The Tattered Dress, no Brasil Epílogo de uma Sentença, de 1957, começa com um crime, mas não é propriamente um policial. O crime acaba virando algo secundário – o mais importante vem a ser o advogado de defesa do criminoso. E The Tattered Dress, como o título brasileiro indica, é filme de tribunal.
Não é um grande filme, na minha opinião – e nem tem fama nem muitos admiradores fanáticos. Mas tem um ótimo elenco e algumas características bem interessantes.
Uma delas: é bastante arrojado, corajoso, para a época em que foi feito. Avança alguns sinais, naquela década moralista, careta, em que o Código Hays, o código de autocensura dos estúdios, ainda estava em plena vigência.
O Código Hays não gostava de infidelidade conjugal. Casamento era coisa sagrada, não podia ser conspurcado nos filmes. Em seus Princípios Gerais, dizia: “Nenhum filme deve ser produzido de maneira a rebaixar os princípios morais daqueles que o vêem. Desta forma, a simpatia da audiência não deve nunca ser lançada para o lado do crime, do erro, do mal ou do pecado.”
No item “Aplicações Particulares”, o Código especificava: “A santidade da instituição do casamento e do lar deve ser respeitada. Os filmes não deverão inferir que baixas formas de relacionamento sexuais são aceitas ou comuns.”
E em seguida: “O adultério, às vezes necessário como material da trama, não deve ser tratado explicitamente, ou justificado, ou apresentado atrativamente.”
Um filme bastante ousado para sua época
Pois é. Acontece que Charleen Reston (o papel de Elaine Stewart, atriz bela, atraente), a primeira personagem que aparece na tela, é uma mulher extremamente dadivosa. Esposa de Michael Reston (Philip Reed), sujeito podre de rico, Charleen sai sozinha à noite, e, no bar, provoca o jovem barman Larry Bell (Floyd Simmons). Mais tarde, vai provocar também o próprio advogado contratado para defender o marido – e o filme dará todas as indicações de que ela e o advogado foram até os finalmente, como se diz. Mas isso é passar o carro à frente dos bois. Primeiro Charleen provoca o barman Larry Bell – e vemos isso de cara, bem no comecinho da narrativa, logo nos créditos iniciais.
Os créditos iniciais, aliás, são outra característica interessante do filme. Bem diferentemente do que era o padrão, nos créditos iniciais cada um dos principais atores aparece na tela ao lado de seu nome – Jeff Chandler, Jeanne Crain (cacete, que mulher linda, meu Deus do céu e também da terra!), Jack Carson, Gail Russell (belíssima também).
E aí então – as ligas de decência não devem ter gostado nada, nada – vemos uma mulher de costas para a câmara, loura, vestido com um interessante decote. Com a mão esquerda, ela toca uma garrafa, seguramente de bourbon. Uma mão vai se erguendo junto das costas da loura, aproximando-se do alto do vestido, do decote. A mão segura o vestido logo acima do decote – e dá um rasgão no tecido!
A loura se vira para trás, seu rosto passa a ficar diante da câmara. Um saxofone toca uma melodia insinuante – e surge na tela o nome do filme, The Tattered Dress, o vestido rasgado, esfarrapado.
A loura olha para o homem que rasgou seu vestido. Primeiro, com uma expressão de intensidade, de tensão, como se estivesse brava. Mas logo abre um sorriso, se mexe de maneira absolutamente sensual, enquanto o nome da atriz aparece: “co-estrelando Elaine Stewart”.
Corta, e vemos um carro branco conversível a toda numa estrada, à noite, enquanto vão rolando os créditos iniciais, os nomes dos atores secundários, depois os demais nomes da equipe. “Written by George Zuckerman”, mostram os créditos. Escrito por indica que é um roteiro original, uma história escrita diretamente para o filme e roteirizada pelo próprio autor. A bela trilha sonora, jazzística, típico jazz dos anos 50, é de Frank Skinner. O último crédito, como manda a tradição, é do diretor, e o diretor é Jack Arnold (1916-1992, 85 títulos como diretor na filmografia).
O marido mata o sujeito que a mulher seduziu
Ao final dos créditos, Charleen Reston, a mulher do vestido rasgado, interpretada pela bela e gostosa Elaine Stewart, está chegando em casa – uma belíssima, imensa propriedade, um tanto afastada da cidade, isolada no meio do nada. A câmara focaliza o rosto de Charleen enquanto ela dirige seu conversível, e ela está sorrindo abertamente, quase gozando.
Ela caminha até a porta da casa ainda sorrindo muito. O andar não é muito firme, denota que houve algum álcool ali. Charleen abre a porta de vidro, de correr, da grande sala, e a fecha de novo. A câmara fica parada do lado de fora, com a barreira da porta de vidro entre ela e Charleen, impedindo a passagem direta do som. Ouvimos, bem distante, a voz do marido chamando o nome da mulher. Vemos o marido, Michael, entrar na sala, mas não ouvimos toda a conversa dos dois – ouvimos apenas quando a voz de Michael fica bem alta: – “Que barman? Onde foi?”
Michael pega um revólver, puxa Charleen pela mão, vão até o carro.
Não demoram nada a encontrar o barman Larry Bell (Floyd Simmons), caminhando na rua, depois de ter terminado seu turno, indo embora para casa, provavelmente. Michael atira nele e o mata.
Estamos com 4 minutos e meio de filme.
Corta, e vemos um trem em boa velocidade. Lá dentro está o protagonista da história, James Gordon Blane, um advogado criminal de Nova York, rico, competente, famoso, um astro do tribunal do júri, um mago que consegue a absolvição dos suspeitos mais suspeitos que pode haver. É o papel de Jeff Chandler, então no auge da fama, aos 39 anos de idade, mas com o cabelo já bem grisalho, quase completamente branco – Jeff Chandler morreria menos de 4 anos depois do lançamento deste filme, em 1961, com apenas 42 anos.
Jim Blane está viajando de Nova York até a pequena Desert Valley, no interior de Nevada, a cidade em que Larry Bell foi morto, para defender Michael Reston. Ele é um advogado tão famoso que viaja com ele um experiente repórter, Ralph Adams (o papel de Edward Platt), do New York Bulletin. Jim Blane é notícia.
Numa das cidades em que o trem faz uma parada, Jim desce para se encontrar, ainda que por apenas uns poucos minutos, com seus dois filhos, garotos aí entre 8 e 12 anos, e sua mulher, Diane (o papel da esplendorosamente bela Jeanne Crain).
Estão separados. Veremos depois que o motivo da separação é o mais óbvio: bonitão, bem sucedido, Jim Blane não pode ver um belo rabo de saia que vai atrás. Diane se cansou disso, separaram-se. Mas fica claro para o espectador, naquela sequência em que se vêem rapidamente, na estação ferroviária, que os dois ainda se amam.
A mulher se insinua para o advogado do marido
Jim Blane enfrenta já na estação da pequena Desert Valley as caras feias de uns 20 homens que foram ali para demonstrar desprezo e ódio pelo figurarão que vem da grande metrópole defender o ricaço assassino. Essa coisa de a população local se colocar absolutamente contra o forasteiro será repisada ao longo de todo o filme.
Ele é recebido por outro advogado, Paul Vernon (Alexander Lockwood). O filme não se propõe a explicar muito quem é esse Paul Vernon, mas dá para perceber que ele é um advogado de Michael Reston para a área corportativa, empresarial, seu advogado de confiança. E foi ele, Vernon, que aconselhou Michael Reston a contratar os serviços de Jim Blane, embora o ricaço preferisse um criminalista de San Francisco, Lester Rawlings (Edward Andrews).
No primeiro encontro com o cliente e sua mulher, as coisas não vão muito bem. Charleen vai logo fazendo caras e bocas para o advogado altão, bonitão. (Se ele fosse baixinho e feioso, provavelmente ela também faria caras e bocas.) Fica evidente que advogado e cliente não vão com a cara um do outro. Quando Jim Blane diz que vai embora, Paul Vernon sugere que ele pode ficar hospedado ali, na casa de campo dos Reston. O criminalista diz que é melhor ele se hospedar na cidade, para não irritar ainda mais os moradores.
Jim Blane diz para o ricaço que está pagando uma nota preta para ele: – “Talvez numa outra ocasião, sr. Reston, se o senhor e sua linda mulher conseguirem escapar da penitenciária graças ao meu trabalho suado.”
O advogado é acusado de subornar uma jurada
Jim Blane logo fica conhecendo Nick Hoak, o xerife da cidadezinha de Desert Valley – o papel de Jack Carson. Nick Hoak é uma figura fundamental da história, muito mais do que a mulher que se ofereceu ao barman Larry Bell e o homem que o assassinou.
O xerife Hoak era amicíssimo de Larry Bell. Tinha com ele uma relação de pai para filho: gostava dele, o admirava, o protegia.
Viria a ser, no julgamento de Michael Reston, a principal testemunha, o elemento chave da promotoria.
Jim Blane faz direitinho o trabalho de pesquisa. Descobre que Larry Bell havia sido expulso da Universidade Estadual por ter se demonstrado um machista mulherengo durante o trote de uma turna de novatos, roubando peças íntimas das estudantes em seus dormitórios.
E, ao interrogar o xerife Hoak no banco de testemunhas, consegue fazer picadinho dele e de todo o seu discurso que tentava fazer de Larry Bell a imagem do rapaz perfeito.
O filme está aí com pouco menos de 35 dos seus 93 de duração, apenas um terço, quando o júri apresenta sua decisão sobre o réu Michael Reston – e logo em seguida o promotor da cidade apresenta uma intimação a Jim Blane para que ele compareça como réu a um novo julgamento: ele está sendo acusado de ter subornado uma jurada por US$ 5 mil.
A jurada é uma bela viúva chamada Carol Morrow – o papel de Gail Russell, essa atriz de beleza tão impressionante quanto foi sua vida. (Conto sobre Gail Russell na anotação sobre seu filme O Fugitivo de Santa Marta.)
Veremos que Carol é amante do xerife Hoak. Evidentemente, Jim Blane não a subornou: é tudo uma armação do xerife para ferrar com ele, e assim anular o julgamento.
Tudo o que foi dito até aqui (e, diacho, acabei dizendo muito) não me parece que tenha spoiler algum. Meu relato todo cobre apenas um terço do filme. A partir daí há muita água para passar sob a ponte.
No julgamento, fala-se a palavra então proibida
Depois de ver este The Tattered Dress, e antes de começar esta anotação, fiquei me lembrando de Anatomia de um Crime.
Bem diferentemente deste filme aqui, que é quase obscuro, pouco conhecido, pouco falado, Anatomia de um Crime é um grande clássico, uma maravilha, um filmaço, uma obra-prima. É do grande Otto Preminger, tem no elenco James Stewart, Lee Remick, Arthur O’Connell, George C. Scott, Ben Gazaara. Como The Tattered Dress, é um filme de tribunal. Como a Charleen Reston de Elaine Stewart, a Laura Manion de Lee Remick é uma jovem mulher linda e danada de davidosa, oferecida, sedutora.
Anatomia de um Crime foi lançado em 1959, apenas dois anos depois deste hoje obscuro The Tattered Dress.
O Código Hays não aprovava o uso de algumas palavras que poderiam fazer a audiência pensar em sacanagem. Calcinha, por exemplo. Preminger, um diretor que sempre forçou a barra contra a autocensura hollywoodiana, botou a palavra calcinha umas 30 vezes em seu filme.
Anatomia de um Crime é, além de brilhante, reconhecidamente um filme corajoso, que enfrentou o código de autocensura dos estúdios.
Pois é. Mas este The Tattered Dress já havia feito a mesma coisa.
Ao interrogar o xerife Hoak, Jim Blane fala de um trote na Universidade Estadual do qual a vítima, Larry Bell, havia participado. “Um incidente conhecido como ataque às calcinhas” – é o que diz a legenda do filme. “Panties raid” – creio que essa é a expressão em inglês.
Interrogado sobre se sabia da existência desse tipo de trote na Universidade Estadual, o xerife Hoak diz que aquilo acontece em todas as universidades o país: “Garotos atacavam grêmios e dormitórios das garotas e fugiam com… (pausa) roupas femininas de baixo”.
“Feminine undergarments” – essa é a expressão que ele usa no original. Uma forma educada, cuidadosa.
Mas Jim Blane fala a palavra clara, a palavra que o Código Hays proibia: panties. Calcinha.
Dois anos antes de Anatomia de um Crime.
Fascinante.
Um filme que não tem fama – mas merece ser visto
O livro The Universal Story diz que o roteiro do filme é fraco, “perfunctory”, com direção igualmente “perfunctory” – superficial, passageira, rudimentar.
Leonard Maltin deu 2.5 em 4 para o filme: “Relato lento mas assistível sobre advogado Chandler defendendo casal da sociedade acusado de assassinato; Crain é sua simpática esposa”.
O guia de Steven H. Scheuer também dá 2.5 em 4: “Drama sobre assassinato um tanto confuso mas moderadamente interessante, com um grande elenco de estrelas que aparecem em papéis pequenos”.
Nem o guia de Mick Martin & Marsha Porter, nem o Guide des Films de Jean Tulard, nem Le Petit Larousse des Films fala sobre The Tattered Dress – La Robe Déchirée na França. É, de fato não tem fama nem muitos admiradores fanáticos. Mas sem dúvida tem muita coisa interessante, e merece ser visto. Está disponível no Cine Antiqua do YouTube.
Anotação em julho de 2019
Epílogo de uma Sentença/The Tattered Dress
De Jack Arnold, EUA, 1957
Com Jeff Chandler (James Gordon Blane), Jeanne Crain (Diane Blane), Jack Carson (xerife Nick Hoak), Gail Russell (Carol Morrow, a amante do xerife), Elaine Stewart (Charleen Reston), Philip Reed (Michael Reston), George Tobias (Billy Giles, o amigo de Jim Blane), Edward Andrews (Lester Rawlings, o advogado de San Francisco), Edward Platt (Ralph Adams, o repórter), Paul Birch (Frank Mitchell), Alexander Lockwood (Paul Vernon, o advogado dos Reston), Edwin Jerome (o juiz), Floyd Simmons (Larry Bell, a vítima), Ziva Shapir (a bela mulher no trem)
Argumento e roteiro George Zuckerman
Fotografia Carl Guthrie
Música Frank Skinner
Direção musical Joseph Gershenson
Montagem Edward Curtiss
Produção Albert Zugsmith, Universal International Pictures.
P&B, 93 min (1h33)
**1/2
Título na França: La Robe Déchirée. Em Portugal: O Vestido Esfarrapado.
Vi hoje e fiquei muito bem impressionada. Gosto de filme de tribunal e das reviravoltas todas. Não é mesmo supimpa mas pra mim foi interessante, consistente e curti as atuações.