Este Ekşi Elmalar, em inglês Sour Apples, maçãs azedas, produção turca de 2016, é um filme visualmente belo. A fotografia é esmerada, as paisagens são esplêndidas, as mulheres são bonitas e vestem-se com roupas coloridérrimas. Há tomadas aéreas extasiantes.
No entanto, a narrativa não me pareceu transparente, fluente, bem estruturada, e a construção dos personagens é frágil. Na primeira metade do filme, há um tom um tanto infanto-juvenil, uma coisa simplificada, esquemática, de fotonovela, de subliteratura para mocinhas românticas e casadoiras.
Bem, mocinhas românticas e casadoiras, que adoram as historinhas baratas das fotonovelas, é o que são as principais personagens femininas – três irmãs, filhas do homem que foi prefeito por três mandatos de uma cidadezinha chamada Hakkari, na província de Giresun, na Turquia, no final dos anos 1970.
É preciso admitir: não é fácil para um espectador brasileiro (ou canadense, ou argentino, ou australiano) compreender os costumes daquelas pessoas retratadas em Sour Apples, que vivem no interiorzão bravo da Turquia. E isso seguramente pode e deve ter interferido na minha avaliação do filme. Tenho consciência disso – e o que escrevo aqui, como sempre são apenas minhas opiniões. Não é jamais minha pretensão ser dono da verdade.
Só uma das três irmãs sabe ler e escrever
Um exemplo dessa coisa dos costumes diferentes do padrão, digamos, ocidental: não dá para entender por que Safiye, a filha do meio (interpretada por Sükran Ovali), é a única das três que pôde aprender a ler. As outras duas, Türkan, a mais velha (Songül Öden), e Muazzez, a caçula (Farah Zeynep Abdullah), não sabem ler, e dependem da irmã para muitas coisas.
Türkan está sendo paquerada de longe, bem de longe, por um sujeito, Cevdet (Kivanç Baran Aslan), e se comunica com ele através de cartas que pede para a irmã escrever. E Muazzez gostaria de entender o que acontece nas histórias das revistas de fotonovela que Safiye guarda com o maior cuidado – mas não consegue.
Diabo: por que isso?
Tudo bem: mostra-se que é uma sociedade extremamente machista. O pai das três moças, Aziz, o prefeito, é um homem rígido, e proíbe as filhas de fazerem quase tudo. Namorar é proibidíssimo.
Como aquela sociedade parece ter costumes medievais – proibições, proibições, proibições, machismo absoluto –, seria lógico até admitir que os pais proibiam as filhas de ter acesso à educação mais básica. Seria absurdo, desumano, incivilizado – mas ao menos teria alguma lógica. Agora, por que uma das três moças pôde aprender a ler e as outras não? Não dá para entender.
O prefeito é interpretado por Yilmaz Erdogan, que é também o autor da história e do roteiro e o diretor do filme.
(Ekşi Elmalar/Sour Apples não foi lançado comercialmente no Brasil, e portanto não tem título em Português. Está disponível na Netflix.)
Na primeira metade, o filme não deslancha
Muazzez, a caçula, é a mais bela das três irmãs – e é também a personagem central e a narradora da história.
A garota se apaixona de cara, quando a narrativa está bem no início, por um rapaz que veio de fora, de cidade grande. Ozgur (Sükrü Özyildiz) tem parentes na cidadezinha, parte de sua família é dali, mas foi criado em Ancara, a capital, e portanto é muitíssimo mais informado do que as pessoas ali da cidadezinha. Quando Muazzez o surpreende roubando maçãs no belo, bem cuidado pomar do pai, acha esquisitíssimo que o cabelo dele tenha cheiro. – “É xampu”, explica o rapaz da cidade para a moça do campo.
Ozgur consegue levar para Muazzez um frasco de xampu. Aziz, o pai, fica sabendo daquele pecado horroroso, e se dispõe a castigar as três filhas. Muzzez assume toda a culpa pelo crime de ter recebido aquele negócio esquisito, e leva chicotadas nas mãos, aplicadas com o cinto do pai.
O próprio Aziz, no entanto, fica curioso em saber como funciona aquela coisa que dá cheiro ao cabelo, e, numa manhã, besunta a cabeça com o líquido pastoso. Está na rua, diante de seus eleitores, quando começa a chover e surge espuma na sua cabeça de otoridade.
Em casa, as três moças passam o xampu no cabelo, a seco. Depois vão lavar o cabelo – e aí descobrem que surge espuma.
É um episódio que demonstra que o filme tem um lado ingênuo, naïf, como as pinturinhas, um tom meio infanto-juvenil, como falei mais acima.
Há toda uma série de seqûências que demonstram aquela coisa da dificuldade de um ocidental entender os costumes do lugar: numa determinada época do ano, todos os habitantes da cidadezinha percorrem uma grande distância até um platô no alto de montanhas, e se instalam ali, em tendas – como se fosse uma festa, uma feira do interior. Ficam acampados ali durante alguns dias, e depois arrumam tudo de novo e descem para suas casas na cidade.
Por que raios?
Quem tiver um amigo do interior bravo da Turquia que me explique, por favor.
Nesse processo todo de mudança para o alto das montanhas, estabelecimento lá e depois retorno, cabe às mulheres todas as tarefas. Os homens, como bem reparou, assustada, a Mary, não fazem nada, ou fazem o mínimo possível. As mulheres trabalham feito loucas. Feito mouras, como se dizia antigamente.
Mary avaliou – com toda razão – que toda a primeira metade do filme um tanto se arrasta, não deslancha. Fica como carro atolado na lama, enquanto mostra a vontade louca das três moças de namorar – e as dificuldades que enfrentam, já que o pai proíbe quase absolutamente tudo.
A caçula é proibida pelo pai de se casar
Na segunda metade, a narrativa ganha mais vitalidade, fica mais adulta, desperta mais o interesse do espectador. Türkan e e Safiye se casam, finalmente – a mais velha com Cevdet, o sujeito que ela paquerava. Safiye tinha se apaixonado por Hatip (Fatih Artman), um engenheiro de fora, que viera para a cidadezinha para cuidar das obras tocadas pela prefeitura. O pai, no entanto, proíbe o namoro da moça com o engenheiro, e ela acaba se casando com um pretendente que o pai aceita, Servet (Caner Cindororuk).
Aí vai um lance interessante da história criada pelo ator e diretor Yilmaz Erdogan. Türkan se casa por amor – e, no entanto, terá um casamento infeliz. Safiye se casa por falta de opção, já que havia sido proibida de ficar com o homem que amava – e terá, apesar disso, um casamento bom, com um sujeito que a ama e a trata muito bem.
São misteriosos e imprevisíveis os caminhos a que a vida nos leva.
Já Muazzez, a mais jovem, mais bela, talvez a mais sonhadora das três irmãs, eternamente apaixonada por Ozgur, o rapaz de cabelos cheirosos, é proibida pelo pai de se casar. Um tanto como a personagem principal do mexicano Como Água Para Chocolate – que é impedida pela mãe de se casar porque tem a obrigação de cuidar dela, a mãe, até o fim de seus dias –, Muazzez tem seu destino traçado pelo pai tirano: não poderá se casar nunca, porque terá que dividir com a mãe, Ayda (Seher Devrim Yakut), os trabalhos todos da casa.
Isso porque, quando não consegue se reeleger mais uma vez prefeito, Aziz perde o emprego, e não procura (ou não encontra) outra maneira de trabalhar para sustentar a família. Não procura ou não encontra trabalho: não fica claro. O filme faz questão de não explicitar alguns fatos – e este aqui é um deles.
Um filme que tem qualidades e merece ser visto
A linda atriz Farah Zeynep Abdullah (na foto acima), nascida em Istambul em 1989, tem entre seus ancestrais bósnios, macedônios, crimeus e iraquianos. Mudou-se com os pais para a Inglaterra aos 15 anos, e graduou-se pela Universidade de Kent. Fez carreira, no entanto, na Turquia natal. É bela e talentosa – está absolutamente convincente como a Muazzez adolescente e também como mulher da meia idade.
Yilmaz Erdogan, o autor, diretor e ator do filme (na foto abaixo), nasceu em 1967 na pequena cidade de Hakkari, que é retratada no filme. A figura do prefeito Aziz que ele interpreta foi baseada no avô dele. Como o Ozgur da história, Erdogan não foi criado na cidadezinha pequenina, e sim em Ancara, de onde seus pais se mudaram para Istambul. Ele estudava engenharia naquela grande metrópole quando resolveu dedicar-se ao teatro.
Com o tempo, passou a ter também experiências na televisão e no cinema. Sua filmografia como ator tinha 26 títulos em 2018. Como diretor, 13 títulos, incluindo vídeos e uma série de TV.
Encontro na internet um texto do site do jornal turco em inglês Hurriyet Daily News com um retrospecto da carreira de Erdogan, escrito na época do lançamento do filme na Turquia. O texto, assinado por Emrah Güler, começa assim:
“Apesar de ser um artista prolífico, Yilmaz Erdoğan (vixe Maria, o g do nome dele tem um acento!) encontra tempo para sentar na cadeira de diretor a cada três anos. No fim de semana passado (final de outubro de 2016), uma enxurrada de espectadores correu para os cinemas para assistir à última história da filmografia calorosa de Erdoğan, Ekşi Elmalar (Sour Apples), escrita, dirigida e estrelada por Erdoğan. O filme segue uma família por três décadas, a partir dos anos 1970, enquanto eles se mudam de cidades pela Turquia.”
E, ao final:
“Em 2014, Erdoğan, juntamente com outro popular e prolífico artista, Cem Yılmaz, estrelou no filme de estréia de Russell Crowe na direção, The Water Diviner, um drama histórico. O filme seguia o fazendeiro australiano de Crowe que viajava à Turquia depois da guerra à procura de seus três filhos desaparecidos, e deu a Erdoğan o prêmio de melhor ator coadjuvante da Academia Australiana de Artes Cinematográficas e Televisivas.
“Em seu mais recente filme, Ekşi Elmalar, Erdoğan volta ao mesmo lugar e período de seu primeiro filme, Vizontele, o sudeste da Turquia nos anos 1970. Erdoğan estrela como o prefeito de Hakkari, um homem difícil de se amar, mas mais fácil de se gostar. O filme segue o Azis Reis de Erdoğan, juntamente com suas três filhas, até os anos 1990, na cidade litorânea de Antalya. As atuações, juntamente com a fotografia, o desenho de produção e os figurinos fazem do filme outro título de sucesso na filmografia de Erdoğan.”
O texto parece de um release. Mas achei que valia a pena transcrever esses parágrafos, porque, afinal, foram escritos por um turco, com a visão de um turco.
Minha síntese seria assim: é um filme que tem qualidades, e merece ser visto. Não nos explica muito sobre os costumes das pessoas do interiorzão na Turquia, mas nos mostra um pouco deles – e em belas imagens.
Não chega a ser um filme tão maravilhoso quanto Cinco Graças (2015), de Deniz Gamze Ergüven – mas é muitíssimo melhor do que Climas (2008) e Três Macacos (2008), aquelas chatices de Nuri Bilge Ceylan.
Anotação em setembro de 2018
Sour Apples/Ekşi Elmalar
De Yilmaz Erdogan, Turquia, 2016
Com Yilmaz Erdogan (Aziz, o prefeito), Farah Zeynep Abdullah (Muazzez, a filha caçula), Songül Öden (Türkan, a filha primogênita), Sükran Ovali (Safiye, a filha do meio), Seher Devrim Yakut (Ayda), Sükrü Özyildiz (Ozgur, o namorado de Muazzez), Fatih Artman (Hatip, o engenheiro), Cezmi Baskin (Etar), Caner Cindoruk (Servet), Ersin Korkut (Sino), Hilmi Özçelik (Yusuf), Kivanç Baran Aslan (Cevdet)
Argumento e roteiro Yilmaz Erdogan
Fotografia Gökhan Tiryaki
Casting Tuba Sökmen
Produção Besiktas Kültür Merkezi (BKM).
Cor, 114 min (1h54)
8/9/2018, com Marynha.
**1/2
Assisti ontem ao filme e amei. Sou historiadora e pesquiso sobre a história e cultura turca. Há uma certa dificuldade para ocidentais, particularmente os brasileiros, tão liberais culturalmente que somos (apesar da forte presença do machismo), entenderem as gritantes diferenças culturais que temos com um país como a Turquia. Mas, como uma mulher de quase 60 anos, consigo entender a realidade daquelas mulheres dentro do contexto dos anos 60, no interior de um país, numa cultura milenar, onde a TV chegou depois até do Brasil, provavelmente. As fotonovelas eram tudo o que aquelas moças tinham para canalizar seus sonhos, assim como muitas mulheres brasileiras que viviam no interior do Brasil na mesma época. Há uma outra questão no filme: era um povoado de etnia curda, pessoas de tradições mais ligadas ao campo, ao pastoreio, às montanhas, com costumes sociais mais rígidos. Isso fica implícito na troca entre as personagens Muazzez e Ozgur. Ele ensinava a moça a ler e escrever, enquanto ela o ensinava as diferenças entre a língua turca e a língua curda, que são semelhantes. Mas, isso é sutil no filme devido à perseguição que os curdos sofrem na Turquia. Quanto ao fato de apenas uma das irmãs saber ler, isso não necessita de explicação mais aprofundada. Ela pode ter tido ajuda de alguém, algo sem relevância para a história contada no filme. É algo que ainda hoje acontece até mesmo no interior do Brasil. Acho que a linguagem de Erdoğan (o “ğ” não se pronuncia) foi tão poética quanto a fotografia, belíssima por sinal. E ele soube, com maestria, nos apresentar uma cultura milenar, com seus erros e acertos, num contexto histórico interessante para o mundo, palco da revolução sexual, cultural e política, e as consequências disso naquela região. Mas acredito que Erdoğan fez esse filme com a intenção de dialogar com o povo turco em primeiro lugar, num esforço para combater as desigualdades e conflitos sociais, daí um pouco da dificuldade de ocidentais, pouco acostumados com a Turquia, de entenderem o filme.