A Despedida/The Farewell é uma beleza de filme. Um retrato extremamente sensível, e extremamente bem feito em todos os quesitos, de um drama familiar que já seria tocante, emocionante, qualquer que fosse a situação da família – mas se torna ainda mais impressionante por se tratar de uma família que se dividiu entre três diferentes países.
Mais impressionante ainda porque dois desses países são não apenas antípodas no sentido geográfico, mas também em todos os demais sentidos – China e Estados Unidos, hoje as duas maiores potências econômicas do planeta, rivais em praticamente tudo.
É a história de uma matriarca chinesa que é diagnosticada com um câncer de pulmão em estado avançado, sem possibilidade de qualquer tratamento. Ela não tem noção do diagnóstico, e a família faz todo o possível para que ela continue sem saber. Para que toda a família se reúna nos últimos meses que os médicos deram de vida para a matriarca, inventa-se o casamento de um neto – e assim as famílias dos dois filhos dela, um radicado no Japão, o outro nos Estados Unidos, viajam para a China.
O propósito do filme, a razão de ser do filme é contar o drama familiar – mas A Despedida não se furta a encarar as questões todas que vêm com as inevitáveis comparações que serão feitas entre a vida na teoricamente comunista República Popular da China e a vida nos United States da tal da democracia of America.
O filme consegue tratar de todas essas questões – o drama familiar em si, a decisão de não contar à matriarca a verdade sobre sua condição de saúde, o sofrimento dos parentes, mais as questões todas da separação da família por três países diferentes, as questões das identidades culturais, das identidades nacionais, a disparidade absoluta dos modos de vida do Ocidente e do Oriente, a distância de 200 milhões de anos-luz entre a Nova York umbigo do capitalismo e a Pequim da China cuja economia cresce muitíssimo mais do que qualquer outro país do mundo. E consegue tratar de todas elas com uma sabedoria, uma maturidade, uma maestria que me deixaram absolutamente estupefato.
E aí vem um outro tema, uma outra questão, um outro motivo para a gente ficar impressionado com A Despedida, além da beleza que é o filme em si.
The Farewell, co-produção EUA-China, que em mandarim teve um título que significa “Não Conte a Ela”, foi escrito e dirigido por uma moça que, na época do lançamento, tinha 36 anos de idade.
E então A Despedida é um filme excepcional e importante por isso que tentei resumir aí – mas também porque é o filme que demonstra que o cinema ganhou uma realizadora à qual temos todos que prestar atenção. Uma realizadora que já começa num nível de excelência em geral reservado aos grandes, aos maiores, aos mais experientes.
Chama-se Lulu Wang, nasceu em Pequim em 1983, emigrou com pai e mãe para os Estados Unidos aos seis anos de idade, e este aqui é seu segundo longa-metragem. Além de dirigir, assina também o roteiro – uma beleza de roteiro.
A personagem central de A Despedida, Billi (o papel de Awkwafina, na foto abaixo), nasceu em Pequim e, com seis anos de idade, emigrou com pai e mãe para os Estados Unidos. Não é mera coincidência coisa alguma: em seu segundo longa-metragem, Lulu Wang fez mais do que aquilo que Liev Tolstói aconselhava, “Se você quer ser universal, fale de sua aldeia”. Ela contou uma história real de sua família.
A Despedida é autobiográfico a não mais poder.
É tão absolutamente o retrato de uma história real da família que quem interpreta a tia-avó da personagem Billi – a chinesa de 31 anos que vive nos Estados Unidos desde os 6 –, a irmã da matriarca que foi diagnosticada com câncer terminal, é a própria tia-avó da autora e realizadora Lulu Wang, Hong Lu.
Lulu Wang não teve sequer a preocupação de inventar nomes diferentes para alguns dos personagens. O pai de Billi se chama Hayian Wang – exatamente como o pai da diretora. Ele é interpretado por Tzi Ma.
O filme vai apresentando os fatos sem pressa
Acho que despejei informação demais neste início de comentário.
Talvez seja tanta informação que deixe o eventual leitor um tanto zonzo.
O filme – bem ao contrário do início deste texto – não é de deixar o espectador zonzo, não, de forma alguma.
O roteiro escrito por Lu Wang é preciso, inteligente, enxuto, e claro, absolutamente claro. Não tem um ritmo acelerado, nem ralentado – vai, como diria Walter Franco, a 60 minutos por hora, sem pressa nem demora.
A Despedida abre com um telefonema entre Billi, em Nova York, e Nai Nai (Shuzhen Zhao), a vovó, na China. Nai Nai está na sala de espera de um hospital – mas ela não conta isso para a neta que está no outro lado do planeta.
Dá para o espectador perceber perfeitamente que a moça Billi fala bastante, com frequência, com a avó. Que as duas têm uma ligação muito forte.
Billi mora sozinha, está sem um emprego fixo e aguarda a resposta de um pedido de bolsa de estudos. O filme ainda está bem no começo quando ela recebe a resposta ao pedido – e é uma resposta negativa.
Filha única, Billi costuma visitar com frequência a casa dos
pais. Ele, Hayan, é o filho de Nai Nai; ela se chama Lu Jian (o papel de Diana Lin). Numa das visitas, a mãe conta que o casal está se preparando para uma viagem à China, para o casamento do único primo primeiro de Billi, filho do único irmão do pai, Haibin (Yongbo Jiang).
O tio Haibin, a mulher e o filho viviam, fazia muitos anos, no Japão.
Billi acha estranho que o primo vá se casar, pois sabia que o namoro dele tinha começado havia apenas uns três meses.
Sensível, atenta às coisas, Billi percebe que o pai não está bem – anda sério, triste. Pergunta para a mãe o que está acontecendo, a mãe diz que não é nada, que o pai está cansado. Insatisfeita com as respostas, a moça vai confrontar o pai – e pai e mãe então contam para ela que a avó foi diagnosticada com câncer em estágio avançado, os médicos dão para ela uns três meses de vida. O casamento do primo é um pretexto para que os dois filhos que vivem fora da China e suas famílias se reúnam com a mãe, nos meses que lhe restam.
Hayan e Lu Jian explicam para a filha que Nai Nai não sabe do diagnóstico, e a família havia decidido que ninguém irá contar para ela sobre a doença. Vai ser melhor assim, está decidido, e pronto.
E dizem que ela, Billi, não deve ir. Porque ela não sabe esconder seus sentimentos, seu rosto é um livro aberto – a presença dela iria estragar tudo, a avó veria imediatamente que há algum problema sério só de bater os olhos na neta.
Hayan e Lu Jian embarcam sozinhos.
Dias depois, sem avisar aos pais, sem avisar a ninguém, Billi também embarca para a China.
Para aquelas pessoas, ideologia não é fundamental
Isso aí que relatei é apenas o iniciozinho do filme. Creio que, quando Billi chega de surpresa à casa da avó, onde está toda a família reunida, estamos com uns 15, no máximo 20 dos 100 minutos de duração de A Despedida.
Nai Nai nem parece doente. Está absolutamente feliz com o casamento do neto, o único neto homem, com a visita dos dois filhos e suas mulheres, e em seguida com a chegada da única e queridíssima neta. Feliz, animada, bem disposta, é ela que toma todas as decisões sobre a gigantesca festa de casamento, a ser realizado num lugar especializado em grandes reuniões desse tipo.
O drama familiar que se desenrola a partir daí é contado com segurança, habilidade, sensibilidade. E até com leveza. Apesar do tema tristíssimo, apavorante – a morte iminente da matriarca querida –, o tom da narrativa não é pesado, soturno. Bem ao contrário – e há até quem classifique A Despedida como comédia e drama. É o caso do IMDb, o grande site enciclopédico.
Não vejo nada de comédia no filme – mas a verdade é que o tom que a autora e diretora Lulu Wang dá a seu drama familiar é, em muitos momentos, a rigor na maior parte, leve, suave.
Em segundo plano, bem em segundo plano ficam as questões relacionadas às distâncias, às diferenças entre os dois países em que vivem de um lado Nai Nai e sua irmã e, de outro, Billi e seus pais.
E até isso é interessante, fascinante mesmo, em A Despedida. As distâncias, as diferenças entre a República Popular da China e os Estados Unidos da América estão presentes no filme, sim – não poderiam deixar de estar. Mas não são realçadas, enfatizadas. Não é dada grande importância a esse tema.
Aqui e ali ele aparece, é claro. Quando Billi chega ao hotel em que a família já havia se hospedado, o elevador não está funcionando – e o funcionário da portaria sobe os vários lances de escada carregando a mala da moça. Aproveita para perguntar onde ela mora, e, quando ela diz que é nos Estados Unidos, o sujeito faz diversas perguntas sobre como é a vida lá. Billi diz que as coisas lá são diferentes – e não vai muito além disso. Não fala nada sobre lá haver mais conforto, mais riqueza aparente, mais produtos de consumo, mais liberdade. Nada desse tipo, de forma alguma.
Em hora alguma se discute ou sequer se menciona qualquer coisa relacionada a ideologia, capitalismo x comunismo, liberdade x falta de liberdade.
Tudo o que se mostra daquele país que por si só é um planeta, e um planeta tão difícil de a gente compreender, é um tanto surpreendente. Não há pobreza visível – miséria, então, nem pensar. O que vemos são famílias de classe média, bem de vida, sem qualquer necessidade básica desassistida. E há até um alto grau de consumismo – extremamente visível no grande local em que se realiza a festa de casamento.
Nai Nai tem empregada doméstica – e, pelo jeito, sempre teve.
Confesso que cheguei a ficar um tanto confuso, ali pelo meio do filme, a ponto de perguntar para a Mary, para mim mesmo: ué, gente, será que isso é Formosa? Não, não, nada disso – mais tarde o nome Beijing é dito de forma clara. É a República Popular da China, regime – ao menos teoricamente – comunista.
O que o filme parece fazer questão de mostrar, o tempo todo, é que para todas aquelas pessoas ideologia não importa. Não é o valor importante, ou fundamental.
Achei isso fascinante. Depois de velho, passei a achar, cada vez com mais certeza, que as pessoas são mais importantes que as ideologias.
O que o filme enfatiza é a dor de emigrar
Para Billi, a personagem fundamental do filme, a personagem que a rigor é a autora da obra, mais importante que sua família ter saído do gigantesco país comunista e ido para o gigantesco país que representa mais que qualquer outro o capitalismo é o fato de que sua família saiu do seu país, e foi para um outro – fosse ele qual fosse.
O fundamental é isso: o fato de que, com seis anos de idade, ela foi embora do lugar onde estavam suas raízes, se viu perdida numa terra desconhecida, estranha – e agora, aos 30, 31, ainda sem ter encontrado um caminho na vida, ela sequer sabe falar direito a língua de seus pais, avós, bisavós, tataravós.
– “Uma das poucas boas lembranças da minha infância foram aqueles verões na casa de Nai Nai”, Billi diz para a mãe, num dos momentos mais pesados do filme. – “Eles tinham aquele jardim, e Ye Ye (o vovô) e eu pegávamos libélulas. E aí nós nos mudamos pros States, e tudo era diferente. Todo mundo tinha desaparecido, e éramos só nós três.”
Lu Jian tenta suavizar a dor da filha: – “Eu sei que foi difícil. Foi difícil para nós também.”
A filha não suaviza. Ao contrário: – “Eu queria acreditar que era uma coisa boa, mas tudo que eu via era o medo nos olhos de vocês. E eu me sentia o tempo todo confusa e com medo porque vocês nunca me contavam o que estava acontecendo. E então Ye Ye morreu. Vocês não tinham me dito que ele estava doente. E então pareceu que ele tinha desaparecido de repente. E vocês nem me deixaram ir ao funeral dele.”
– “Você estava na escola. Não queríamos que você perdesse a escola. Fizemos o que achávamos que era o melhor para você.”
– ”Mas eu nunca voltei a vê-lo. E todas as vezes que eu voltei à China, ele não estava mais lá. A casa não existe mais, nossa casa em Pequim não existe mais, e em breve ela (a avó) não vai existir mais.”.
Emigrar, deixar para trás seu lar, sua história, suas raízes – ah, isso não é fácil. Mesmo quando é um de Estado para outro dentro de um mesmo país não é fácil – e sei disso, porque emigrei, contra a minha vontade, quando tinha 16 anos.
Emigrar não é fácil. Mesmo quando depois se tem sucesso na vida – Lulu Wang sabe disso, e mostra isso.
Bem – viver não é fácil. Crescer não é fácil – nem na terra da gente, e quanto mais na terra que é dos outros.
Esse é um dos temas deste belo filme.
O filme teve a impressionante marca de 157 indicações
Em maio de 2016, Lulu Wang escreveu e narrou no programa de rádio This American Life uma história sobre uma família de chineses que volta à China quando a matriarca é diagnosticada com um câncer terminal. O produtor Chris Weitz se interessou pela história; o Sundance Institute, fundado por Robert Redford, que dá suporte a realizadores independentes e iniciantes, apoiou a idéia de transformar a história em filme. Em janeiro de 2019 The Farewell estreou no Sundance Film Festival – e lá chamou a atenção da empresa A24, que apostou na distribuição mundial do filme.
É necessário enfatizar que o filme tem um sério problema para distribuição no mercado americano: as audiências nos Estados Unidos tendem a não ver fitas faladas em outros idiomas que não o inglês, e que apresentam legendas. Ler legendas não é, de forma alguma, um hábito do grande público do maior mercado mundial de cinema – e, na sua maior parte, The Farewell é falado em mandarim. Basicamente, só os diálogos entre Billi e seus pais são em inglês.
Mesmo assim, o filme obteve uma renda de US$ 17 milhões nas bilheterias americanas. Bem pouco em termos de Hollywood, de filmes do cinemão comercial – mas nada mal para uma produção independente, um drama familiar com subtítulos.
O filme teve ótima recepção de boa parte da crítica – incluindo revistas de peso como a Variety, a Rolling Stone e a IndieWire. No site Rotten Tomatoes, que faz um balanço das críticas publicadas na imprensa e em sites respeitáveis, o filme tem a aprovação de 99% das 207 análises publicadas.
No circuito dos festivais, o filme teve a impressionante marca de 157 indicações. Levou 33 prêmios – inclusive o Globo de Ouro para a atriz e cantora Awkwafina, que interpreta Billi, na categoria melhor atriz em comédia ou musical.
A Despedida não é comédia e muito menos musical, mas nem o filme nem sua autora têm qualquer culpa pelas decisões do povo do Globo de Ouro.
O que importa é que é um belo filme – e essa moça Lulu Wang é um danado de um talento.
Anotação em outubro de 2020
A Despedida/The Farewell
De Lulu Wang, EUA-China, 2019
Com Shuzhen Zhao (Nai Nai, a avó, a matriarca),
Awkwafina (Billi, a neta)
e Tzi Ma (Haiyan, o filho da matriarca, pai de Billi), Diana Lin (Lu Jian, a mãe de Billy), Hong Lu (Little Nai Nai, a irmã da matriarca), Yongbo Jiang (Haibin, filho da matriarca, irmão de Haiyan), Yang Xuejian (Mr. Li, o inquilino de Nai Nai), Becca Khalil (Shirley), Han Chen (Hao Hao), Aoi Mizuhara (Aiko, a noiva), Xiang Li (tia Ling), Hongli Liu (tia Gao), Shimin Zhang (Michael), X Mayo (Suze), Hong Lin (doutor Wu)
Argumento e roteiro Lulu Wang
Fotografia Anna Franquesa Solano
Música Alex Weston
Montagem Matt Friedman e Michael Taylor
Casting Anne Kang e Leslie Woo
Produção Big Beach Films, Depth of Field, Kindred Spirit, Seesaw Productions
Cor, 100 min (1h40)
Disponível no Now em outubro de 2020.
***1/2
Um comentário para “A Despedida / The Farewell”