Cartas de Guerra, produção portuguesa de 2016, é um grande filme. Duro, cru, brutal, é um dos mais belos – e mais lancinantes, dolorosos – retratos da angústia de um homem no meio de uma guerra que o cinema já fez.
O cinema já fez tudo, absolutamente tudo o que pode existir. Já não há mais espaço para algo inteiramente novo – e no entanto o realizador Ivo M. Ferreira construiu um filme cuja narrativa, creio, é única, sem precedentes, sui generis. Não há propriamente uma história, com começo, meio e fim. Todo o filme se apóia nos textos das cartas de um homem no meio de uma guerra à mulher que está em casa.
É 1971, e António, jovem médico, está enfiado no interiorzão de Angola, junto com um destacamento do Exército que enfrenta os guerrilheiros que lutam pela independência do país do jugo português. Ele escreve cartas à mulher incessantemente – cartas apaixonadas, saudosas, lamurientas, tristíssimas, relatando um pouco dos fatos ao redor dele, mas sobretudo suas dores, suas angústias, seus pavores, sua saudade, seu amor, sua paixão.
São cartas de uma beleza descomunal. É o texto de um artista, um ourives da palavra, um poeta – o jovem médico António tem pendor, tem talento, está escrevendo seu primeiro romance, um cartapácio interminável, passado ali mesmo, no meio do nada do interior miserável de país africano do fundo do quinto, do décimo-terceiro mundo.
Os textos das cartas são lidos pela bela voz de Miguel Nunes, o ator que faz António – e também pela voz de Margarida Vila-Nova, que interpreta Maria José, a mulher distante. A voz do remetente se alterna com a voz da destinatária – e são belas as vozes, e absolutamente deslumbrante o texto.
E, meu Deus do céu e também da terra, como é lindo o idioma Português falado pelos portugueses! Como é rica, melodiosa, ritmada, expressiva a última flor do Lácio, inculta e bela!
Não é muito fácil para nós, brasileiros, compreender o Português de Portugal, mesmo falado por bons atores. Felizmente a Imovisión, que lançou o filme em DVD aqui, teve o cuidado de dar a opção de lermos legendas.
Não é literatura: são cartas de um homem desesperado
As cartas são belíssimas, repito. Em diversos momentos, é poesia pura, da mais alta qualidade – mas não é literatura. São cartas que de fato o o então jovem médico António Lobo Antunes, servindo o exército português no leste de Angola – na Vila Gago Coutinho, em Chiúme e Malange – escrevia para sua mulher Maria José, que ele deixou em Lisboa grávida de sua primeira filha.
Para exemplificar a beleza das cartas, pego aleatoriamente um trecho bem do início do filme, quando António está recém-chegado a Angola:
“Como gostaria de voltar, de voltar depressa, para poder ver-te, tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do teu corpo, a língua na tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço… voar. Lembro-me de pormenores absurdos: do sinal do peito do teu pé, do teu dente de ouro, do canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos. Minha senhora, eu amo-a. Se não a conhecesse, eu a perseguiria pelas ruas com propostas sórdidas e veementes. As saudades são imensas, e tu ocupas o primeiro lugar da minha cabeça, à frente da minha indignação por aqui estar e todo o resto. Um sentimento de perda irreparável. Começo a pensar que o preço que se paga para poder voltar um dia para aí, e viver aí, é realmente demasiado.”
Um trecho no meio do filme:
“Agora, com as chuvas, não calculas a quantidade de insetos que andam por toda a parte, rastejando, pulando, marchando, voando. Louva-a-Deus enormes, feitos de arame, com quase um palmo de comprimento, mariposas de todos os tipos, algumas gordas e verdes, absolutamente repelentes, formigas de asas, mosquitos, pequeninos bichos sem classificação, com uma irresistível tendência para meterem-se nos buracos do nariz, estranhas aranhas voadoras… Sei lá. Isto é uma terra de excessos de todo tipo. Nada tem medida nem contenção. Parecida com minha louca prosa, em que se costuram feridas com tiras de solda.”
De vez em quando, alguns poucos diálogos
As cartas são reais, repito, e o filme foi rodado em Angola mesmo, em locais certamente semelhantes àqueles em que se deram os fatos.
Mas – repito também – não há propriamente uma história. Aqui e ali há alguns diálogos entre António e alguns dos homens do destacamento, em especial o Capitão (João Pedro Vaz), de quem ele gosta bastante, e o Major (Ricardo Pereira), de quem não gosta tanto – um sujeito esquisito, machista, metido a besta.
Mas são poucos os diálogos.
O que importa são as cartas, os textos das cartas – enquanto vamos vendo as ações dos soldados, as andanças dos pelotões no meio do mato, tateando o caminho – a cada metro pode haver minas colocadas pelo inimigo.
De tempos em tempos, vemos Maria José em seu apartamento em Lisboa.
Todas as imagens são de uma beleza absurda, incrível – apesar de toda a miséria do lugar.
O trabalho do diretor de fotografia João Ribeiro é uma coisa absolutamente esplendorosa – e a opção pelo preto-e-branco se prova perfeitíssima. Cartas da Guerra jamais poderia ser um filme em cores.
As imagens são de uma beleza triste que faz lembrar os trabalhos de Sebastião Salgado.
Os soldados não sabem o que está acontecendo
O que, exatamente, está acontecendo com aquele destacamento? Qual é sua missão? Qual é sua estratégia?
Não dá para saber. O espectador simplesmente não compreende o que aqueles soldados estão fazendo – e isso não é um defeito do filme, não, de forma alguma. É o mais perfeito retrato que se pode fazer de uma guerra de guerrilha: não há front, não há retaguarda, não há trincheira, não há delimitação de terreno, não há um objetivo estratégico a ser perseguido.
Toda guerra, é óbvio, é insana – mas a guerra de guerrilha, e aquela guerra especificamente, do exército de Portugal contra não uma, mas duas guerrilhas diferentes, em Angola, são a coisa mais insana que pode haver.
O soldado não vê o inimigo, não sabe onde ele está, quando ele pode surgir – e então a tensão é permanente, infinita.
O diretor e co-roteirista Ivo M. Ferreira soube magistralmente mostrar isso no seu filme que não tem uma sucessão de eventos que forme uma narrativa. Os soldados não sabem o que está acontecendo – e, portanto, como poderá o espectador entender?
Para que não fique tudo muito absolutamente solto, Ivo M. Ferreira de vez em quando coloca uma situação que tem algum sentido, que se pareça com um episódio de uma história. António muitas vezes joga xadrez com o Capitão, e conversam um pouco sobre o que está acontecendo. – “Cada vez mais me convenço de que esta é uma guerra que não tem sentido”, diz o Capitão para António.
Uma outra situação: o destacamento encontra uma garotinha de uns 10 anos, absolutamente sozinha, junto dos corpos dos pais mortos. António se compadece dela, leva-a para o local onde o destacamento está instalado. Não há comunicação entre elas: a garotinha só fala uma das línguas de tribos que há em Angola, não compreende português, e o médico não sabe nada daquela língua.
Solitário, cada vez mais tomado pela angústia, pelo peso da saudade da mulher, António afeiçoa-se à garota – mas de repente surge um sujeito dizendo que é o avô dela, e quer levá-la.
Ainda uma outra situação: o Major aparece no lugar em que o médico está atendendo pessoas ali da região, e pede para ser examinado por ele. Diz que está muito doente. António o examina, e não consegue ver problema algum. Só depois de algum tempo ele deixa escapar que quer desesperadamente ser considerado doente, incapaz, para poder sair daquele inferno.
Um belo filme – mas não é para todos os públicos
Situações assim surgem aqui e ali – mas na imensa maior parte dos 109 minutos do filme ouvimos os dois atores lendo as cartas que António escreve enquanto vemos paisagens daquele interiorzão perdido de Angola, soldados se movimentando devagar, à procura não se sabe exatamente de quem nem para quê.
Para lembrar:
As cartas de António para a mulher foram escritas em 1971 e nos primeiros meses de 1972. Apenas dois anos depois, em 25 de abril de 1974, os militares derrubaram a ditadura salazarista instalada havia 41 anos, em 1933. O fim da ditadura precipitou o fim da guerra em Angola e a independência do país, proclamada em novembro de 1975.
O conflito entre o exército de Portugal e as forças guerrilheiras que lutavam pela independência de Angola havia começado em 1961. E eram três grupos diferentes de guerrilheiros: o MPLA, Movimento Popular
de Libertação de Angola, a FNLA, Frente Nacional de Libertação de Angola e a Unita, União Nacional para a Independência Total de Angola. Cada um deles tinha seus apoiadores: o MPLA tinha o respaldo da União Soviética e seus satélites; a FNLA, o apoio discreto do governo dos Estados Unidos; e a Unita, da China.
Na região de Angola em que o médico António serviu no exército, atuava o MPLA, que assumiria o poder a partir da independência, em 1975. Naquele ano, o exército português deixou o país – mas começou imediatamente uma guerra civil do MPLA contra os dois outros movimentos. A guerra civil só terminaria em 2002.
António Lobo Antunes , o autor das cartas, nasceu em Lisboa em 1942; em 1971, quando foi para Angola servindo o exército português, estava portanto com 29 anos. Como mostram suas cartas – e também o filme –, tinha já pretensões literárias. Estava escrevendo seu primeiro romance.
Não sei se o romance a que ele se refere nas cartas é o primeiro que publicou, Memória de Elefante. O que se sabe é que Memória de Elefante foi seu primeiro livro publicado., em 1979 A partir daí, não parou mais: até 2018, lançou nada menos de 37 livros. D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra – no qual o filme se baseia – saiu em 2005.
O filme foi o escolhido por Portugal para representar o país na corrida ao Oscar, mas não chegou a ser indicado. Foi apresentado na competição no Festival de Berlim. Em festivais mundo afora, ganhou 29 prêmios, fora outras 23 indicações.
É uma maravilha de filme – mas, definitivamente, não é para qualquer tipo de público.
Anotação em outubro de 2018
Cartas da Guerra
De Ivo M. Ferreira, Portugal, 2016
Com Miguel Nunes (António), Margarida Vila-Nova (Maria José)
e Ricardo Pereira (o Major), João Pedro Vaz (o Capitão), Simão Cayatte (Alferes Eleutério), Isac Graça (Cabo Hilário), Francisco Hestnes (Cabo Carica), João Pedro Mamede (Alferes Professor), Tiago Aldeia (Alferes Ferreira), Orlando Sérgio (Catolo), David Caracol (Soba de Chiúme), Miguel Raposo (Enfermeiro Gago Coutinho), Gonçalo Carvalho (Cabo Projeccionista), Raúl Rosário (Operador em Chiúme), Cândido Ferreira (Fontes)
Roteiro Ivo M. Ferreira e Edgar Medina
Baseado no livro D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra, de António Lobo Antunes
Fotografia João Ribeiro
Montagem Sandro Aguilar
Produção Foley Walkers Studio, Instituto do Cinema e do Audiovisual, O Som e a Fúria, RTP, ZDF/Art. DVD Imovisión.
P&B, 109 min (1h49)
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