Fala-se demais em A Voz Suprema do Blues, no original Ma Rainey’s Black Bottom. Discute-se demais, briga-se demais, berra-se demais, A grande Viola Davis, que interpreta Ma Rainey (1886-1939), a personagem-título, a pioneira do blues, até que canta uma música e é dublada em umas poucas outras; mas, sobretudo, fala demais.
Ma Rainey e os quatro músicos que a acompanham numa sessão de gravação num pequena gravadora na Chicago de 1927 reclamam muito, reclamam demais. Reclamam da vida, das injustiças, do racismo, dos brancos filhos da puta, de Deus que só cuida dos brancos e não ouve os negros, não dá bola para os negros.
– “Eles não ligam nada pra mim”, diz Ma Rainey. “Tudo o que eles querem é minha voz. Bom, eu aprendi isso. E eles vão me tratar do jeito que eu quero ser tratada, não importa o quanto isso os machuque.”
– “A vida não é merda”, diz Levee, o trompetista talentoso e rebelde contra tudo e todos, interpretado por Chadwick Boseman. “Você pode botá-la num saco de papel e carregá-la com você. Não tem culhões. Agora, a morte… A morte tem estilo. A morte vai chutar sua bunda e fazer você desejar que nunca tivesse nascido. A morte é ruim desse jeito. Mas você não pode governar a vida. A vida não é nada. Negro falando que a vida é justa – e não tem um lugar em que possa mijar.”
– “E eu dou bola para o azar?”, diz em outro momento Levee. “Você simplifica as coisas. Eu nunca tive nada a ser azar em toda a minha vida. Não poderia ser pior. Como eu poderia me importar com um pouco de azar? Diabo, eu como o azar no café da manhã todo dia. Você é mais imbecil do que eu achava que você era… Fica falando sobre azar…”
– “Gente branca não entende o blues”, diz Ma Rainey. “Eles ouvem, mas eles não sabem de onde aquilo saiu. Eles não entendem que aquilo é o jeito de a vida falar. Você não canta para se sentir melhor. Você canta porque é uma forma de compreender a vida.”
– “Covarde filho da puta!”, diz Levee, dirigindo-se a um dos companheiros de banda.
– “Você virou as costas?”.diz Levee, dirigindo-se a Deus. “Você virou as coisas, filho da puta? Você virou as costas? Vamos lá. Venha e vire as costas para mim. Vire as costas para mim! Vamos lá, cadê você? Venha e vire as costas para mim. Vire as costas para mim, filho da puta. Vou arrancar seu coração pra fora! Vamos lá, qual é? Onde está você? Venha e vire as costas para mim. Vamos lá, você tem medo de quê? Vire as costas para mim! Vamos lá!”
– “Seu Deus não é merda nenhuma, Cutler”, diz Levee para o chefe dos músicos, Cutler (o papel de Colman Domingo). “Seu Deus não é merda nenhuma.”
Quase se consegue a proeza de só haver negros
Ma Rainey’s Black Bottom, de 2020, dirigido por George C. Wolfe, com roteiro de Ruben Santiago-Hudson, se baseia na peça homônima de August Wilson (1945-2005), lançada em 1984.
A peça faz parte de um conjunto de dez obras escritas pelo dramaturgo, conhecidas como Century Cicle ou Pittsburgh Cicle. Cada uma delas fala sobre uma década, “representando os aspectos cômicos e trágicos da experiência dos Africano-Americanos no século XX”, segundo ensina a Wikipedia.
Em 2015, Denzel Washington anunciou que produziria filmes baseados em todas as dez peças do Century Cicle. Este Ma Rainey’s Black Bottom – produzido por Denzel e por Todd Black para a Netflix – é a segunda. Em 2016, foi lançado Um Limite Entre Nós/Fences, que o próprio Denzel dirigiu e estrelou, ao lado da mesma Viola Davis deste Ma Rainey’s Black Bottom. Um Limite Entre Nós, que trata de um pai de família negro, perdão, afro-americano lutando para manter sua família nos anos 1950, deu a Viola Davis o Oscar de melhor atriz coadjuvante; teve também outras três indicações ao Oscar – melhor filme, melhor ator para Denzel Washington, melhor roteiro adaptado para o autor August Wilson.
Este segundo filme baseado em obra do Ciclo do Século de August Wilson recebeu cinco indicações ao Oscar, nas categorias de melhor ator para Chadwick Boseman, melhor atriz para Viola Davis, melhor direção de arte para Mark Ricker, Karen O’Hara e Diana Stoughton, melhor maquiagem e cabelos para Sergio Lopez-Rivera, Mia Neal e Jamika Wilson, e melhor figurino para Ann Roth.
Ao todo, o filme recebeu, até agora (escrevo em meados de abril de 2021, antes do anúncio dos Oscars referentes aos filmes de 2020), 65 prêmios, fora outras 195 indicações.
Com essa sua indicação ao Oscar pelo papel de Ma Rainey, Viola Davis se tornou, como diz o IMDb, “a atriz de descendência afro-americana mais indicada” ao Oscar – esta aqui é sua quarta, depois de Dúvida/Doubt (2008), Histórias Cruzadas/The Help (2011) e o já citado Um Limite Entre Nós/Fences (2016).
O IMDb informa também que Mia Neal e Jamika Wilson são “as primeiras pessoas de cor a serem indicadas para o Prêmio da Academia de Melhor Maquiagem e Cabelos”.
Ma Rainey’s Black Bottom é um filme que chega perto da proeza de ser absolutamente segregado, sem pessoas de pele clara diante e detrás das câmaras. O diretor George C. Wolfe, o dramaturgo August Wilson, o roteirista Ruben Santiago-Hudson, o compositor da trilha sonora e responsável pela direção musical, o grande Brandford Marsalis, são todos negros.
Infelizmente para os segregacionistas, os que têm ódio da coexistência de pessoas de cores de pele diferentes, há alguns brancos no filme. Uns poucos, mas há. Os atores Jeremy Shamos e Jonny Coyne, que interpretam, respectivamente, Irvin, o empresário de Ma Rainey, e Sturdyvant, o dono da pequena gravadora, são brancos. E são brancos também o diretor de fotografia, Tobias A. Schliessler, e a diretora de casting, Avy Kaufman.
Os demais personagens da história, fora o empresário e o dono da pequena gravadora, são negros. Além da própria Ma Rainey e dos já citados músicos Levee e Cutler, interpretados por Chadwick Boseman e Colman Domingo, há os dois outros músicos que acompanham a cantora, Toledo e Slow Drag – os papéis de Glynn Turman e Michael Potts. E dois jovens acompanhantes da à época já muito famosa e incensadíssima Ma Rainey, Sylvester e Dussie Mae.
Sylvester (Dusan Brown) é sobrinho de Ma Rainey. Ela quer porque quer que seja dele a voz que fala uma rápida apresentação da canção que dá título ao filme, “Ma Rainey’s Black Botton”. Só há um problema: o garoto é gago. O líder da banda, Curtler, e o empresário Irvin tentam convencer Ma Rainey de que seria melhor outra pessoa dizer o texto de introdução, mas a estrela insiste e não desiste: tem que ser Sylvester. Nem que tenha que repetir a gravação várias vezes, até ele conseguir dizer o texto sem gaguejar.
Dussie Mae (Taylour Paige), uma jovem bonita, gostosa, fogosa, é mostrada como a namoradinha teúda e manteúda da grande cantora.
Não é preciso saber somar 2 mais 2 para perceber, de cara, que vai rolar alguma coisa entre Dussie Mae e Levee, o trompetista jovem, belo, arrebatado, rebelde.
Trompetista?
Diz o IMDb que, embora Levee seja tradicionalmente mostrado como um trompetista, Chadwick Boseman toca, no filme, uma corneta.
Atuações impressionantes de Viola e Boseman
O filme mostra Ma Rainey como uma pessoa literalmente insuportável.
E Viola Davis esbanja de seu imenso talento para criar aquela figura emproada, metida, cheia de sucesso, que se considera o umbigo do universo, o crème de la crème.
É um show de interpretação.
E Chadwick Boseman não fica atrás nem um milímetro.
Ma Rainey’s Black Bottom foi o último filme da curta e fantástica carreira de Chadwick Boseman, esse ator que se tornou um semideus no panteão dos grandes heróis dos negros dos Estados Unidos – e de todo o mundo. Ele morreu a 28 de agosto de 2020, após uma batalha de quatro anos contra um câncer. Os colegas de elenco não sabiam disso, mas, durante as filmagens, ele estava recebendo tratamento contra o câncer.
O ator foi indicado postumamente tanto ao Globo de Ouro quanto o Oscar de melhor ator. O Globo de Ouro ele já havia levado quando vimos o filme, em abril de 2021.
O gigante Denzel Washington, esse monumento do cinema, teve uma longa relação de amizade com o jovem Chadwick Boseman. O veterano ator (e diretor e produtor) pagou as mensalidades para Boseman, então um jovem estudante de arte dramática, fazee um curso na British Academy of Dramatic Acting in Oxford.
Outras informações sobre o filme, tiradas da página de Trivia do IMDb (com pitacos meus, que ninguém é de ferro):
* Embora desempenhe o papel da personagem-título do filme, e tenha sido indicada ao Oscar de melhor atriz (e não ao de melhor atriz coadjuvante), Viola Davis aparece na tela apenas durante 26 dos 94 minutos de duração do filme. A maior parte da ação se passa numa sala no porão do prédio em que funciona a gravadora, onde os músicos deveriam ensaiar e se preparar para a gravação – mas na verdade passam o tempo falando, falando, discutindo, discutindo, xingando…
* É a própria Viola Davis que canta a canção “These Dogs of Mine”, num momento em que está fazendo carícias em Dussie Mae. Nas outras canções, no entanto, quem canta é Maxayn Lewis.
* Em setembro de 2020 – pouco antes, portanto, do lançamento do filme em alguns cinemas americanos, para depois ser distribuído amplamente pela Netflix –, Denzel Washington disse em entrevista ao New York Times que o terceiro filme baseado nas peças de August Wilson deverá ser The Piano Lesson. Afirmou esperar que seu filho, John David Washington, faça o papel de um dos personagens, que Samuel L. Jackson faça outro e Barry Jenkins seja o diretor.
* Black bottom – que eu, equivocadissimamente, achei que era uma referência à bunda preta que Ma Rainey tanto balança – é o nome de uma dança que surgiu no Sul Profundo dos Estados Unidos na primeira década do século XX, foi adotada por milhões de pessoas e virou uma mania nacional nos anos 20.
* Ma Rainey – cujo nome de batismo era Gertrude Pridgett – era também compositora. São delas quatro das canções – letra e música – apresentadas no filme, “Deep Moaning Blues”, “Hear Me Talking to You”,
“Ma Rainey’s Black Bottom” e “Those Dogs of Mine”.
“Uma celebração de três artistas negros”
O site Roger Ebert, que continua o trabalho do grande crítico morto em 2013, deu ao filme 3 estrelas e meia em 4. A crítica altamente elogiosa assinada por Odie Henderson começa assim:
“Ma Rainey’s Black Bottom é uma celebração de três artistas e lendas negros. Há a cantora de blues, frequentemente referida como ‘a mãe do blues’, cujos nome e canção dão ao filme o seu título. Há o autor, August Wilson, que, inspirado por Rainey e a época em que ela se tornou famosa, criou sua peça de 1984 em torno de sua persona maior que a vida. E há Chadwick Boseman, tirado de nós cedo demais, que escolheu esse material difícil para trabalhar enquanto enfrentava o câncer. Nunca saberemos se Boseman sabia que este seria seu canto do cisne; o fato de que foi assombra o espectador, especialmente durante um monólogo em particular. Boseman nunca deu menos do cem por cento a seus papéis em geral muito exigentes. Seu trabalho aqui como o trompetista, Levee, não é uma exceção. Não é exagero algum em dizer que sua última performance pode ter sido a melhor.”
Anotação em abril de 2021
A Voz Suprema do Blues/Ma Rainey’s Black Bottom
De George C. Wolfe, EUA, 2020
Com Viola Davis (Ma Rainey),
Chadwick Boseman (Levee),
Colman Domingo (Cutler), Glynn Turman (Toledo), Michael Potts (Slow Drag), Jeremy Shamos (Irvin, o empresário de Ma Rainey), Jonny Coyne (Sturdyvant, o dono da gravadora), Taylour Paige (Dussie Mae, a namoradinha), Dusan Brown (Sylvester, o sobrinho)
Roteiro Ruben Santiago-Hudson
Baseado na peça teatral de August Wilson
Fotografia Tobias A. Schliessler
Música Brandford Marsalis
Montagm Andrew Mondshein
Casting Avy Kaufman
Direção de arte Mark Ricker
Produção Todd Black, Denzel Washington, Netfflix.
Cor, 94 min (1h34)
Disponível na Netflix em abril de 2021
**
Sinceramente, não vi o brilho que tanto insistem em propagar sobre essa obra. O filme é soberbo nos aspectos técnicos. As atuações são boas, mas longe de qualquer excepcionalidade. Peço desculpas aos fãs mais acalorados, mas as atuações não são dignas de oscar. O roteiro é comum, pois a história também é simples, não proporciona grandes surpresas/dramas/reflexões. Em resumo, um filme regular.