Jeca Tatu

2.5 out of 5.0 stars

Jeca Tatu, de 1959, foi o décimo dos 32 filmes estrelados por Amácio Mazzaropi, humorista, cantor, ator, produtor e um dos maiores astros da história do cinema brasileiro. De uma certa maneira, porém, Mazzaropi foi a encarnação do Jeca em boa parte de sua fantástica carreira.

O Jeca – o caipira, o interiorano bronco, preguiçoso, indolente, “mas também astucioso, manhoso e valente quando necessário, além de honesto, sempre” – foi uma persona que Mazzaropi desenvolveu, adaptou a si próprio, e se transformou numa marca registrada, um ícone do cinema. Uma persona típica dele, assim como o Vagabundo foi para Charlie Chaplin, o judeu nova-iorquino intelectualizado, neurótico, foi para Woody Allen, o figuraça Cantinflas para Mario Moreno, o mais atrapalhado trapalhão para Jerry Lewis.

O encontro de Amácio Mazzaropi com o Jeca Tatu parece coisa predestinada, prevista nas estrelas. No mínimo, prevista pela Geografia: nascido em São Paulo, Capital (em 1912), mudou-se aos dois anos com os pais para Taubaté, a terra dos avós maternos, e passou a infância ali no interior, em cidade então pequena – a mesma cidade natal de José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), o sujeito que, em 1918, criou o Jeca Tatu.

O pública já ria só de ver sua figura

A vida de Mazzaropi daria um maravilhoso filme. Só a sua juventude já tem material suficiente para um belo filme sobre a vida de artistas de grupos mambembes, saltimbancos, que viajam de cidade em cidade apresentando seus espetáculos, como em Bye Bye Brasil de Cacá Diegues (1980), Mulheres e Luzes de Alberto Lattuada e Federico Fellini (1951), A Estrada da Vida de Fellini (1954), Bronco Billy de Clint Eastwood (1980).

Garoto ainda, com apenas 14 de idade, entrou para a caravana de um circo, o La Paz. Nos intervalos do número do faquir, contava piadas e causos – e já aí imitava o jeito dos caipiras que havia observado no Vale do Paraíba. Tinha a experiência da vida do interior – e também o exemplo dado pelo ator, cantor e radialista Genésio Arruda (1898-1967). “Genésio Arruda e se irmão Sebastião estavam no auge e eu procurei fazer o mesmo, principalmente imitando o Sebastião, que me parecia mais pacato”, contou.

“Em 1940, criou sua própria companhia, viajando com um barracão desmontável (o que se chamava teatro de emergência) – o Pavilhão Mazzaropi, onde apresentava uma peça e, em seguida, um ato variado, como era costume na época. Na Rádio Tupi de São Paulo, Mazzaropi fazia, no fim dos anos 40, um programa de 15 minutos, em que conversava com os caipiras da grande cidade, tornando-se bastante popular. Contratado para fazer televisão, praticamente inaugurou a TV Tupi de São Paulo, participando do programa ‘Rancho Alegre’.”

O texto acima é de Nuno César Abreu, de quem transcrevi no segundo parágrafo desta anotação aqui os adjetivos que definem a persona do caipira que Mazzaropi criou – astucioso, manhoso, valente quando necessário, honesto sempre. É de Nuno César Abreu o verbete sobre Mazzaropi na maravilhosa Enciclopédia do Cinema Brasileiro, organizada por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda (Editora Senac São Paulo.)

No circo, em excursões pelas cidades do interior – principalmente de São Paulo e de Minas –, nas experiências no teatro, depois na nascente televisão brasileira, fazia os gestos, o jeito de andar, de vestir, o modo de falar, o palavreado do caipira típico, a persona que criou e foi desenvolvendo. Consta que ele nem precisava começar a falar: o público já ria só da sua figura.

Da TV para o cinema foi um pulo. O produtor, diretor e autor Abílio Pereira de Almeida (1906-1967) o levou para a Vera Cruz, o estúdio criado em São Bernardo do Campo por Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho. Os três primeiros filmes de sua carreira, entre 1952 e 1954, foram na Vera Cruz.

Ousado, ativo, empreendedor, a partir de 1958 passou a produzir ele mesmo seus filmes. Em 1958 fez Chofer de Praça e em 1959 o Jeca Tatu – os dois dirigidos por Milton Amaral (1934-1995). Amaral foi também o autor do roteiro de Jeca Tatu, com base numa história criada pelo próprio Mazzaropi, com base no conto “Jeca Tatuzinho” de Monteiro Lobato.

Lobato inventou o Jeca Tatu, um tremendo sucesso

É fundamental falar de Monteiro Lobado. O filme não existiria sem ele – seu nome está junto do título do filme, na abertura dos créditos iniciais: “Uma sincera homenagem ao saudoso Monteiro Lobato”. E, ao final dos créditos, há o seguinte letreiro: “Esta história é baseada no conto ‘Jeca Tatuzinho’, cujos direitos autorais foram cedidos graciosamente pelo Instituto Medicamentos Fontoura. Expresso aqui meu agradecimento. Mazzaropi.”

O personagem Jeca Tatu foi criado por Monteiro Lobato em seu primeiro livro, Urupês, lançado em 1918 – uma coletânea de 14 contos e crônicas que haviam sido publicados na Revista do Brasil e no jornal O Estado de S. Paulo. Alguns dos textos se dedicavam a descrever as condições de vida dos trabalhadores rurais paulistas da época – mais especificamente os de sua região, o Vale do Paraíba.

“O Jeca Tatu é descrito como um caipira indolente, desleixado, sempre de cócoras e pés descalços, nenhuma educação, cultura, ambição ou mesmo disposição para melhorar de vida. Vive do que a natureza derrama aos seus pés e flerta o tempo todo com a preguiça, a cachaça e as crendices populares. Jeca Tatu é o homem do campo real, que leva uma vida miserável nos rincões brasileiros e é praticamente ignorado pelos governantes. É lembrado pelos políticos apenas no momento do voto nas eleições. ‘O fato mais importante da sua vida é votar no governo. (…) Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos e que chama de sua graça’, diz Lobato, em um dos trechos do livro.”

O parágrafo acima é de Marcus Lopes, e foi publicado na BBC News Brasil em 2018, para marcar o centenário do surgimento do personagem.

O livro Urupês foi um grande sucesso; a reportagem de Marcus Lopes conta que o livro teve mais de 30 mil exemplares vendidos em sucessivas edições até 1925, e foi traduzido para o espanhol e inglês. Em 1919, Rui Barbosa citou a figura do Jeca Tatu em discurso durante sua campanha presidencial.

Mas a fama do personagem cresceria muito mais, estrondosamente mais, quando Monteiro Lobato criou o conto ”Jeca Tatuzinho”, em 1924, em que o Jeca recebe a visita de um médico, aprende algumas noções básicas de higiene e se cura de ancilostomose – uma doença então muito comum nas áreas rurais.

O conto foi publicado no Almanaque Fontoura, que servia para divulgar noções de higiene e também os produtos farmacêuticos de Cândido Fontoura, de quem Lobato era amigo. O Almanaque Fontoura é tido como a peça publicitária de maior sucesso da propaganda brasileira e chegou a ter 80 milhões de exemplares distribuídos

Não resisto à tentação de transcrever o início do “Jeca Tatuzinho”, que inspirou Mazzaropi a escrever a história do filme:

“Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes.

“Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto corria um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

“Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis, nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.

“Todos que passavam por ali, murmuravam:

“- Que grandessíssimo preguiçoso!”

Uma trama bobinha, com um final despirocado

O Jeca Tatu de Mazzaropi é, sobretudo, um grandessíssimo preguiço. O cara não faz absolutamente nada de produtivo – mas diz que trabalha de sol a sol, e por isso está sempre cansado, querendo dar uma deitadinha onde for pra descansar um pouco, que ninguém é de ferro.

A trama que Mazzaropi criou é, a rigor, uma grande bobagem.

Quem faz todo o trabalho da casa e da pequena plantação são Jerônima, a mulher dele, e a bela filha Marina.

Jerônima é interpretada por Geny Prado (na foto acima), presença constante nos filmes do ator e produtor. Marina é o papel de Marlene França, então com apenas 16 anos e iniciando o que seria uma bela, rica carreira.

O Jeca está sempre em discussões com o fazendeiro vizinho, o italiano Giovani (Nicolau Guzzardi), dono de uma propriedade muitíssimo maior que a dele.

Um toque de Romeu e Julieta: a jovem filha do Jeca é paquerada pelo filho do seu desafeto Giovani, Marcos (Francisco di Franco) – e retribui as atenções dele.

Mas o grande problema na vida do Jeca não é o fazendeiro italiano. É um tal de Vaca Brava (Roberto Duval), o bandido da história. Vaca Brava quer porque quer se casar com a bela Marina – e, diante da recusa dela e do Jeca, vai infernizar a vida dele. Passa a cometer alguns pequenos crimes – e fazer com que eles pareçam obra do Jeca.

Já mais para o final, a história dá uma despirocada brava, quando se enfia na trama um toque político, que vem através de um milionário de São Paulo Capital, o dr. Felisberto (o papel do comediante Pirolito), que quer ser eleito deputado e espera contar com a ajuda do Jeca como seu cabo eleitoral.

É de um ridículo atroz a sequência em que o Jeca vai se encontrar pela primeira vez com o dr. Felisberto, na mansão milionária dele, onde está acontecendo uma festa com dezenas e dezenas de convidados, e um bando de mulheres se põe a perseguir o nosso herói, que trepa numa árvore para fugir delas.

A louca da aldeia, uma figura interessantíssima

Três pontos me pareceram especialmente interessantes. Um deles tem a ver com essa coisa de as mulheres perseguirem o Jeca e ele não saber o que fazer – a não ser fugir delas trepando numa árvore.

O Jeca Tatu de Mazzaropi não gosta de mulher. As mulheres gostam dele – mas ele não dá a menor bola para elas. O sujeito trata muito mal a sua própria mulher – e, credo, meu, essa Jerônima é uma santa. Faz absolutamente tudo para e por ele.

O Jeca é feio, desengonçado, tem um jeito de bobão – embora seja, na verdade, bem esperto. E no entanto Dona Baratinha, a doidinha da aldeia, está sempre dando em cima dele.

Dona Baratinha – o papel de Nena Viana – é outro ponto que me pareceu fascinante no filme.

Há muitas histórias passadas em cidades pequenas, vilarejos, que têm um louco. A Filha de Ryan, do grande David Lean, por exemplo, tem o louco da aldeia. Pois Dona Baratinha é assim a louca da aldeia na cidadezinha mais próxima da fazenda do Jeca e do italiano Giovani. É uma figuraça: ela não pára quieta um único instante, fica dando pulinhos o tempo todo. E pisca os olhos grandes, tornados maiores pela maquiagem que a deixam um tanto parecida com a boneca Emília do Sitio do Picapau Amarelo (que aliás fica por ali mesmo, no Vale do Paraíba, na região de Taubaté e Lorena).

E ela dá em cima do Jeca. Todo mundo sabe que o Jeca é casado, é claro, mas Dona Baratinha não quer nem saber: canta o Jeca, desaforadamente.

E há uma coisa fantástica: cada vez que o tal de Vaca Brava apronta uma para culpar o Jeca – como, para dar um exemplo, tocar fogo no paiol da fazenda de Giovani, deixando perto algo pertencente ao caipira -, acontece de Dona Baratinha estar por perto, e ver tudo, sem ser vista. Só que, sempre que tenta contar o viu, ninguém a deixa falar, ou ninguém presta atenção – é louca, mesmo…

Fiquei pensando, depois que vi o filme… Dona Baratinha é uma personagem em tudo por tudo fascinante. É completamente inesperada, é fora da realidade. É um ponto surreal, fantástico, estranho, insólito, no meio da comédia popular. Se não fosse um filme de Mazzaropi, os críticos derramariam milhares de elogios. Fariam comparações com o humor nonsense dos Irmãos Marx. Como é Mazzaropi, os críticos sequer repararam na figura da Dona Baratinha. Provavelmente nem viram o filme: meteram o pau sem ver.

Ele fazia 20% da arrecadação dos filmes brasileiros

O terceiro ponto que me pareceu muito interessante neste filme – que a rigor, a rigor, é fraco mesmo, não tem nada a ver com grande cinema, é divertissement para as massas – é a existência dos números musicais.

Na tela estão os jovens namorados Marlene França-Marina e Framcisco di Franco-Marcos. De repente, não mais que de repente, surge Agnaldo Rayol, maior sucesso naquela época, 1959, e canta a maravilha que é “Estrada do Sol”, de Tom Jobim e Dolores Duran.

Bem mais adiante, o Jeca está na propriedade do milionário dr. Felisberto, em São Paulo Capital; o clima é de festa em torno da piscina – e então os irmãos Tony e Celly Campelo (na foto acima) atacam do roquinho pré-Jovem Guarda “Tempo para Amar”, de Fred Jorge e Mário Genari Filho.

Fim de tarde na fazenda, hora do angelus – e então Lana Bittencourt solta os trinados da “Ave Maria” de Vicente Paiva e J. Redondo. Todos param de trabalhar para ouvir a bela voz de Lana Bittencourt.

Tem mais. O próprio Amácio Mazzaropi nos apresenta “Fogo no Rancho”, do grande Elpídio dos Santos e mais Anacleto Rosa, e “Pra mim o azar é festa”, de João Izidoro Pereira e Ado Benatti.

Cinco números musicais!

Exatamente como acontecia nas chanchadas da Atlântida e também de outras produtoras, as chanchadas feitas no Rio de Janeiro, então Capital Federal. As chanchadas, feitas basicamente no Rio, e os filmes de Mazzaropi, de São Paulo, contemporâneos, são dois fenômenos do cinema brasileiro – dois estilos que conquistaram a simpatia do público, que fizeram o público se aproximar do cinema brasileiro.

A crítica não dava a menor importância para os filmes de Mazzaropi – mas o povo enchia os cinemas que passavam seus filmes.

Com jeitão de bobo mas danado de esperto, exatamente como o Jeca Tatu, Amácio Mazzaropi “compreendeu o sistema de produção/distribuição/exibição e atuou diretamente sobre ele, investindo na estrutura necessária para o máximo de aproveitamento do mercado”, escreveu Nuno César Abreu. Além de produzir seus próprios filmes, Mazzaropi “montou uma distribuidora exclusivamente para seus filmes, que se ramificou pelo país, e manteve ótimas relações com os exibidores, escudado no seu sucesso comercial. Enquanto o Jeca circulava com desenvoltura de produto, seu esquema empresarial controlou cerca de 20% da arrecadação dos filmes nacionais entre 1970 e 1975, um público de cerca de 3 milhões de espectadores por filme.”

É de tirar o chapéu. Mazzaropi é de tirar o chapéu.

Anotação em 4/2021

Jeca Tatu

De Milton Amaral, Brasil, 1959

Com Amácio Mazzaropi (Jeca)

e Geny Prado (Jerônima, sua mulher),

Roberto Duval (Vaca Brava, o bandido da história), Nicolau Guzzardi (Seu Giovani, o fazendeiro rico), Nena Viana (Dona Baratinha), Marlene França (Marina, a filha do Jeca e Jerônima), Francisco di Franco (Marcos, o filho de Giovani e namorado de Marina), Miriam Rony (Tina, a mulher de Giovani), Pirolito (Dr. Felisberto, o deputado), Marlene Rocha (a mulher do deputado), Marthus Mathias (o delegado), Hamilton Saraiva (o dono do bar), José Soares (peão de Giovanni)

e (em números musicais), Agnaldo Rayol, Celly e Tony Campelo, Lana Bittencourt

Roteiro Milton Amaral

História de Amácio Mazzaropi, baseado em “Jeca Tatuzinho”, de Monteiro Lobato

Fotografia Rudolf Icsey

Música Hector Lagna Fietta

Montagem Mauro Alice

Produção PAM Filmes

P&B, 95 min (1h35)

Disponível no YouTube em abril de 2021.

**1/2

 

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