Corra! / Get Out

3.0 out of 5.0 stars

Get Out, no Brasil Corra!, o premiadíssimo filme escrito e dirigido pelo jovem ator, roteirista, produtor e cantor Jordan Peele, de 2017, é daquele tipo que deve preferencialmente ser visto antes que o espectador leia qualquer coisa sobre ele. Quanto menos informações a pessoa tiver sobre o filme, maiores serão as surpresas.

Bem, a rigor, a rigor, todo filme é assim – embora essa opinião possa parecer a princípio muito estranha vindo de um sujeito que tem um site de filmes, que escreve longos, às vezes intermináveis textos sobre filmes.

Eu, pessoalmente, gosto demais de ver filmes sobre os quais sei muito pouco, quase nada. Acho que essa é a melhor maneira de curtir, de aproveitar ao máximo o filme – ele lá se desvendando à minha frente, me surpreendendo a cada nova informação, a cada nova sequência, a cada novo diálogo.

Claro que é impossível não saber absolutamente nada sobre um filme: inevitavelmente você já passou os olhos por alguma sinopse, por algum título de jornal, por alguma nota sobre ele em um site.

Mas, para mim, quanto menos informação tiver, melhor. Ah, é do diretor fulano, com fulano e mais fulano no elenco – pronto! Mais nada! Isso é o ideal.

Claro que cada um gosta das coisas de um jeito. Há quem prefira saber informações, ainda que básicas, sobre a história, ler ao menos uma sinopse. Claro: cada um é de um jeito, e cada um está certo no jeito que gosta.

Eu, pessoalmente, gosto de ler as opiniões dos outros depois que vejo o filme. Depois que formei a minha própria opinião.

Mas, de novo, cada um gosta das coisas de um jeito.

“Afro-americano visita os pais da namorada branca”

Legal: ao falar sobre essas coisas genéricas – mas importantes –, consegui não adiantar informação alguma sobre Corra!/Get Out.

Melhor assim.

Mas vou dizer: começamos a ver o filme depois de ter lido a primeira frase da sinopse do IMDb: “Um jovem afro-americano visita os pais da sua namorada branca durante o fim de semana…”

Li só isso – e que o filme tinha ganho um porrilhão de prêmios, inclusive o Oscar de roteiro original. E então começamos a ver.

Corra!/Get Out começa assim como uma versão 2017 de Adivinhe Quem Vem Para Jantar.

Um drama sobre as relações entre pessoas de pele clara e pessoas de pele escura.

Em Adivinhe Quem Vem Para Jantar, uma jovem de pele branca, Joey (Katharine Houghton), leva para a casa dos pais o seu namorado, para que eles se conheçam. Haviam começado a namorar no Havaí. O namorado, John, é um médico de currículo perfeito, respeitadíssimo – e além de tudo é bonito pra cacete, é um Apolo – o papel de Sidney Poitier. Os pais de Joey, Matt e Christina, são absolutamente avançados, liberais, democratas – e são interpretados pelo casal que era o próprio retrato do avanço, do liberalismo, do melhor lado do Partido Democrata, Spencer Tracy e Katharine Hepburn.

E, no entanto, Matt e Christina ficam chocados ao ver que o namorado de sua filha Joey tem a pele escura.

Era 1967 – e, como escrevi sobre Adivinhe Quem Vem Para Jantar, até os anos 60, em diversos Estados americanos, o segregacionismo era legal, garantido por lei. Não tinha o nome ignominioso de apartheid, mas era idêntico a ele. As pessoas de pele negra tinham que se sentar atrás nos ônibus, não tinham direito a voto; havia banheiros separados para as pessoas de pele clara e as pessoas de pele escura. Havia bares, lojas, escolas que não admitiam a entrada de pessoas de pele escura.

Tudo legal, garantido por leis.

O casamento entre pessoas de cor de pele diferente era proibido por lei em 16 ou 17 dos 50 Estados americanos.

Apenas em 1964, durante o governo de Lyndon B. Johnson, foi aprovado o Civil Rights Act, que proibiu a discriminação contra minorias raciais, étnicas, nacionais e religiosas. Os Estados Unidos só acabaram legalmente com seu próprio apartheid em 1964 – apenas 30 anos antes do fim do regime nojento, abjeto, da Áfríca do Sul.

Ela garante para ele que os pais não são racistas

Pois este Corra!/Get Out começa fazendo lembrar demais aquele filme lá, feito a rigor, a rigor, não tanto tempo atrás – mas, de tantas maneiras, 1967 hoje parece a Idade da Pedra. Em 2017, exatos 50 anos depois de Adivinhe Quem Vem Para Jantar, já não há nos Estados Unidos (assim como na África do Sul) qualquer lei garantindo segregação. Muito antes ao contrário. Mudou tudo, ou quase tudo. Com exceção de um bando de loucos, idiotas, ninguém mais é capaz de assumir que é racista. Pega mal, muito mal, assumir atitudes racistas.

Chris e Rose estão juntos faz quatro meses – e parecem se dar extremamente bem. Ele é interpretado por Daniel Kaluuya, e ela, por Allison Williams. Como no filme de meio séculos antes, ela tem a pele clara, ele, escura. Chris é um fotógrafo bem sucedido, reconhecido. Estão indo visitar os pais dela, que moram no campo, ao Norte de Nova York, acima da metrópole, upstate, como se diz lá.

Chris dá uma checada: ela contou para os pais que o namorado que está indo passar o fim de semana lá é negro? Rose diz que não falou, que não tem problema, que os pais não são racistas de forma alguma, que o pai dela votou duas vezes em Barack Obama e sempre diz que gostaria muito de votar nele uma terceira vez.

Ué, que maravilha!, poderia pensar um otimista, um believer. Legal: este filme de 2017 mostra uma situação pós-racismo, uma sociedade depois que ultrapassamos aquela doença medieval que é o preconceito por causa da quantidade de melanina que a pele de cada um tem.

Pois é.

No final da tarde da sexta-feira, os pais de Rose recebem Chris de uma forma gentil, educada, afetuosa – sem qualquer peso porque a pele dele tem tom diferente da dela.

O pai, Dean (Bradley Whitford, na foto abaixo), é um neurocirurgião. A mãe, Missy, é uma psiquiatra – o papel de Catherine Keener, a única atriz de todo o elenco que eu conhecia, numa versão com mais quilos que a da última vez que a tinha visto.

Lá pelas tantas aparece o irmão de Rose, Jeremy (Caleb Landry Jones), e Jeremy, depois de beber muito no jantar, fala umas coisas esquisitas – mas não propriamente assustadoras.

Chris fica um tanto assustado é com os dois empregados da casa, ambos negros: Georgina, a empregada que cuida da casa (Betty Gabriel) e Walter (Marcus Henderson), o jardineiro que cuida das áreas externas.

No meio da noite – a noite de sexta para sábado, é bom ter em mente –, Chris acorda de um sonho ruim, e sai da casa para fumar um cigarro. Sim, ele ainda fuma, essa coisa considerada absurda nos dias de hoje.

Quando Chris está caminhando rumo à porta da frente da casa, há algo totalmente inesperado: o espectador vê, durante uma fração bem pequena de segundo, a empregada Georgina atravessar muito depressa um cômodo, talvez a sala. Para realçar que ali está algo muito estranho, ouvimos uns acordes que fazem lembrar as trilhas de filmes de terror.

E aqui chegamos ao ponto: spoiler, spoiler, spoiler

E aqui (repito para as pessoas que costumam não ler os intertítulos)_ chegamos ao ponto: a partir de agora teremos spoiler, spoiler, spoiler.

Seria um absurdo se o eventual leitor continuasse a ler este texto não tendo ainda visto o filme, porque as informações abaixo estragam o prazer do espectador.

Bem, é necessário dizer que a rigor, a rigor, bem a rigor, este Corra!/Get Out já havia dado uma indicação de que não seria apenas um drama sobre racismo, um estudo sobre namoros inter-raciais.

A primeira sequência do filme mostra um jovem negro caminhando por um bairro elegante, de belas casas. Ele está gravando uma mensagem de texto para a namorada que o atraiu para aquela região da cidade, bairro de brancos ricos. Um carro passa perto dele, parece que o está seguindo. O jovem muda de caminho, faz uma volta de 180 graus – para, daí a pouquinho, levar uma porrada que o deixa grogue. O branco que dirigia o carro põe o jovem negro para dentro do bagageiro – aí corta, e vemos o protagonista Chris, e logo sua namorada Rose.

Corra!/Get Out começa como algo esquisito, vira um drama familiar sobre racismo ou não racismo – para, depois, a partir aí de uns 30, 40 minutos, virar filme de terror, com pitadas de ficção científica, essas coisas de experiências genéticas, transplantes de órgãos, por aí. Tem umas pitadas daquele horror dos anos 30, Frankenstein, tal e coisa.

No final, resvala para o que o cinema tem de pior: vira um slasher movie – aquele tipo de filme de terror que parece feito para agradar a adolescente doido, aquela coisa absurda que adora que a câmara mostre uma carótida sendo cortada e o sangue espirrando como um gêiger islandês.

É, muito provavelmente, um dos filmes que mais passeiam pelos diferentes gêneros. Romance, drama, suspense, terror, ficção científica, slasher.

Um tremendo, absoluto sucesso de crítica

Corra!/Get Out ganhou 145 prêmios, inclusive o já mencionado Oscar de melhor roteiro original – fora 133 outras indicações.

Cidadão Kane, que 11 de cada 10 críticos consideram o melhor filme de toda a História, teve 10 prêmios e outras 13 indicações. Morangos Silvestres, aquela obra de arte extraordinária, teve 16 prêmios e 43 indicações.

Claro, claro, os tempos são outros. A população do planeta se multiplicou, o número de festivais e de prêmios também.

Para mim, é muito bom que um jovem artista de muitos talentos, este Jodan Peele, nascido em Nova York em 1979, quatro anos depois da minha filha, faça um filme que é uma grande, imensa mixórdia de gêneros, que obtém grande sucesso de crítica e de público, em que a questão da cor da pele, afinal de todas as contas, seja apenas parte de uma trama inacreditável.

Claro, é uma parte muito importante da trama – mas acaba se falando de tanta coisa que o racismo acaba sendo apenas apenas um dos elementos da história.

Gostei demais de saber, pelo IMDb, que Jordan Peele é filho de homem de pele escura e mulher de pele clara. Um mestiço – um crioulo, um mulato, essa coisa de que o Brasil é cheio, porque aqui nunca houve apartheid, e que os Estados Unidos conhecem pouco, porque até outro dia os casamentos inter-raciais eram proibidos.

Filhos de branco com preto, filhos de índio com japonês, filhos de coreanos com suecos são a melhor maneira de combater qualquer tipo de idéia de raça pura, de que há uma raça mais avançada, mais inteligente, superior às outras. O melhor jeito de dizer que orgulho de ser preto retinto é tão idiota quanto orgulho de ser branco KKK ou nazista.

“Fresco e afiado, perturbador e histérico”

O autor e diretor Jordan Peele contou que sua inspiração para escrever a história e o roteiro veio de Eddie Murphy: Delirious, de 1983 – um filme de média metragem que reproduz um show de stand-up comedy do ator. Nele, o comediante conta piadas sobre filmes de terror – ele cita especificamente Poltergeist – O Fenômeno (1982) e Horror em Amityville (1989) –, e pergunta à audiência por que raios as pessoas brancas não cascam fora das casas mal assombradas. Se ele estivesse visitando uma casa belíssima com a mulher e ouvisse um fantasma sussurar “get out” – saia, vá embora, corra –, ele se viraria para ela e diria: – “Que pena que a gente não pode ficar!”

Get Out ficou dois meses inteiros entre os 10 mais vistos nos cinemas americanos, logo após a primeira exibição no Sundance Festival em janeiro e o lançamento em fevereiro de 2017.

Foi uma produção barata, para os padrões americanos: custou US$ 4,5 milhões – e rendeu um total de US$ 255 milhões.

No site Roger Ebert.com, o crítico Brian Tallerico elogia Get Out entusiasticamente. De cara, define o filme como “híbrido de gêneros complexo e bem sucedido. “Get Out é fresco e afiado de uma maneira que os filmes de horror dos estúdios quase nunca são. É ao mesmo tempo perturbador e histérico, não raro no mesmo instante, e não tem medo algum de mexer com as porcarias racistas que as pessoas têm na cabeça. Quando apresentou o filme em Park City (no Sundance Film Festival), ele disse que havia começado a escrever o roteiro tentando fazer algo não parecido com filme algum que ele já havia visto. Precismos de mais diretores querendo correr riscos com filmes como Get Out.”

E prossegue:

“Para ser exato, Peele se inspirou em alguns filmes que ele viu, incluindo The Stepford Wives e Rosemary’s Baby, embora com um pesado toque racial. Seu filme é essencialmente sobre a sensação perturbadora de quando você sente que não pertence àquele lugar em que está; quando você sabe que não é querido – ou talvez quando é querido demais da conta. Peele colocada aquela antiga característica do gênero de saber que há alguma coisa errada naquele ambiente com uma ponta satírica, racial. E se ir à casa dos pais da sua namorada não fosse apenas desconfortável, mas simplesmente perigoso demais?”

O crítico que escreve para o site do grande Roger Ebert termina sua longa análise dizendo que, depois desse filme, um bando de produtores deveria estar batendo na porta da casa de Jordan Peele pedindo para ele contar que outros filmes diferentes de tudo o que já viu ele gostaria de fazer.

Anotação em fevereiro de 2019

Corra!/Get Out

De Jordan Peele, EUA-Japão, 2017.

Com Daniel Kaluuya (Chris Washington), Allison Williams (Rose Armitage),

e Catherine Keener (Missy Armitage, a mãe de Rose), Bradley Whitford (Dean Armitage, o pai), Caleb Landry Jones (Jeremy Armitage, o irmão), Lil Rel Howery (Rod Williams, o grande amigo de Chris), Marcus Henderson (Walter, o jardineiro), Betty Gabriel (Georgina, a empregada), Lakeith Stanfield (Andre Logan King), Stephen Root (Jim Hudson), Ashley LeConte Campbell (Lisa Deets), John Wilmot (Gordon Greene), Caren L. Larkey (Emily Greene), Julie Ann Doan (April Dray), Rutherford Cravens (Parker Dray)

Argumento e roteiro Jordan Peele

Fotografia Toby Oliver

Música Michael Abels

Montagem Gregory Plotkin

Casting Terri Taylor

Produção Universal Pictures, Blumhouse Productions, QC Entertainment, Monkeypaw Production.

Cor, 104 min (1h44)

***

5 Comentários para “Corra! / Get Out”

  1. “Corra!” e “Baby Driver” foram, pra mim, os melhores filmes da safra 2017. Se vira um slasher movie, é o melhor tipo de slasher movie que eu gosto de ver.
    Eu gostei de ler um texto seu sobre ele, do mesmo jeito que gosto dos filmes idosos 🙂

  2. Gostei muito de “Corra” que pude ver no cinema. E o seguinte do Jordan Peele, “Nós” também é excelente.Sobre os atores, o pai dela é super premiado pela série The West Wing – pena que não chegou a fazer sucesso no cinema.

    Acho a junção perfeita de filme de “Tema importante” com “Super comercial”.

  3. Tem um jeitão mesmo dos 70’s, o que só me fez gostar mais. Talvez seja um pouquinho superestimado, o que atribuo à queda geral de qualidade dos filmes de suspense/terror ultimamente.

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