De Pernas Pro Ar

2.0 out of 5.0 stars

De Pernas Pro Ar, lançado no finalzinho de 2010, é um fenômeno. Teve 3,5 milhões de espectadores nos cinemas, um número extraordinário para o cinema brasileiro. Com tamanho sucesso, teria mesmo que virar franquia, e em 2012 veio De Perna Pro Ar 2, que conseguiu suplantar o primeiro, com 4,8 milhões de ingressos vendidos.

De Pernas pro Ar 3 foi lançado em abril deste ano de 2019, e em julho já havia chegado a 1,8 milhões de espectadores.

Parece que só há um fenômeno maior do que De Pernas Pro Ar no cinema brasileiro hoje: a protagonista dos três filmes, Ingrid Guimarães.

A mulher é como Rei Midas: tudo em que ela encosta vira ouro. Impressionante. Outro filme com ela, Fala Sério, Mãe!, de 2017, teve pouco mais de 3 milhões de espectadores nos cinemas. Loucas Pra Casar, de 2015, foi visto por 3,7 milhões de brasileiros.

Ingrid Guimarães é simplesmente a atriz brasileira mais vista neste século: mais de 20 milhões de pessoas já pagaram ingresso para ver os filmes com ela. Como sintetizou o título de uma reportagem de Rodrigo Fonseca no Estadão, em janeiro deste ano de 2019, ela é a Mulher-Maravilha da Neochanchada.

Nascida em Goiânia, em 1972, e radicada no Rio desde os 13 anos, onde começou a estudar teatro no famoso Tablado, a moça é um azougue, uma workaholic – e, nisso e em outras coisinhas mais, é bastante parecida com a personagem que interpreta na trilogia De Pernas Pro Ar, Alice Segretto. Não se contenta com o cinema: trabalha, e trabalha muito, tanto no teatro quanto na TV.

De repente, tudo na vida de Alice vem abaixo

Alice Segretto, a personagem de Ingrid Guimarães em De Pernas Pro Ar, é apresentada ao espectador como uma mulher que pensa mais no trabalho do que em qualquer outra coisa – aí incluídos o marido João (Bruno Garcia) e o filho de uns 8 ou 10 anos, Paulinho (João Fernandes). Ela meio que dá de barato que está tudo bem no casamento e na vida do filho. Vivem bem, confortavelmente, num belo apartamento, muito provavelmente na Barra. João é engenheiro e Alice é algo como uma supervisora de vendas numa grande empresa de brinquedos, Happy Toys.

Bem no início da narrativa, a dedicação de Alice ao trabalho é recompensada: os chefes oferecem a ela o cargo de diretora de marketing

De repente, tudo vem abaixo, bem abaixo – e ao mesmo tempo.

João comunica a ela que está saindo de casa. Quer dar um tempo, quer que Alice pense bem no quer da vida, se quer mesmo continuar vivendo com ele. E, no trabalho, acontece um absoluto imprevisto, e ela é demitida.

A vida dela vira de pernas pro ar.

Não consegui deixar de pensar em “Cycles”, uma canção lindíssima que Frank Sinatra gravou nos anos 70, em que o narrador conta que a mulher foi embora na semana anterior e na sexta-feira ele foi demitido: “My gal just up and left last week, / Friday I got fired / You know it’s almost funny / But things can’t get worse than now / So I’ll keep on tryin’ to sing / But please, just don’t ask me how”.

É quase engraçado, mas as coisas não podem ficar piores do que agora, diz a canção de Gayle Caldwell. Na voz de The Voice, é a mais absoluta maravilha.

Alice conhece Marcela – e sua vida muda  

Não dá para saber se Paulo Cursino e Marcelo Saback – os autores da história e do roteiro do filme – conhecem “Cycles”, mas o fato é que eles bolaram uma trama bem esperta.

O absoluto imprevisto que acontece na empresa e é o motivo para a demissão de Alice tem a ver com brinquedos sexuais, vibradores, roupas.

Ela já andava com a cabeça bem fora do lugar com a inesperadíssima saída de casa de João. Sua mãe, Marion (Denise Weinberg), tinha flagrado o genro com uma loura belíssima perto de um apart-hotel, e a própria Alice tinha ido até lá ver se flagrava o casal. Estava diante da loura de fato linda (o papel de Flávia Alessandra), no umbral da porta do apartamento, quando recebe um telefonema de Carlos, seu chefe, dizendo que ela estava atrasada para uma reunião importantíssima, com a presença de toda a diretoria e do presidente da empresa.

Na reunião, ela iria apresentar um novo brinquedo, que serviria de símbolo para uma nova campanha da Happy Toys. Depois de chegar atrasada, Alice coloca uma grande caixa de papelão em cima da mesa, e começa a falar de sua estratégia. O discurso agrada ao presidente – mas, quando ela abre a caixa e joga o conteúdo sobre a mesa, no que seria o ápice de sua apresentação, o que se espalha diante dela e dos diretores da empresa são joguinhos sexuais, paus das mais diferentes cores, vibradores de todos os tipos.

Demitida, abaladíssima, ela percebe, em casa, que a tal caixa que ela havia levado destinava-se, na verdade, a outro apartamento do seu prédio, cujo número é semelhante ao seu. Muito provavelmente os funcionários do condomínio tinham trocado as caixas, a dela, com os brinquedinhos inocentérrimos para crianças, com a do outro apartamento, com os brinquedinhos de adultos.

Furiosa, vai até o apartamento para onde se destinava a caixa que a fizera perder o emprego. E fica diante da vizinha que ela já conhecia de vista, de subirem e descerem juntas pelo elevador – uma mulher que abusa das saias curtíssimas e dos top decotadérrimos. Chama-se Marcela – o papel de Maria Paula.

O começo da conversa é um horror – mas mais tarde Alice volta ao apartamento de Marcela para pedir desculpas. E acabam ficando muito amigas.

Marcela era dona de um sex shop. Fala de sexo para Alice, percebe que Alice jamais tinha tido um orgasmo na vida, oferece a ela um vibrador. Alice goza pela primeira vez, numa sequência engraçada, feliz, bem realizada – e acaba ficando sócia de Marcela no sex shop. Entra com sua experiência em vendas, em marketing, é cheia de ótimas idéiais – a pequena loja passa a ser um imenso sucesso.

Eventualmente, João, o maridão, volta. Não tinha um caso com a loura linda coisa alguma, e na verdade o tempo que queria dar era para ver se Alice percebia que estava trabalhando demais e não vinha tendo tempo para ele, nem mesmo para o sexo com ele.

Um filme que é visto por pessoas de fora da bolha

Em uma das entrevistas que deu na época do lançamento de De Pernas Pro Ar 3, à repórter Isabella D’Ercole, da revista Cláudia, Ingrid Guimarães fez um elogio rasgado à trilogia: “Não é um filme sobre uma mulher correndo atrás de homem ou brigando por ele. O marido até demora a aparecer. É sobre ela. Acho revolucionário ter, no primeiro, uma cena dela gozando na montanha-russa, num jogo do filho.”

Em outra entrevista, Ingrid comentou: “O primeiro filme é o mais picante de todos, tem muito vibrador. Ela goza em um jogo de futebol com o filho olhando para ela”.

A sequência da montanha russa a que Ingrid se refere é a que citei logo acima – o momento em que Alice goza pela primeira vez na vida, usando o vibrador que havia ganho da amiga Marcela. E ela se imagina numa montanha russa. A sequência de fato é muito boa – é um dos melhores momentos do filme.

A sequência do jogo de futebol do filho é bastante engraçada também. Alice tinha colocado na sex shop uma calcinha toda especial, que reage aos ruídos do entorno e mexe com a vagina da usuária. Aí ela tem que sair correndo para não perder o importante jogo de futebol de que o filho participa como goleiro – e lá vai ela gozando no meio da arquibancada, diante dos olhares assustados de todo mundo.

Ingrid Guimarães acredita que o mundo ficou mais careta, nos últimos anos. Por isso é que o primeiro filme é mais ousado do que os seguintes. “O Brasil está cada vez mais conservador. Não dá para ficar pensando só na nossa bolha. Quantas idéias já tivemos que a Mariza (Mariza Leão, a produtora do primeiro filme) falava: ‘Isso os seus amigos vão achar legal’.”

Ou seja: entre os amigos, gente mais estudada, mais esclarecida, ligada às artes, nada careta, aquelas idéias seriam normais – mas o mesmo não vale para boa parte da sociedade.

“Existe um limite social no Brasil”, diz Ingrid. “Eu fico muito feliz que o meu filme saiu da bolha, que o porteiro e o motorista de táxi disseram que foram ao cinema ver.”

Coisas sérias, importantes, em filmes para o povão

São verdades importantes essas sobre as quais Ingrid Guimarães fala.

De fato, como ela diz, De Pernas pro Ar tem um um tom quase “revolucionário”, para usar a expressão que ela usou. É um filme que tem um viés feminino, feminista, pró-libertação, pró-independência da mulher, pró-direitos iguais entre homem e mulher.

É uma maravilha que um filme que fala não para a bolha – o público mais sofisticado, os intelectuais, artistas, gente de formação universitária, e tal – e sim para o povão defenda o direito de as mulheres se masturbarem, de usarem brinquedinhos sexuais como vibradores. E o direito de as mulheres trabalharem fora, serem independentes, terem os mesmos direitos dos homens.

Claro que isso é muito bom.

E é isso mesmo: De Pernas Pro Ar – assim como muitos dos filmes brasileiros de grande bilheteria, como parecem ser os filmes da outra atriz e autora de imenso sucesso atualmente, Mônica Martelli, a de Os Homens São de Marte… E é Para Lá Que Eu Vou (2014) e Minha Vida em Marte (2018) – é um filme voltado para o povão. Para o porteiro, o motorista de táxi, o trabalhador, as pessoas mais humildes, mais simples.

Não é – assim como tanto outros grandes sucessos – uma coisa fina, refinada, elegante. De jeito nenhum. É cinema para o povão. Como foram as chanchadas da Atlântida, nos anos 50 – outra época em que o cinema brasileiro soube conquistar e garantir grandes audiências.

É a neochanchada, como disse o Estadão na matéria de título feliz, “Ingrid Guimarães, a Mulher-Maravilha da neochanchada”.

É uma maravilha que ela exista, a neochanchada. É uma maravilha que existam filmes como este De Pernas Pro Ar, como Fala Sério, Mãe, Loucas Pra Casar, Os Homens São de Marte…, Minha Vida em Marte, Minha Mãe é uma Peça – que levam milhões de brasileiros aos cinemas.

É uma maravilha que exista Ingrid Guimarães.

Anotação em julho de 2019

De Pernas Pro Ar

De Roberto Santucci, Brasil, 2000

Com Ingrid Guimãres (Alice Segretto)

e Maria Paula (Marcela, a vizinha e depois sócia), Bruno Garcia (João Luiz Segretto, o marido de Alice), Denise Weinberg (Marion), Antônio Pedro (Sorriso), Cristina Pereira (Rosa), Charles Paraventi (Raul), João Fernandes (Paulinho Segretto, o filho de Alice), Flávia Alessandra (Danielle Santucci), Marcos Pasquim (Cliente da Sex Shop), Flávio Pardal (vendedor da Happy Toys), Rodrigo Candelot (Carlos, o chefe de Alice na Happy Toys), Zé Peregrino (taxista), Juliana Guimarães (faxineira do flat), David Herman (Olacyr)

Argumento e roteiro Paulo Cursino & Marcelo Saback

Fotografia Antonio Luiz Mendes

Música Fabio Mondego

Montagem Marcelo Moraes

Casting Marcela Altberg

Produção Mariza Leão, Downtown Filmes .

Cor, 111 min

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