotografia, a iluminação, o tipo de movimentos da câmara do diretor de fotografia Javier Agirre, a ambientação, a direção de arte (de Mikel Serrano), os figurinos (de Nerea Torrijos) – tudo, absolutamente tudo neste Silenciadas serve para montar uma realidade paralela, um outro mundo diferente deste aqui em que vivemos – algo como a Terra Média dos livros de J. R. R. Tolkien e dos filmes baseados neles, a trilogia O Senhor dos Anéis, O Hobbit. Ou os planetas das histórias de ficção científica de Clifford D. Simak ou Philip K. Dick.

Parece realidade paralela, um mundo diferente – e isso torna ainda mais chocante, mais apavorante a consciência de que fatos como aqueles ali de fato aconteceram. Não é sonho maluco, não é ficção criada por imaginação extraordinária – é uma parte da História da humanidade.

A ação se passa no País Basco em 1609

Não há, no início da narrativa, um letreiro mostrando o onde e o quando a ação se passa – e isso tem todo sentido, já que parece de fato ter sido a intenção dos realizadores criar uma atmosfera de ficção, de mundo paralelo. Mas o filme vai dando elementos para o espectador perceber que estamos no País Basco, no Norte da Espanha – e a data vai aparecer claramente, expressamente:1609. Um século depois de os vizinhos portugueses desembarcarem no Brasil, e de os espanhóis terem iniciado a colonização de boa parte das Américas Central e do Sul.

Um juiz do Tribunal da Inquisição, Rostegui (o papel de Alex Brendemühl), chega a um pequeno povoado litorâneo, acompanhado de um conselheiro (Daniel Fanego, numa excelente interpretação), um cirurgião (Daniel Chamorro) e um batalhão de soldados. Está percorrendo parte da Espanha à cata de mulheres que teriam feito pacto com o demônio. Já na primeira sequência do filme é dito que mais de 700 mulheres tidas como bruxas haviam sido executadas nas fogueiras.

No povoado só há mulheres: os homens, todos marinheiros, estão no mar, pescando. Só voltarão na Lua Cheia seguinte.

Sem que nem por quê, sem qualquer explicação lógica, os guardas prendem um grupo de seis moças do lugar – moças alegres, joviais, que gostam de cantar e dançar. A mais nova tem aí uns 13 anos, a maioria está em torno dos 20. Chamam-se Ana, Katalin, Maria, Maider, Olaia, Oneka.

(São interpretadas respectivamente por Amaia Aberasturi, Garazi Urkola, Yune Nogueiras, Jone Laspiur, Irati Saez de Urabain e Lorea Ibarra.)

Presas, passam a ser interrogadas por Rostegui, enquanto o conselheiro vai anotando tudo e o padre do local, Cristóbal (o papel de Asier Oruesagasti) assiste às sessões e incentiva os inquisidores.

As sessões de perguntas, é claro, incluem tortura.

O interrogatório das jovens para que elas confessem sua ligação com o demônio, sua condição de bruxa, é assim uma mistura do diálogo entre o Lobo e o Cordeiro da fábula com o que a gente pode imaginar que sejam os interrogatórios que as ditaduras fazem com os presos políticos.

O título original significa algo como Sabbath das Bruxas

Parece mesmo que Jean de La Fontaine leu as transcrições de um interrogatório da Inquisição Espanhola quando escreveu a fábula:

– Como é que você tem a coragem de sujar a água que eu bebo?

– Senhor, eu não estou sujando nada. Bebo aqui, uns 20 passos mais abaixo, é impossível acontecer o que o senhor está falando.

– Você agita a água. E sei que você andou falando mal de mim no ano passado.

– Não pode ser. No ano passado eu ainda não tinha nascido.

– Se não foi você foi seu irmão, o que dá no mesmo.

– Eu não tenho irmão, sou filho único.

Aí o lobo, impaciente com aquele negócio de lógica, razão, crau – come o cordeiro.

Na história criada por Pablo Agüero e Katell Guillou, a cordeirinha Ana, a mais bela entre as garotas presas e acusadas de serem bruxas e terem pacto com o diabo, acha que pode enfrentar o lobo-inquisidor. Resolve assumir toda a culpa para si e inocentar as amigas, dizer que é, sim, uma bruxa, que tem, sim, pacto com o demônio. Acredita que pode seduzir o juiz inquisidor – e as sequências em que Ana quase mata Rostegui de tesão são incrivelmente impressionantes.

Não conhecia nenhum dos dois, nem o veterano Alex Brendemühl nem a garota Amaia Aberasturi, mas os ambos estão excelentes, com atuações fantásticas.

Alex Brendemühl nasceu em Barcelona em 1972; a filmografia vastíssima, de 120 titulos, inclui Truman (2015), Um Instante de Amor/Mal de Pierres (2016) e O Médico Alemão/Wakolda (2013), da argentina Lucía Puenzo, em que interpreta o criminoso nazista Josef Mengele exilado sob nova identidade na Patagônia.

A garota Amaia Aberasturi é espanhola do País Basco, nascida na Província de Vizcaya em 1997; estava, portanto, com 23 anos quando o filme foi lançado. Até o final de 2021, havia feito cinco filmes e cinco séries de TV. Por sua interpretação como a Ana deste Akelarre aqui, teve indicação ao Goya, o Oscar espanhol, de melhor atriz.

Akelarre, segundo o IMDb, é a palavra basca para bode e também, por extensão, para o Black Sabbath ou Sabbath das Bruxas, o encontro das bruxas que, segundo a lenda, era presidido por um bode. Nos países de língua inglesa, o título foi Coven – a palavra para convenção de bruxas.

Existiu de fato um juiz inquisidor como o do filme

A escolha, por parte dos autores, do ano de 1609 como a data em que se passa a ação desta história que parece ter saído de uma imaginação como a de J. R. R. Tolkien, Clifford D. Simak ou Philip K. Dick, não é de forma alguma casual. Nem a escolha do nome do juiz inquisidor. Existiu de fato um Pierre de Rosteguy de Lancre, um inquisidor francês que escreveu em 1609 o Tratado da Bruxaria Basca; Descrição da Inconstância dos Maus Anjos e Demônios, como resultado de seus trabalhos pelo País Basco francês.

Pierre de Rosteguy de Lancre, conta a a Wikipedia, nasceu em Bordeaux, em 1553, e morreu em 1631. Foi jurista e alto funcionário do governo francês, membro do Conselho do Estado na corte de Henri IV e responsável pela instrução dos processos de bruxaria de Labort de 1609. Naquele ano, foi enviado à cidade de San Juan de Luz, no viscondado de Labort, para dirigir, por ordem do rei, una comissão que deveria “purgar a região de todos os bruxos e bruxas do império do demônio”.

A tal comissão chefiada por de Lancre investigou supostos casos de adultério e libertinagem das esposas dos marinheiros, as atividades de curandeiros e especialistas em cartomância, e também as das minorias de judeus e mouros refugiadas em Aquitania depois de terem sido expulsos da Espanha por decreto do rei Felipe III.

O tribunal instalado por ele ordenou a tortura e a execução de cerca de 200 pessoas acusadas de bruxaria.

O diretor Pablo Agüero contou em entrevistas ter feito uma grande pesquisa da história de Pierre de Rosteguy de Lancre e dos livros que ele escreveu.

No seu site Cenas de Cinema, a crítica carioca Cecília Barroso escreveu:

“Dirigido pelo argentino Pablo Agüero, do premiado Salamandra, o filme usa a imaginação para traduzir os horrores de Zugarramurdi, a mais cruel ação da inquisição espanhola, ocorrida no País Basco no início do século 17. É importante ressaltar que os julgamentos, associados a membros do estado, buscavam identificar e converter hereges e não-cristãos, mas também tinha como um de seus principais objetivos a dominação e a subjugação da mulher, com a desculpa delirante de que qualquer coisa associada ao universo onírico ou relacionado ao corpo feminino — como a própria menstruação — era um sinal de bruxaria. Vem daí a associação mais comum da inquisição à caça às bruxas.”

Ela encerra seu texto assim:

“Ainda que haja arraigamento estético, há também experimentação. Com seu diretor de fotografia, Javier Aguirre, Agüero mescla planos e movimentos, e estabelece um jogo interessante, mas é mesmo no sabá, a grande busca do filme e, inclusive, seu título original, Akelarre, que Silenciadas chega a seu ápice. Assumindo a iluminação das fogueiras que remetem ao seu começo, dá vida ao delírio e traz para isso muito cinema, mas não deixa de lado circo, dança, teatro e pintura. Um espetáculo de sons e cores que sintetiza o ódio, o conflito de gênero e a perseguição à força, à criatividade e ao poder daquilo que tentou — e, em parte — conseguiu desestabilizar, e que, ao final, ganha corpo como ‘O Grande Bode’ de Goya, não aquele bucólico de sua tela mais conhecida, mas o sombrio da ‘Pintura Negra’. Aqui, o ser que se sentia ameaçado pelo simples fato de poder ser questionado, essa mistura de macho, estado e a santa Igreja Católica.”

Anotação em janeiro de 2022

Silenciadas/Akelarre

De Pablo Agüero, Espanha-França-Argentina, 2020

Com (as moças) Amaia Aberasturi (Ana), Garazi Urkola (Katalin), Yune Nogueiras (María), Jone Laspiur (Maider), Irati Saez de Urabain (Olaia), Lorea Ibarra (Oneka)

Alex Brendemühl (Rostegui, o juiz do tribunal da Inquisição), Daniel Fanego (o conselheiro), Daniel Chamorro (o cirurgião), Iñigo de la Iglesia (sargento), Ulises Di Roma (guarda), Asier Oruesagasti (o padre Cristóbal), Elena Uriz (Sra. Lara), Jeanne Insausti (a avó), Amalia Robin (criada da Sra. Lara), Amaia Azkue (criada da Sra. Lara), Teresa Achalandabaso (Etcheverry), Cristina Yélamos (Izaro), Kiko Rossi (jovem)

Roteiro Pablo Agüero e Katell Guillou

Fotografia Javier Agirre

Música Maite Arrotajauregi, Aránzazu Calleja     

Montagem Teresa Font

Casting Txabe Atxa, Nathalie Camidebach, Florencia Inés González

Direção de arte Mikel Serrano

Figurinos Nerea Torrijos

Produção Fred Prémel, Sorgin Films, Kowalski Films, Lamia Producciones, Tita Productions, La Fidèle Production, El Campo Cine

Cor, 92 min (1h32)

***

Título nos EUA: Coven.

3 Comentários para “Silenciadas / Akelarre”

  1. Grande película! Fotografia, direção, atuações, enredo e tema antepostos muitíssimo arrematados neste também feminista longa ótimo. Merecida nota 9,5.

  2. Olá, Juan!
    Agradeço por ter enviado o comentário!
    Gostaria de lembrar que a nota 4 estrelas é a máxima… Assim, a cotação de 3 estrelas é muito boa…
    Um abraço, e boa semana!
    Sérgio

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