O Gambito da Rainha, a minissérie de sete episódios lançada mundialmente pela Netflix em 23 de outubro de 2020, é um absoluto, avassalador sucesso de público e crítica. É um fenômeno, uma coisa extraordinária.
No IMDb, o grande site enciclopédico que tem tudo sobre filmes, a série tem, em junho de 2021, a cotação de 8,6 em 10, média dos votos de mais de 324 mil leitores. É uma das notas mais altas que já vi.
No Rotten Tomatoes, The Queen’s Gambit tem a aprovação de 97% das críticas coletadas pelo site coletador de opiniões de crítica e público. Entre os leitores do site, o público, as pessoas comuns, a aprovação é de 95%. Não me lembro de ter visto nada assim antes. Vou até fazer um teste: vejo, por exemplo, uma obra acima de qualquer suspeita, aquela perfeita delícia que é Frozen, a animação da Disney que encantou o mundo. Frozen tem 90% da aprovação dos críticos e 85% do público.
O Gambito da Rainha tem aprovação maior do que a deliciosa fantasia da Rainha Elsa de Arendelle e sua irmã Anna!
É um fenômeno – e daqueles fenômenos que acabam extrapolando o universo do cinema, e viram fenômeno cultural: no segundo semestre de 2020, meses depois do lançamento da série, as vendas de tabuleiros de xadrez haviam se multiplicado tremendamente Estados Unidos afora, conforme mostraram matérias em diversas publicações e emissoras, como o New York Times, Fox Business, CNN, Forbes, Variety e muitos outros – segundo informa o IMDb.
Impressionante.
O sucesso foi tão grande, tão fenomenal, a unanimidade era tanta que confesso que fiquei com preguiça de ver a série. Eu tenho disso, é uma idiossincrasia que às vezes me ataca. Por diversas vezes a Mary me sugeriu que víssemos O Gambito da Rainha, e eu refugava. Meses atrás, revimos A Cor do Dinheiro, o filme de Martin Scorsese de 1986, sequência do clássico Desafio à Corrupção/The Hustler, de Robert Rossen de 1961 – e foi então que fiquei sabendo que The Queen’s Gambit se baseia em livro de Walter Tevis, o autor dos romances que deram origem aos dois grandes filmes. Aquilo me fez perder um tanto a má vontade para com a série, mas, mesmo assim, ainda se passariam três meses até que a Mary finalmente conseguisse me botar diante da história da garota que é um prodígio no xadrez.
O primeiro dos sete episódios me pareceu extremamente competente, é claro – mas ainda fiquei com um pouco de pé atrás. A partir do segundo, O Gambito da Rainha foi me conquistando. No sétimo episódio, estava fascinado – do mesmo jeito que milhões e milhões de espectadores mundo afora.
A heroína da história tem traços do autor
Walter Tevis. O cara que criou Eddie Felson, o gênio do bilhar que Paul Newman interpretou em 1961 e em 1986. O cara que criou essa Beth Harmon, absoluto gênio do xadrez, interpretada por Anya Taylor Joy. Vou começar por ele.
Walter Tevis (1928-1984) escreveu cerca de 25 contos e seis romances. The Hustler foi o primeiro romance, publicado em 1959. The Color of Money é de 1984 – Hollywood, portanto, levou apenas dois anos para levar cada um dos livros sobre o gênio do bilhar Eddie Felson para a telas.
Outro de seus livros é The Man Who Fell to Earth, de 1963, que deu origem ao filme homõnimo, lançado aqui com o título que é a tradução literal, O Homem que Caiu na Terra, de 1975, dirigido por Nicolas Roeg com David Bowie em uma de suas incursões como ator no cinema.
Foi só em 1983 – vários anos depois dos três citados anteriormente – que Walter Tevis lançou The Queen’s Gambit.
Teve uma vida, ao que tudo indica, rica, cheia. Morou e trabalhou em diversas cidades; nascido em San Francisco e criado em seus primeiros anos pertinho do fantástico Golden Gate Park, o Ibirapuera daquela cidade maravilhosa, morou no Kentucky quando adolescente e também durante anos na idade adulta. Serviu a Marinha nos meses finais da Segunda Guerra Mundial, em navio no Pacífico, na luta contra os japoneses. Deu aula de literatura inglesa e escrita criativa em várias universidades, no Kentucky, em Ohio e Connecticut, viveu em Nova York – onde morreria, quando estava com apenas 56 anos, em 1984, um ano apenas após o lançamento de The Queen’s Gambit.
Alguns dados biográficos de Walter Tevis são muito interessantes para quem viu a série. Quando ainda era criança, foi diagnosticado com uma doença cardíaca e internado durante um ano numa instituição para crianças convalescentes – e, nesse período, foi tratado com altas doses de fenobarbirtal, um barbitúrico usado como anticonvulsivante, hipnótico e sedativo.
Órfã aos oito anos de idade, Beth Harmon, a protagonista de O Gambito da Rainha é levada para uma instituição para crianças abandonadas e/ou sem pais, a tal Methuen Home – Orphanage for Girls. Era o final dos anos 1950, e nesse orfanato mantido por entidades religiosas eram servidos calmantes às crianças, todos os santos dias, como mostra o primeiro episódio da série. Começa ali a dependência a drogas que Beth desenvolve.
O livro foi escrito quando o autor já estava sóbrio
Dependência, vício. Esse é um dos temas centrais da história, tão importante quanto o xadrez – o jogo que levará a pobre, infeliz garota órfã a encontrar uma forma de se conectar com a vida.
Exatamente como sua criatura Beth Harmon, Walter Tevis foi um viciado compulsivo, fumante e bebedor de álcool em quantidades imensas, industriais. Consta, por exemplo, que, com o dinheiro que ganhou vendendo os direitos de adaptação de The Hustler para o cinema, ele tirou longas férias com a mulher, Jamie, no México, onde – segundo ele mesmo disse depois – ficou bêbado durante oito meses.
Na série, Beth fica dopada por álcool e pílulas às vezes por vários dias seguidos.
Jamie Griggs, que ficou casada com Tevis por mais de 20 anos e deu a ele um casal de filhos, lançou em 2003 uma autobiografia com o título My Life with the Hustler, minha vida com o trapaceiro – a palavra hustler, é claro, colocada aí para fazer a ligação com The Hustler, o primeiro filme baseado em obra dele, que o tornou famoso. Fico aqui imaginando que, se fosse lançar sua autobiografia depois de 2020, Jamie poderia chamá-la de My Life with the Gambit Master…
Nos anos 70, ele curou-se do vício, com a ajuda dos Alcoólicos Anônimos – e é impossível a gente não imaginar que isso tem a ver com O Gambito da Rainha. Ao contrário do romance The Hustler, escrito quando ele bebia, The Queen’s Gambit (assim como The Color of Money, lançado em 1984) foi criado sem álcool. Quando Walter Tevis estava sóbrio como um juiz – uma expressão que adoro desde que ouvi Jack Lemmon pronunciá-la em Como Matar Sua Esposa (1965), de Richard Quine.
Sober as a judge. A expressão é usada por Beth Harmon, não tenho certeza se no sexto ou no sétimo e último episódio, numa conversa com a amiga Jolene (Moses Ingram, uma jovem atriz muito interessante).
Esse fato – de o livro ter sido escrito quando ele não estava mais viciado – me parece muito importante para a compreensão do que ele queria mostrar com este romance.
Em uma entrevista ao New York Times publicada na época do lançamento do livro, em 1983, Tevis afirmou que a história é “um tributo às mulheres inteligentes”. Segundo a Wikipedia, que cita essa frase, na época houve muita especulação sobre quem teria sido a inspiração para a personagem de Beth Harmon, mas Tevis negou enfaticamente que ela havia sido baseada em alguém da área do xadrez, fosse homem ou mulher.
Um mestre de xadrez foi consultor para o livro e a série
O Gambito da Rainha despertou o interessa da indústria do cinema assim que foi lançado. Ainda em 1983, o jornalista do New York Times Jesse Kornbluth comprou os direitos, mas o projeto foi deixado de lado depois da morte de Tevis em 1984. Em 1992, o roteirista escocês Allan Scott comprou os direitos da viúva de Tevis, e chegou a escrever um roteiro de um filme; consta que os diretores Michael Apted e Bernardo Bertolucci estiveram envolvidos no projeto de alguma maneira – mas acabou que não se conseguiu financiamento.
Em 2007, Allan Scott começou a trabalhar com o ator Heath Ledger no projeto de enfim filmar a história. Seria a estréia de Ledger na direção – mas ele morreria em janeiro de 2008.
Em março de 2019, finalmente, Allan Scott conseguiu um sinal verde com a Netflix para transformar o livro em uma minissérie. Outro Scott, Scott Frank, juntou-se ao projeto, como diretor, produtor executivo e co-roteirista. Os dois, Allan Scott e Scott Frank, assinam O Gambito da Rainha como criadores, roteiristas e produtores executivos.
Os realizadores da série demonstram talento em grande quantidade, em doses tão grandes quanto as de bebida e pílula que Beth Harmon ingere ao longo dos cerca de 395 minutos de duração – 6 horas e 35 minutos. Além de talento, no entanto, tiveram muita sorte.
Um golpe de sorte extraordinário – e ao mesmo tempo uma prova da seriedade com que os realizadores trabalharam para criar a série – se chama Bruce Pandolfini.
Bruce Pandolfini, mestre nacional da Federação de Xadrez dos Estados Unidos, nascido em 1947, no interior de Nova Jersey, é tido, diz a Wikipedia, como o mais experiente professor e treinador de enxadrismo de seu país. Pandolfini, segundo a enciclopédia, possivelmente deu mais aulas de xadrez do que qualquer outra pessoa do mundo. Lá pelo verão de 2015, já havia dado cerca de 25 mil aulas – somando as particulares e as em grupo. A lista de gente que estudou com ele é grande e inclui vários que parecem ser grandes nomes desse universo fantástico, incrível, que é o xadrez.
Em 1983, Pandolfini trabalhou como consultor de Walter Tevis em tudo que dizia respeito a xadrez no romance que escrevia. Consta inclusive que o título, The Queen’s Gambit – um tipo de movimento das peças no jogo – foi uma sugestão do próprio consultor ao autor do livro.
Pois não é que os realizadores procuraram o mesmo Pandolfini para ser o consultor da minissérie?
Isso é fantástico.
Beth Harmon perde a mãe aos oito anos de idade. Aos nove, ela começa a aprender xadrez com Mr. Shaibel (Bill Camp), o solitário, taciturno, rígido zelador do orfanato. É dito expressamente que ela está com 17 anos em 1966, quando vai com a mãe adotiva, Alma Wheatley (Marielle Heller, na foto abaixo, outra atriz interessantíssima, fascinante), disputar um torneio na Cidade do México. Portanto, em 1968, quando ela finalmente vai a Moscou, para enfrentar pela terceira vez o grande mestre Vassily Borgov (Marcin Dorocinski), está com 19 anos, no máximo 20, dependendo aí do mês de nascimento (que não é dito).
Ou seja: ao longo das 6h35 da série, acompanhamos a vida de Beth Harmon durante 11 ou 12 anos. Quando a série termina – e o final é maravilhoso, belíssimo, emocionante –, ela está com 19 ou 20 anos.
Bruce Pandolfini levou 37 anos entre atuar como consultor para a redação do livro e atuar como consultor para a realização da minissérie.
Disputando xadrez com o inimigo na Guerra Fria
O resultado do trabalho de Bruce Pandolfini está expresso na tela – e é o tema do segundo item da página de Trivia do IMDb sobre a série: “ao contrário da maioria dos filmes e shows de TV mostrando tabuleiros de xadrez, os tabuleiros estão todos com as peças colocadas corretamente nesta série, e os jogos e posições são realistas. O mestre nacional Bruce Pandolfini e o grande mestre Garry Kasparov trabalharam como consultores para essa série.”
Ah, também o russo Garry Kasparov!
Nascido em 1963 na então República Socialista Soviética do Azerbeijão – 16 anos depois, portanto, de Pandolfini –, Kasparov foi o mais novo campeão mundial de xadrez, ao vencer a final em 1985 com 22 anos. Um geninho precoce como Beth Harmon.
Os russos, os soviéticos!
A Guerra Fria é outro dos elementos importantes em O Gambito da Rainha. A rivalidade entre os jovens grandes enxadristas americanos e os russos – chamados indistintamente ora de russos, ora de soviéticos, o que em si já é interessante. A rivalidade de escolas diferentes dos mestres do jogo – eles jogam juntos, em grupo, trocam experiência, são solidários, enquanto nós, americanos, somos individualistas, sentencia o jovem que havia sido campeão nacional dos Estados Unidos, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster). E, por trás dessa rivalidade entre enxadristas então as duas superpotências do planeta.
Toda essa coisa do clima de Guerra Fria é estupidamente bem colocada na série – e culmina no sétimo e último episódio, passado em sua maior parte em Moscou. Cada detalhe é uma maravilha. A organização cristã – na verdade da direita babante – que se dispõe a custear a viagem de Beth a Moscou, mas exige dela discursos regressivos, reacionários. O Departamento de Estado que se recusa a fornecer a merrequinha, a bobagenzinha de US$ 3 mil para ajudar Beth a pagar sua viagem a Moscou – mas bota um agente de segurança para ficar grudado nela o tempo todo, não tanto para protegê-la contra algum perigo, mas para impedir que ela fizesse amizade com os soviéticos, os inimigos. Os russos, pessoas comuns, “normais”, que vão ficando fascinados por aquela garotinha que é brilhante na sua especialidade. Nada a ver com ideologia, não – apenas pessoas que vão passando a admirar uma outra pessoa.
Até a excepcionalmente bela última sequência da série – e aí não tem que falar mais nada porque seria spoiler, claro.
Entre muitas outras coisas boas, O Gambito da Rainha tem isso, essa noção maravilhosa de que as pessoas são muito mais importantes que a ideologia. Em qualquer lugar, em qualquer ocasião. Sempre.
Aqui cabe um rápido registro. A dupla Xadrez & Guerra Fria foi tema também de um filme muito bom, muito interessante, uma co-produção Polônia-EUA de 2019, Partida Fria/ The Coldest Game.
Uma garota que promete, e uma jovem extraordinária
Houve outro golpe de sorte dos realizadores: aconteceu de eles encontrarem a Beth Harmon perfeita. Ou as Beth Harmon perfeitas.
São três. Annabeth Kelly faz Beth bem criancinha, aí com uns 5 anos de idade. Ela aparece em alguns flashbacks, sempre ao lado da mãe, Alice Harmon (Chloe Pirrie) – há flashbacks ao longo de todos os sete episódios. A garotinha não é muito exigida, mas cumpre com perfeição o papel, inclusive na semelhança física com as duas atrizes que aparecem bem mais tempo na tela.
Isla Johnston faz Beth desde os oito anos de idade até, sei lá, uns dez. Aos oito anos, a mãe joga o carro contra um caminhão que vem na estrada em sentido contrário; Beth, por um milagre, escapa sem um arranhão, e é levada para o tal Lar Methuen Home – Ofanato para Garotas.
Essa menina Isla Johnston interpreta Beth durante bastante tempo na tela – uma época fundamental da sua vida, desde a perda da mãe até a chegada ao orfanato, os anos naquele estranho lugar que dá pílulas de droga para dopar as crianças, sua descoberta do xadrez no sótão, onde Mr. Shaibel jogava sozinho. E a garota está uma maravilha.
O Gambito foi sua terceira série: antes, havia aparecido em Kiri, de 2018, e Doctors, de 2019. Agora em junho de 2021, está filmando mais uma, Invasion.
Tadinha: começou cedo demais – assim com Beth Harmon.
Lembro da canção do Palavra Cantada que ouvi trocentas vezes com minha neta Marina quando ela era pequena: “Criança não trabalha, criança dá trabalho”… Ô mundo danado, siô.
Anya Taylor Joy faz Beth a partir aí dos 13 anos, quando de repente, do nada, do absoluto nada, out of the blue, aparece um casal para adotá-la, os estranhos, infelizes Wheatley – Alma, interpretada, como já foi dito, por Marielle Heller, e Allston, o papel de Patrick Kennedy –, até os 19, 20 anos, em que ela, a melhor jogadora de xadrez dos Estados Unidos, vai participar de um torneio com os melhores do mundo em Moscou, URSS.
É um desafio e tanto interpretar uma órfã de vida trágica, infeliz, abençoada com a dádiva da genialidade para o jogo de xadrez, mas dependente desde criança em drogas, esquisita, estranha, de comportamento muitas vezes erráticos, dos 13 aos 20 anos. Um desafio descomunal.
Um desafio, eu diria, ainda maior do que fazer uma quase cega pobre contratada para cuidar de uma criança rica, surda e muda de nascença que age como um animal; ou um autista que é gênio em Matemática; ou um oficial de alta patente que ficou cego em combate e resolve gastar tudo o que ganhou na vida da generosa pensão do governo para passar algumas horas de infinito prazer.
Pois essa menina Anya Taylor Joy tem um desempenho como Beth Harmon tão impressionante quanto o de Anne Bancroft em O Milagre de Anne Sullivan (1962), o de Dustin Hoffman em Rain Man (1988) ou o de Al Pacino na refilmagem americana de Perfume de Mulher (1992). (Ahnnn… Como se sabe, tanto Anne Bancroft quanto Dustin Hoffman quanto Al Pacino ganharam, por esses papéis, aquela estatueta de gesso coberta com pozinho dourado que consegue ser o prêmio mais famoso do mundo do cinema. Mas isso é só uma coincidência…)
Anya Taylor Joy. Jamais tinha ouvido falar.
Meu Deus do céu e também da Terra! Que coisa!
Nasceu em abril de 1996 – quase 11 anos depois da minha filha. Nasceu em Miami, a cidade mais cucaracha dos U.S. of A. – e sua ascendência é uma imensa mixórdia, de fazer a gente, os que são radicalmente contra os puro-sangues, radicalmente a favor da miscigenação, da mistura, da zorra, dar pulos de alegria. O pai é argentino, com ascendentes ingleses e escoceses; a mãe nasceu na Zâmbia, filha de um diploma inglês e uma mãe espanhola. A garota viveu na Argentina até os seis anos, quando então a família se mudou para Londres. Trabalhou como modelo (é muito magra, com cambitinhos quase biafrentos, conforme podemos ver na série, e tem 1 metro e 73), e aos 14 anos usou sua própria poupança para se mudar para Nova York atrás de uma carreira como atriz.
O Gambito da Rainha foi o 23º título de sua filmografia. Em junho de 2021, tinha 14 prêmios, fora 26 outras indicações.
Incrível.
Dois pontos pouco claros. E uma personagem misteriosa
Falei lá pelo começo deste texto que ainda durante o primeiro episódio fiquei com pé atrás. Gostaria de tentar explicar.
De cara, achei que há uma falha no roteiro por não se explicar como e por que Beth Harmon foi levada para aquela instituição, o orfanato Methuen Home. Ora bolas, seguramente haveria, naquele final de anos 50, dezenas, centenas de órfãs ou garotas abandonadas pelos pais. Por que Beth foi para lá, para aquele lugar que, apesar dos problemas – a rigidez, e, em especial, a droga –, era um orfanato muito, mas muito bom?
Como era feita a triagem? Quem definia quem iria para a Methuen Home e quem ia para outros orfanatos seguramente piores?
A falta de explicações para esses pontos me grilou.
E me grilou também a coisa de aquele orfanato tão sólido, num prédio tão bom, tão confortável, com professores de diversas matérias, ter essa coisa de dar droga, dar bola calmante para as crianças. Jamais ouvi falar em nada parecido.
As duas coisas me pareceram pouco plausíveis. Tenho este problema: gosto de plausibilidade.
Mas tudo bem – a partir do segundo episódio, tudo vai ficando tão fascinante que deixei de lado as dúvidas iniciais.
Há um ponto em que a série se distancia do romance. Pelo que mostra a sinopse na Wikepedia, no livro o pai de Beth morre devido ao alcoolismo.
Os dois Scott resolveram fazer algo diferente. A mãe de Beth, Alice, é mostrada como uma matemática brilhante, autora de um livro sobre algo aí dessa ciência fantástica – mas, assim como a filha, é uma pessoa instável, de comportamento errático. Uma mulher inteligentíssima, genial em um quesito – mas próxima da loucura. Mãe solteira de uma garotinha produto de uma relação com um homem rico e casado – uma mulher que simplesmente não estava preparada para ter e cuidar de uma filha.
Os criadores de uma série podem se distanciar o quanto quiserem da obra original – e a verdade é que, pelo que pude ver, não chegaram a se distanciar muito, não. O único ponto bem diferente é esse aí do pai de Beth, um alcoólatra no livro, um homem rico e casado com outra mulher na série.
Há na série uma personagem que, propositalmente, creio eu, os Scott fizeram misteriosa – Cleo.
Cleo (o papel de Millie Brady) é uma bela francesa que diz trabalhar como modelo; chega à casa de Benny Watts com dois amigos dele, e conversa bastante com Beth, que estava hospedada na casa do jovem campeão, treinando com ele para o jogo com o mestre russo Borgov, que seria realizado em Paris. Cleo diz que Beth tinha que procurá-la quando fosse a Paris para aquele torneio; sairiam juntas, a francesa mostraria a cidade para ela.
Beth não procura a moça durante sua estadia em Paris. Está num período longe do álcool e das pílulas, fazendo um enorme esforço para permanecer sóbria para enfrentar o grande mestre russo. Na véspera da partida contra Borgov, Cleo aparece, insiste para Beth tome uma dose de pastis – e aí a vaca vai pro brejo.
Diz um dos itens da página de Trivia sobre a série no IMDb: “Cleo pode ser um espiã soviética”.
Assim que vimos a sequência em que Beth vai se embebedando na véspera do jogo fundamental contra Borgov, a Mary exclamou exatamente o que mais tarde eu leria no IMDb. É a lógica. Só podia ser uma espiã paga pela KGB para deixar a garota prodígio americana zonza na manhã do jogo.
Mas a série não mostra se Cleo era ou não era paga pelo ouro de Moscou. Deixa em aberto, para que o espectador pense o que quiser. Achei isso uma bela sacada.
Quando encontra a amizade, Beth enfim se salva
Xadrez. Menina de vida duríssima, órfã, de inteligência genial em um jogo até então absolutamente masculino. A Guerra Fria. Drogas, a dependência. São muitos os temas da série.
Mas creio que o tema que os realizadores procuraram realçar de maneira especial é ainda um outro, além daqueles do parágrafo anterior: a amizade, a solidariedade.
Beth é uma menina solitária, fechada em si mesma – provavelmente em função da trágica perda da mãe quando tinha apenas oito anos. O isolamento dela só se aprofunda durante os anos que passa no orfanato – sua única amiga é Jolene, e é Jolene que a procura. (Na foto acima, Moses ingram, que interpreta Jolene.)
Continua solitária, isolada, trancada em si mesma depois de ser adotada por Alma Wheatley. Demora muito a conseguir se aproximar da mãe adotiva.
À medida em que vai se tornando conhecida e respeitada no mundo do xadrez, algumas pessoas vão se aproximando dela – mas ela se mantém fechada em copas. São sempre os outros que a procuram: D.L. Townes (Jacob Fortune-Lloyd), o primeiro amigo entre os enxadristas, Harry Beltik (Harry Melling), o campeão estadual, Benny Watts, o campeão americano já citado.
Será quando percebe a importância da amizade, da solidariedade, da confiança nos amigos, que Beth vai crescer, amadurecer. Florir, enfim. Primeiro com o reaparecimento de Jolene após anos e anos, e depois com a corrente formada em torno dela por Benny, Harry, Townes e outros enxadristas.
A amizade salva Beth, e a faz crescer.
Não há dúvida: é uma beleza de série.
Anotação em junho de 2021
O Gambito da Rainha/The Queen’s Gambit
De Scott Frank e Allan Scott, criadores, roteiristas, EUA, 2020
Direção Scott Frank
Com Anya Taylor-Joy (Beth Harmon)
e Isla Johnston (Beth Harmon dos 8 aos 10 anos), Annabeth Kelly (Beth Harmon aos 5 anos), Chloe Pirrie (Alice Harmon, a mãe), Bill Camp (Mr. Shaibel, o primeiro professor), Marcin Dorocinski (Vasily Borgov, o grande mestre russo), Marielle Heller (Alma Wheatley, a mãe adotiva), Thomas Brodie-Sangster (Benny Watts, o campeão dos EUA), Moses Ingram (Jolene, a colega de internato), Harry Melling (Harry Beltik, o campeão estadual), Janina Elkin (a mulher de Borgov), Matthew Dennis Lewis (Matt), Russell Dennis Lewis (Mike), Patrick Kennedy (Allston Wheatley, o marido de Alma), Christiane Seidel (Helen Deardorff, a diretora do internato), Jacob Fortune-Lloyd (D.L. Townes, o primeiro amigo), Millie Brady (Cleo, a modelo francesa), Akemnji Ndifornyen (Mr. Fergusson), Dolores Carbonari (Margaret), Rebecca Root (Miss Lonsdale), Clement Guyot (diretor de torneio)
Roteiro Scott Frank e Allan Scott
Baseado no romance de Walter Tevis
Fotografia Steven Meizler
Música Carlos Rafael Rivera
Montagem Michelle Tesoro
Casting Anna-Lena Slater, Tina Gerussi, Ellen Lewis, Olivia Scott-Webb, Kate Sprance
Direção de arte Uli Hanisch
Produção Mick Aniceto, Marcus Loges, Flitcraft, Wonderful Films, Netflix
Cor, cerca de 395 min (6h35)
Disponível na Netflix em junho de 2021
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Olá Sérgio,
Muito interessante sua resenha, ainda mais que não conhecia o autor do livro e aqui consegui ter um melhor cenário sobre a criatividade dele para construir boas obras.
Assisti essa série em novembro/2020 e fiz essa resenha sobre a mesma.
A Genialidade e suas nuances
Minissérie muito bem desenvolvida e com muito cuidado com o ambiente da época, as moradias, figurinos e uma direção de arte impecável.
Retrata muito bem o período da Guerra Fria e principalmente as relações estremecidas entre os EUA e a antiga URSS.
Atuação absurdamente excepcional de Anya Taylor-Joy que já tinha dado mostra de seu talento em A Bruxa e Fragmentado e que aqui exala todas as suas nuances da grande atriz que vem se tornando. O elenco de apoio também está muito bem e destaco a atuação da atriz Isla Johnston como a jovem Beth Harmon.
Independente se goste ou não de xadrez, vale a pena assistir porque além de tudo o que foi dito aqui, a história demonstra que genialidade também tem suas nuances, às vezes boas e outras nem tanto.
Recomendo!
Olá, Junior!
Muito legal a sua resenha. Alguns pontos que você toca eu tamhém abordei, como a atuação das duas atrizes, e a importância que a série dá à Guerra fria.
Um abraço!
Sérgio
Vaz, eu tenho birra de série. Me chama de reacionário, de obsoleto, de ultrapassado. Essas com 5, 6, 7 temporadas então são lamentáveis.
Há honrosas exceções, é claro.
“Família Soprano”, na minha opinião, reina absoluta como a melhor já feita. “Simpsons”, obviamente, apesar de gostar só até a nona ou décima temporada. Mas não era disso que eu queria falar.
“O Gambito…”, felizmente, tem início, meio e fim. Achei impecável, me envolveu de uma forma que cativou mente e coração.
Ótima resenha. É a terceira que leio, já salvei seu site nos favoritos.