O cinema e os cinéfilos devem agradecer a Edoardo Ponti pela oportunidade de ver Sophia Loren em um novo filme. La Vita Devanti a Sé, no Brasil Rosa e Momo, de 2020, vem após dez anos de seu longa-metragem anterior, La mia casa è piena di specchi, feito para a TV italiana. Durante estes dez anos, a atriz – essa lenda, uma das maiores estrelas destes 125 anos de História do cinema – apareceu apenas em um curta-metragem, Voce umana, de 2014 – também dirigido por Edoardo Conti.
Esse jovem senhor – nascido em Genebra, na Suíça, que, neste 2020, fez 47 anos – conseguiu convencer Sophia a interromper a mais que merecida aposentadoria, para brindar os cinéfilos do mundo inteiro com sua presença nas telas mais uma vez.
Greta Garbo, a estrela que aos 36 anos decretou que queria ficar sozinha e jamais voltou a passar diante de uma câmara, até morrer, aos 84, teria um faniquito, um ataque de nervos, diante da decisão da colega de exibir ao mundo as rugas de seu rosto de 86 anos.
Ainda bem que Sophia não é Garbo, ainda bem que o rapaz Edoardo conseguiu convencê-la: é um imenso prazer ver a grande dama neste La Vita Devanti a Sé.
É um bom filme, um filme cheio de boas mensagens, de esperança, de crença nas pessoas, na capacidade que as pessoas têm de escolher o bem. Nesta época específica em que vivemos, nesta quadra em que está a vida no planeta – este tempo de pandemia, isolamento, crise sanitária, crise econômica, líderes populistas ameaçando a democracia mundo afora –, é como água no deserto. Quase uma miragem, um conto de fadas.
Um garoto rouba a sacola da velha senhora
A história se passa nos dias de hoje, numa bela, grande cidade à beira-mar – e, por causa de tantos filmes de Sophia passados em Nápoles, fiquei achando que poderíamos estar ali mais uma vez. Mas não: os realizadores escolheram para situar a ação em Bari, cidade do Sul da bota, como Nápoles, só que do outro lado, debruçada sobre o Adriático.
Há maravilhosos planos gerais de Bari, uma bela cidade, plana, espalhada, sem arranha-céus, diante do mar de azul cristalino. Pode não ter muita coisa a ver, mas, por causa do tipo de prédios não muito altos, bem antigos, muitos não bem tratados, Bari me fez lembrar as paisagens de Havana que o cinema mostra.
A ação começa com o que chamo de narrativa-laço, e que, como me ensinou o José Luís Fino, tem o nome elegante de in media res: uma técnica literária em que a narrativa começa no meio da história, em vez de no início. Vemos uma mulher grande, loura, chegando de carro a um prédio residencial de uns três andares, bem antigo, com um filhinho aí de uns 4 anos. Ela vê, num lance de escada logo acima de onde ela está, um garoto aí de uns 13 anos, um negro retinto, e exclama, surpresa, o nome do dele: – “Momo!” O garoto larga as coisas que estava carregando e foge em disparada através de corredores daquele prédio. A mulher vai correndo atrás dele. Momo chega a um cômodo ao final de um corredor, tranca a porta, senta-se no chão, encostado a ela, enquanto a mulher bate na madeira e chama pelo garoto.
Vem o flashback, com um letreiro que avisa: “Seis meses antes”.
Seis meses antes, uma senhora octogenária caminhava por uma praça movimentada, carregando uma sacola. Aquele garoto, Momo, vê a mulher, se prepara para o golpe – e ataca. Ao roubar da senhorinha a sacola, ele a faz cair no chão.
Ela xinga demais o ladrão – mas ele foge rapidamente, desaparece.
Momo, o espectador ficará sabendo bem rapidamente, havia sido adotado por um velho médico, o dr. Coen. Havia nascido no Senegal, havia perdido pai e mãe, não tinha ninguém no mundo, e o dr. Coen, coração grande, o pegara para criar.
O velho médico é o papel de Renato Carpentieri. Momo é interpretado por Ibrahima Gueye, estreando aqui em longa-metragem, depois de ter feito um curta, Muñeca Negra, em 2019. Há relatos de que o diretor Edoardo Conti ficou fascinado com a seriedade com que o garoto se dedicou ao trabalho – e a interpretação dele é de fato muito, muito boa.
O dr. Coen reconhece o produto do roubo do garoto que cria – dois grandes, belos castiçais, que o médico sabia pertenciam a Madame Rosa, por coincidência sua conhecida e paciente. Leva os castiçais de volta até a casa dela, juntamente com o ladrãozinho; quer que Momo peça desculpas a Rosa, mas, sobretudo, quer que a velha senhora fique com o garoto por uns dois meses.
Madame Rosa, o espectador verá também sem muita delonga, foi prostituta quando bem mais jovem; nas últimas décadas, vivia de cuidar de crianças filhas de colegas ainda atuantes na profissão – e, eventualmente, outras crianças sem pai, mãe, eira ou beira.
Madame Rosa e Lola dançam ao som de Elza Soares
É claro que, de início, Madame Rosa não quer saber de ficar com o garoto que a havia roubado e derrubado no chão. Mas é igualmente claro que ela acabará cedendo aos pedidos de seu médico e amigo – aos pedidos e à promessa de pagamento de algumas centenas de euros por mês.
Já viviam com ela, naquele momento, um garoto um pouco mais novo que Momo, Iosif (Iosif Diego Pirvu), menino bonzinho, bem o contrário de Momo, a quem Madame Rosa, judia, ensinava hebreu, e, durante boa parte do dia, também o garotinho Babu (Simone Surico), de uns 3, 4 anos – o menininho que havíamos visto na sequência de abertura, junto com a mulher grande, loura.
Ela se chama Lola (o papel de Abril Zamora, ótima atriz, uma transexual nascida na Espanha), e é, além de vizinha, uma grande amiga de Madame Rosa. Não é dito explicitamente se Lola é um travesti ou um transexual. Até porque isso não importa: importa é que é um ser humano maravilhoso, um grande coração, adora Madame Rosa e as duas se dão muito bem.
Numa das primeiras vezes em que o garoto Momo, recém-chegado à casa, vê Lola visitando Madame Rosa, ela, Lola, bota para tocar na radiola um disco em que Elza Soares canta uma música que faz as duas dançarem gostosamente no meio da sala.
(A música é “Malandro”, de Jorge Aragão e Jotabê, e a gravação que toca na casa de Madame Rosa é CD e DVD Beba-me – Elza Soares ao vivo, de 2007.)
A amizade entre dois seres tão díspares
Momo, ladrão quando a ocasião permite, vai se transformar também num esperto, ágil, competente vendedor de drogas, trabalhando para um traficantezinho local (o papel de Massimiliano Rossi).
Sem saber ainda dessa atividade do garoto, Madame Rosa tentará fazer com que ele aprenda a trabalhar do lado de cá da lei, como auxiliar de Hamil (Babak Karimi), um velho comerciante árabe do bairro.
Há ali, portanto, nas vizinhanças, influenciando o jovem Momo, um traficante de drogas. Mas, do outro lado, há o dr. Coen, Lola, o sr. Hamil e a própria Madame Rosa. Muito mais gente boa do que bandido – que é a proporção que existe mesmo, em qualquer lugar do mundo.
O dr. Coen, Lola, o sr. Hamil, o traficante – todos têm importância na história. Mas no centro da trama estão Madame Rosa e Moma.
Uma velha senhora judia, que quando adolescente esteve presa em Auschwitz. Um jovem senegalês sem pai, sem mãe, sem ninguém.
Uma idosa que se aproxima do fim da vida. Um garoto que tem toda a vida pela frente. La Vita Devanti a Sé.
O livro, de 1975, já havia sido filmado duas vezes
La Vita Devanti a Sé – que nos países de língua inglesa teve o título de The Life Ahead – se baseia no livro La Vie Devant Soi, lançado em 1975, o ano em que nasceu minha filha, la vie devant elle.
É assinado por Émile Ajar, um dos vários pseudônimos do escritor francês de origem lituana Romain Gary (1914-1980).
Pelo que dá para ver pela sinopse do livro publicada na Wikipedia em francês, não há, ali, a questão do tráfico de drogas. Aparentemente, esta foi uma adaptação aos tempos mais modernos feita pelos roteiristas – o roteiro é assinado Ugo Chiti, com a colaboração de Fabio Natale e Edoardo Ponti. Claro, a Madame Rosa do livro vivia em Paris; o roteiro a levou para o Sul da Itália e acrescentou a ligação de Momo com o tráfico, mas, de resto, parece que foi uma transposição fiel do livro.
Não foi a primeira vez que o livro de Romain Gary foi filmado. Em 1977 foi lançado Madame Rosa – A Vida à Sua Frente, no original La Vie Devant Soi, como o livro, dirigido por Moshé Mizrahi (1930-2018). Madame Rosa foi interpretada pela maravilhosa Simone Signoret, que ganhou o César de melhor atriz pelo papel. E o filme levou o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Em 2010, foi feito uma versão para a TV francesa, La Vie Devant Soi, dirigida por Myriam Boyer, que também fez o papel de Madame Rosa.
Em uma entrevista ao jornalista Javier Romualdo, da agência EFE, Edoardo Ponti contou que Sophia Loren conviveu durante um mês com o jovem Ibrahima Gueye, antes do início das filmagens, para que os dois ficassem se conhecendo: “Queria que Ibrahima conhecesse Sophia como a mamma, tanto no início como no final da jornada, que tomasse o café da manhã e assistisse à TV junto com ela.”
O diretor contou também que, com Sophia Loren, pode repetir a mesma cena “10, 12, 15 vezes”. “Nunca, jamais, em três filmes que realizamos juntos, ela me disse; ‘Edoardo, chega não posso mais’. Ela nunca desiste, sempre quer o melhor. Com 30 anos, é normal, mas ter esse desejo com 86 é uma grande lição”, disse ele.
Sem dúvida alguma. É uma verdade indiscutível. Não dá para dizer que Edoardo Ponti esteja elogiando Sophia Loren só pelo fato de ela ser a mãe dele…
Nem sei bem por que, mas quis deixar essa informação para o fim do texto: Edoardo, como o sobrenome indica, é filho de Carlo Ponti (1912-2007), um dos maiores produtores do cinema europeu de todos os tempos, e Sophia Loren. O segundo dos dois filhos que o casal teve.
A reportagem de Javier Romualdo com o diretor sobre o filme que fez com a mãe – publicada no Brasil pelo Estadão, em novembro de 2020 – diz: “Rosa e Momo já surge como um filme forte candidato ao Oscar, pois Hollywood tem muita expectativa com essa nova obra italiana.”
Bem, um filme com Sophia Loren é sempre importante, sempre atrai as atenções. Sophia é uma velha frequentadora das festas da Academia de Hollywood. Teve duas indicações ao Oscar de melhor atriz, por Matrimônio à Italiana (1964) e por Duas Mulheres/La Ciociara (1962) – e, por esse filme de Vittorio De Sica, levou para casa a estatueta dourada. Em 1991, ganhou também um Oscar honorário, “por uma carreira rica de atuações memoráveis que adicionam permanente brilho à nossa forma de arte”.
Mas não é certo que este La Vita Devanti a Sé possa participar da corrida rumo aos Oscars. Como tantas produções bancadas pela Netflix – informa o IMDb –, a intenção dos realizadores era exibir o filme em um número limitado de salas de cinema, dentro dos prazos da Academia, antes da liberação para exibição via streaming. No entanto, por causa da pandemia da Covid-19, o filme não foi exibido em salas, e foi diretamente para o streaming. Como a Academia e os principais festivais ainda implicam com filmes que não estréiam em salas, este La Vita Devanti a Sé poderá ficar de fora. Azar do Oscar e dos festivais.
Sophia Loren não precisa deles.
Ah, Sophia…
Impossível não pensar na canção que Sergio Endrigo fez para ela, e que começa assim:
Chi non ha mai sognato un po, Sophia.
Donne più belle al mondo non ce, nè?
La gente pensierosa si ferma per la via
Sorride al manifesto di Sophia.
Ahi, Sophia, Sophia,
Sei la nostra fantasia.
Passa il tempo per tutti
Ed il tempo ti porta via,
Ma oggi ti regalo una poesia
Per la tua fotografia.
Passa o tempo para todos e o tempo leva você embora.
É preciso coragem para se mostrar assim, para os close-ups da câmara do diretor de fotografia Angus Hudson, não cuidadosamente preparada para parecer majestosa, bela, mas sim pacientemente trabalhada pela equipe de maquiagem para parecer descuidada, brutta, ao longo de 94 minutos de filme.
Sophia é grande demais. Impressionante. Meu Deus, que mulher!
Anotação em dezembro de 2020
Rosa e Momo/La Vita Devanti a Sé
De Edoardo Ponti, Itália, 2020
Com Sophia Loren (Madame Rosa), Ibrahima Gueye (Momo)
e Renato Carpentieri (Dr. Coen), Abril Zamora (Lola), Iosif Diego Pirvu (Iosif), Massimiliano Rossi (o revendedor de drogas), Babak Karimi (Hamil, o comerciante), Malich Cissé (Nala), Cesare Pastanella (músico), Costanta Fana Pirvu (a mãe de Iosif), Rav Mario Sonnino (rabino), Simone Surico (Babu), Nicola Valenzano (Molinari)
Roteiro Ugo Chiti, com a colaboração de Fabio Natale e Edoardo Ponti
Baseado no livro “La Vie Devant Soi”, de Romain Gary
Fotografia Angus Hudson
Música Gabriel Yared
Montagem Jacopo Quadri
Casting Chiaria Polizzi
Canção “Io si” cantada por Laura Pausini
Produção Palomar.
Cor, 94 min (1h34)
***
Disponível na Netflix em dezembro de 2012
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