Garota Estranha / Pagglait

Nota: ★★★½

Eis aí uma beleza de filme indiano recentíssimo, de 2021. Uma bela surpresa – surpreendentemente melhor do que a gente poderia de início esperar.

Essa última frase não é minha – me deparei com ela ao pegar no IMDb os nomes dos atores para fazer a ficha técnica do filme. “Surprising better than I thought”, escreveu no grande site enciclopédico um leitor que se assina shubhamdcooler. Expressa exatamente, perfeitamente a sensação que Mary e eu tivemos. Eu usaria surprisingly, mas isso é detalhinho besta.

Pagglait, exibido no Brasil pela Netflix com o título de Garota Estranha, demonstra que é um bom filme nos primeiros minutos. Bem, a rigor todos os filmes demonstram se são bons ou não em seus primeiros cinco, dez minutos, mas este aqui demonstra logo de cara que é bom, é feito com talento e competência e trata de temas sérios, importantes.

Os temas são vida em família, relações familiares, relações afetivas. Ao tratar deles, o filme vai traçando um arguto, bem definido quadro da sociedade indiana de classe média urbana da atualidade.

A trama parte de uma tragédia – a morte de um homem jovem, na flor da idade, aí provavelmente beirando os 30 anos. E acompanha os acontecimentos na família a partir daí. Vamos vendo as reações da viúva, dos pais do jovem, dos avós, do irmão, dos diversos tios, tias, primos, dos pais da viúva.

A ação se passa na Índia de hoje, em uma cidade grande, propositadamente não identificada – pode ser qualquer cidade grande. A família é hindu, de classe média média para média um pouco alta, que fala hindi e segue com algum rigor os preceitos religiosos do hinduísmo.

Vai aí um certo desafio para o espectador ocidental, que não conhece quase absolutamente nada dos costumes dos hindus, do hinduísmo. Aumenta o desafio os fatos de a família de Astik Jiri, o jovem morto, ser bastante numerosa, e de sermos apresentados a todos ao mesmo tempo, bem no início da narrativa.

Mas o roteiro foi criado com imensa competência, de tal forma que rapidamente o espectador conseguirá enfrentar essas dificuldades.

A primeira característica especialmente marcante da trama é que a jovem viúva, a protagonista da história, Sandhya (o papel de Sanya Malhotra, uma atriz interessantíssima, fascinante, na foto abaixo), parece estar sofrendo muitíssimo menos do que seria de se esperar.

Muitíssimo menos que os parentes próximos todos.

Este ponto específico da história é importante (e volto a falar dele mais adiante). É realçado na sinopse de duas linhas do filme no IMDb: “Tornada viúva pouco após o casamento, uma jovem enfrenta uma falta de habilidade para prantear, parentes peculiares e uma surpreendente descoberta sobre seu falecido marido”.

Essa sinopse parece ter sido distribuída pelos produtores, porque é praticamente a mesma da usada pela Netflix no Brasil: “Ela ficou viúva logo após se casar e precisa lidar com sua incapacidade de sofrer, com

os costumes da família conservadora e com uma descoberta sobre o falecido.”

Provavelmente foi a partir daí que se decidiu por esse título brasileiro, Garota Estranha, que na verdade me parece muito pouco apropriado.

Mas isso aí que as sinopses dizem é apenas uma pequena parte do filme escrito e dirigido por Umesh Bist, realizador de poucos títulos, mas que demonstra grande, admirável talento.

Muito mais importante do que a dificuldade de Sandhya de demonstrar seu sofrimento pela perda de Astik, mais importante até mesmo do que suas descobertas acerca do marido morto, é uma surpresa que virá depois, quando o filme já passou da metade de seus 114 minutos.

Essa surpresa envolve dinheiro, esse tema que, como diria Mario Monicelli, transforma os parentes em serpentes.

E haverá uma nova, fantástica, bastante inesperada surpresa bem no final da história.

De fato, o tal leitor do IMDb conseguiu sintetizar perfeitamente o que este belo filme me passou.

É um filme surpreendentemente melhor do que a gente poderia de início esperar.

O jovem que morreu tinha altíssimo salário

Umesh Bist, o diretor e autor do roteiro original, demonstra desapreço por especificar alguns dados, algumas informações, alguns detalhes a que estamos em geral acostumados. Por exemplo: não é dito, em momento algum do belo filme, quantos anos Astik tinha, qual foi o motivo de sua morte, qual era exatamente sua profissão – nem por quanto tempo ele e Sandhya ficaram casados.

As informações sobre Astik, sobre Sandhya, o casamento deles – tudo vai sendo passado bem aos poucos para o espectador, em um diálogo aqui, outro ali, outro acolá. Bem aos poucos.

Astik tinha um posto bem importante em uma grande empresa, e um altíssimo salário. Isso fica bem claro – embora nunca seja dito que tipo de empresa é, de que área de atuação.

Ele havia assumido o compromisso de fazer os pagamentos da hipoteca da casa da família. E não é apenas uma casa: mais parece uma espécie de condomínio de uns três prédios baixos, onde mora toda a família: os pais, o irmão, dois avós de Astik, ele e Sandhya, mais, se não me engano, um tio dele e sua mulher.

Com um alto salário, havia assumido o pagamento das mensalidades, e incentivado o pai, Shivendra (Ashutosh Rana) a se aposentar.

Vemos que Shivendra está absolutamente chocado, apatetado, mortificado com a morte do filho. Todos os seus gestos, tudo o que ele diz e faz indica que está tomado por uma tristeza sem fim. Com o passar do tempo, vemos que, além da dor pela perda do filho querido, Shivendra também está angustiado com o futuro dele e da família, com a perspectiva de não poder mais contar com o salário extremamente confortável do filho. Sua mulher, Usha (Sheeba Chaddha), cuida da casa, certamente jamais trabalhou fora; o filho mais novo, Alok (Chetan Sharma), tem aí uns 18, no máximo 20 anos, ainda estuda.

Sandhya, a jovem mulher de Astik, agora sua viúva, também não trabalha fora.

Lugar de mulher é dentro de casa, cuidando da casa, da família. Essa é a grande regra básica daquela família, daquela sociedade – o filme mostra isso muito claramente. É o artigo primeiro da Constituição da classe média hindu. E o artigo segundo manda que o destino das mulheres seja traçado pelos homens da família. Pouco depois da metade do filme, os homens da família, reunidos, discutem se, quando e como a agora viúva Sandhya vai se casar novamente.

Este ponto é mostrado com bastante insistência: os casamentos não são decididos pelo casal, e sim por suas famílias.

Em pleno ano da graça de 2021.

A família da jovem viúva é mais “ocidentalizada”

É claro, é óbvio: não é que todas as famílias sejam iguais. O filme, evidentemente, mostra que há diferenças grandes entre grupos sociais, como em todos os lugares do mundo. Se mesmo em países bem pequenos, como, digamos, o Uruguai, há uma grande variedade de comportamentos, em todas as áreas, o que se dirá da Índia, aquele país-continente com mais de 1,3 bilhão de habitantes, rumando celeremente para ultrapassar a China e se tornar o país mais populoso do mundo.

A família de Astik é mostrada como bastante apegada às tradições, aos costumes ditados pela religião. Quem mais exige que as tradições sejam mantidas, sejam seguidas à risca, é o patriarca, Roshan Sethi, que todos chamam respeitosamente de Tayyaji (o papel de Raghuvir Yadav). (Não é explicitado, ou então eu não consegui compreender, por falha minha, se esse patriarca é o pai de Shivendra ou de sua mulher Usha – se é o avô paterno ou materno do rapaz morro.)

A família da jovem Sandhya parece ser menos apegada às tradições, mais aberta aos costumes ocidentais e à modernidade. Quando seus pais chegam de sua cidade para fazer companhia a ela, assim que ficam sabendo da morte do genro, Sandhya pergunta para a mãe onde o casal ficará, e a mãe diz que ali mesmo, na casa dela. E Sandhya se demonstra um tanto surpresa: explica que ali não há privada no estilo ocidental – sua mãe e seu pai se acostumariam a usar o banheiro em que se fica de cócoras?

Os pais de Sandhya, Alka e Girish (os papéis respectivamente de Natasha Rastogi e Bhupesh Pandya), são mostrados, portanto, como mais “ocidentalizados” do que os de Astik.

Mas fica claro também que o casamento da moça com Astik recebeu total aprovação das duas famílias. Não teria havido aquele casamento se as duas famílias não houvessem aprovado.

Há um diálogo que me pareceu especialmente importante entre Sandhya e sua mãe. Alka fala do fato de a filha ter recebido uma excelente educação, ter feito pós-graduação com brilhantismo. Sandhya responde com algo assim: – “E de que me adiantou ter feito pós?”

De que adiantou ela ter tido excelente formação universitária, com pós-graduação brilhante, se havia virado uma dona de casa?

E a mãe responde uma frase assim: – “Pois você se casou com um homem que tem um salário maravilhoso.”

Uau, meu!

Há um detalhe que me parece importante para compor a personalidade de Sandhya: uma das maiores amigas dela, Nazia Zaidi (o papel de Shruti Sharma), é muçulmana.

Nazia surge na casa da família bem no início do filme, um tanto para surpresa de Sandhya. – “Fiquei sabendo pelo Facebook e vim”, diz para a amiga, e passa a fazer companhia a ela a partir daí.

É um indicativo forte, claro, de que Sandhya é uma pessoa de cabeça aberta, positiva, não preconceituosa.

Haverá um momento, numa das cerimônias tradicionais dos funerais, em que Sandhya chama a participação da moça muçulmana no costume hindu. Há um breve momento de espanto dos mais velhos – mas ninguém tem coragem de negar a vontade da jovem viúva.

O diretor Umesh Bist não faz questão de realçar esse detalhe; é até possível que os espectadores menos atentos sequer percebam. Mas é um belo, importante momento de bom cinema.

A jovem executiva poderia ser de Paris ou Nova York

Há mulheres no mercado de trabalho, inclusive na parte mais ágil e competitiva, nas grandes empresas – o filme faz questão de mostrar isso, através da figura de Aakansha (o papel de Sayani Gupta, moça de beleza impressionante, na foto acima).

Um grupo de ex-colegas de trabalho de Astik vai à casa da família Giri, apresentar suas condolências aos pais do rapaz e à sua jovem esposa. Dá para perceber que são funcionários graduadíssimos da grande empresa. Entre eles está Aakansha, que, veremos, é vice-presidente de marketing da companhia.

Sandhya vai se aproximar de Askansha – e veremos que o mundo em que vive essa moça, executiva bem sucedida de uma grande empresa, é muito parecido com o dos jovens bem de vida das metrópoles ocidentais. O café que ela frequenta é idêntico aos dos locais elegantes de Londres, Paris ou Nova York. O apartamento em que ela mora, idem. Tem uma vista absolutamente deslumbrante para a cidade.

A cidade em que se passa a ação…

Falei mais acima que não é mencionado hora alguma o nome da cidade – o que é uma boa indicação de que os realizadores querem mostrar que aquela história poderia ocorrer em qualquer grande cidade da Índia.

Mas mostra-se que a cidade é banhada pelo Rio Ganges, o rio sagrado dos hindus.

As filmagens foram na cidade de Lucknow, a capital do Estado de Uttar Pradesh, com 3,5 milhões de habitantes. Há aí, me parece, uma certa licença poética dos realizadores: Lucknow não é banhada pelo Ganges.

“Pagglait” é uma pessoa que ouve a si própria

Antes deste Pagglait, Umesh Bist dirigiu três séries de TV e um único longa-metragem, O Teri, de 2014, uma mistura de comédia e drama não exibida comercialmente no Brasil. Sua filmografia como roteirista também é bastante curta – inclui, além de O Teri e deste Pagglait, um filme de grande sucesso na Índia, Hero (2015). Teve longa carreira na televisão antes de passar para o cinema.

Numa entrevista a um site indiano, FirstPost, o realizador disse uma frase inspirada sobre seu filme: “A maioria das histórias vai da vida até a morte. Mas Pagglait vai da morte para a vida.”

Gostei de ver, em um texto escrito na própria Índia, uma frase que valida a minha afirmação lá atrás de que o filme traça um quadro da sociedade indiana. Diz o texto, que, estranhamente, não é assinado: “O filme faz um sutil comentário sobre temas sócio-políticos contemporâneos do país.”

Diz o realizador Umesh Bist na entrevista ao FirstPost: “No Hinduísmo, a vida não é use-e-jogue-fora. Ela se recicla, e então há muitas vidas. A vida é sempre uma jornada, não tem fim. Eis por que até mesmo a morte é uma celebração. No contexto atual, uma sensação de celebração se infiltra naquele espaço.”

Ele contou que estava tocando um outro projeto quando assistiu a uma cremação – e foi a partir daquela experiência que começou a arquitetar a história do que viria a ser Pagglait.

E o que, afinal de contas, quer dizer essa palavra que dá o título original do filme?

Segundo a própria atriz Sanya Malhotra, que interpreta a protagonista Sandhya, “Pagglait é uma pessoa que escuta seu coração e faz o que o coração manda. Alguém que não procura validação externa. Essa pessoa, para mim, é uma Pagglait. A pessoa que ouve a si própria e não o que diz o mundo.”

Sanya Malhotra nasceu em Nova Délhi, em 1992 – estava, portanto, com 29 anos quando foi lançado este filme, o oitavo título de sua filmografia. Estudou balé, tem trabalhos elogiados, reconhecidos, como bailarina. Teve a sorte de estrear em filme que fez grande sucesso no gigantesco, descomunal mercado indiano, Dangal, de 2016, em que interpretou a conhecida (lá, é claro) desportista Babita Kumari, campeã de luta livre.

Está excelente, maravilhosa, como essa jovem viúva que não consegue chorar a morte do marido. Tem aquela facilidade que só os grandes atores dominam de ter muitas faces. Há momentos em que parece quase feia, há momentos em que está linda.

Sanya Malhotra é apenas uma das surpresas deste filme surpreendente.

Anotação em abril de 2021

Garota Estranha/Pagglait

De Umesh Bist, Índia, 2021

Com Sanya Malhotra (Sandhya Giri)

e Sayani Gupta (Aakansha, a vice-presidente de marketing), Shruti Sharma (Nazia Zaidi, a grande amiga de Sandhya), Sheeba Chaddha (Usha Giri, a mãe de Astik), Ashutosh Rana (Shivendra Giri, o pai de Astik), Chetan Sharma (Alok, o irmão mais jovem de Astik), Natasha Rastogi (Alka Pandey, a mãe de Sandhya), Bhupesh Pandya (Girish Pandey, o pai de Sandhya), Aasif Khan (Parchun, vizinho e amigo da família Giri), Raghuvir Yadav (Roshan Sethi, que todos chamam de Tayyaji), Yamini Singh (Janaki, a irmã de Shivendra), Jameel Khan (Ghanshyam, o marido de Janaki), Rajesh Tailang (Tarun Sethi, o irmão mais novo de Shivendra), Ananya Khare (Rashmi, a mulher de Tarun), Meghna Malik (Tulika, cunhada de Shivendra)

Argumento, roteiro, diálogos Umesh Bist

Fotografia Rafey Memood

Música Arijit Singh

Montagem Prerna Saigal

Casting Anmol Ahuja

Direção de arte Mayur Sharma

Produção Achin Jain, Ekta Kapoor, Shobha Kapoor, Guneet Monga, Balaji Motion Pictures, Sikhya Entertainment.

Cor, 114 min (1h54)

Disponível na Netflix em 4/2021.

***1/2

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