Vício Maldito, no original Le Désorde et la Nuit, de 1958, é um dos três filmes que reuniram Jean Gabin e Danielle Darrieux, dois monstros sagrados do cinema francês. E é um dos 14 – incrível: 14! – filmes que o grande ator fez com o diretor Gilles Grangier.
É um policial, um noir. Gabin faz um inspetor de polícia encarregado de investigar o assassinato de um dono de boate parisiense, que é também traficante de drogas e explora prostituição. Fica conhecendo a amante da vítima, uma jovem lindíssima (o papel da austríaca Nadja Tiller) – e, de repente, num estalo, é amor à primeira vista, policial e prostituta viciada se apaixonam perdidamente.
Não é um bom filme, de forma alguma, na minha opinião. Me pareceu uma absoluta porcaria.
Mas é noir, é Gabin, tem Danielle Darrieux, tem essa fantástica beleza de Nadja Tiller. Assim, a partir do filme, fui atrás de informações e fiquei conhecendo um pouco desse diretor de quem nunca tinha ouvido falar, mas tem produção vasta. Não teve o reconhecimento amplo da crítica, muito ao contrário, mas, aparentemente, está tendo agora defensores, que pedem uma reavaliação de sua obra.
Grangier era tido como diretor de filmes comerciais
Gilles Grangier nasceu em Paris em 1911, e morreu em 1996, pouco antes de fazer 85 anos. Começou a trabalhar com cinema ainda garoto, na área técnica, depois teve experiência como extra e dublê e como assistente de direção. Estreou na direção em 1943, e realizou cerca de 50 filmes – em metade deles, foi também um dos roteiristas.
Um dos profissionais que dividiram roteiros com ele foi Michel Audiard (1820-1985), crítico, jornalista e escritor prolífico, tido como um especialista na redação de diálogos. Os diálogos deste Vício Maldito são dele; o roteiro é assinado pelo diretor Grangier, Audiard e Jacques Robert, este último autor do livro em que o filme se baseia.
Os filmes de Gilles Grangier tinham muito sucesso popular – e muito certamente a pecha de “autor de filmes populares” é um dos motivos que explicam seu insucesso entre os críticos. Pelo jeito, os jovens cinéfilos e críticos dos Cahiers du Cinéma que se tornaram cineastas na época em Vício Maldito foi lançado, final dos anos 1950 – François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Jacques Rivette – menosprezavam Grangier. Ele era tido como diretor de filmes comerciais – um representante do cinema velho contra o qual aqueles jovens criaram a nova onda, a nouvelle vague
O grande estudioso e crítico Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, dedica pouquíssimas linhas a Grangier. Traz a relação de seus filmes – e a relação dos títulos dos filmes é umas cinco ou seis vezes maior que as linhas que falam do realizador e sua obra. Transcrevo:
“Alguns bons filmes policiais (Danger de Mort, Assassinato em Montmartre, Barragem do Vício, Um Cave) redimem a mediocridade do conjunto (A Velha Guarda, O Marido de Minha Mulher) de uma produção desprovida de toda e qualquer ambição, mas de sucessos comerciais.”
Uau! É de fato arrasador. (Os títulos em francês aí no verbete de Jean Tulard indicam que aqueles filmes não tiveram lançamento comercial no Brasil.)
O grande Tavernier defende a obra do diretor
O Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho também tem um verbete bem pequeno sobre Grangier – e a longa lista de seus filmes. Diz ele, ao final do texto: “Técnico competente sempre a serviço de um astro”.
É impressionante como de fato Gilles Grangier não teve reconhecimento da crítica. O ótimo livro The International Dictionary of Films and Filmakers – Directors, de Christopher Lyon, não traz verbete sobre ele. E o livro Le Cinéma Français 1960-1985, Éditions Atlas, também não fala dele.
No entanto, para acompanhar o filme em DVD, foi feito um documentário de cerca de 25 minutos, A Pérola do Film Noir, com diversas pessoas elogiando a obra de Grangier. Um de seus defensores ferrenhos é o grande Bertrand Tavernier. Diz Tavernier: “Gilles Grangier é um diretor que qualificamos de artesão – em tudo que essa palavra tem de nobre, e não de restritivo.”
Vício Maldito é um dos seis filmes da preciosa caixa Filme Noir Francês, que a Versátil lançou em 2018, com obras de Jacques Becker, Jean-Pierre Melville, Claude Sautet, Alain Corneau.
E o Guide des Films do próprio Jean Tulard faz uma avaliação positiva de Le Désordre et la Nuit: “O mundo das boates noturnas, da droga e das moças, como se você estivesse dentro dele, com Gabin ainda mais monolítico que de costume”.
Atenção: sinopse contém spoiler
Legal. Registrei aí informações, tentei colocar as coisas sob perspectiva, dentro do contexto. Agora, minha impressão sobre o filme propriamente dito… Meu Deus do céu e também da terra.
Toda a trama me pareceu frágil, mal engendrada, uma coisa que não se sustenta. Os personagens não são bem construídos – e muitas vezes a gente não consegue compreender as reações deles. Há diversas situações e eventos absolutamente implausíveis, incompreensíveis.
Transcrevo a sinopse do Guide des Films – em parte por preguiça de fazer eu mesmo a sinopse, em parte para dar a palavra a uma obra respeitável, muitíssimo mais objetiva do que eu seria. A sinopse, no entanto, contém spoiler. Se o eventual leitor tiver vontade de ver o filme, não deveria ler o parágrafo abaixo:
“No curso de uma investigação sobre a morte de um proprietário de clube noturno, o inspetor Vallois se apaixona por Lucky, a amiguinha desse indivíduo suspeito. Ela vai desmascarar a culpada pela morte, uma farmacêutica que fornece droga a Lucky e se ocupará da desintoxicação desta última.”
O inspetor Vallois – Jean Gabin, o principal ponto de venda do filme – demora a aparecer. A ação começa na boate que pertence a Albert Simoni (Roger Hanin). Um tipo desagradável, que parece mais o dono do lugar do que um gerente, Marquis (Robert Berri) anda entre as mesas, conversa com os clientes – e com as moças da casa, as moças que entretêm os fregueses.
Não é dito claramente, mas dá para perceber que ali funciona parte de uma rede de prostituição. As moças não são apenas taxi-girls – e têm algum tipo de ligação com o estabelecimento. O tal Marquis parece mandar nelas.
Há música ao vivo – e o pequeno conjunto de jazz é competente. A platéia aplaude bastante o baterista.
A mais bela de todas as moças, a que será a protagonista feminina da história, Lucky (e, diacho, como era linda essa Nadja Tiller!), dança com um careca chamado Blasco (Robert Manuel).
Adentra Albert Simoni, o proprietário do local. De cara dá uma bronca em Marquis. Blasco chega perto, começa a conversar com ele sobre quando chegará o próximo carregamento de chá; Simoni diz que está providenciando.
Boate com prostituição e venda de droga.
A essa altura, entre 5 e 10 minutos de filme, Mary não se conteve e comentou que estava tudo falso.
Verdade: tudo falso. Nada natural, nada que roçasse algum tipo de realidade, de verossimilhança. Tudo falso, mal encenado, grotescamente ruim.
Está só começando: vai piorar a cada minuto.
Tudo falso, tudo mal encenado, trôpego
Simoni recebe um telefonema, diz que vai dar uma saída. Lucky – que estava muito bêbada – se oferece para ir junto. Vão de carro até o Bois de Boulogne, que, de noitão, dá a sensação de que se está perdido no meio de uma floresta gigantesca. Simoni sai do carro, fica de pé no meio das árvores, como se à espera de alguém. Lucky está sentada no banco de carona, e agora parece absolutamente sóbria.
Tiros. Simoni cai no chão.
Lucky, que na sequência anterior estava trêbada, e agora está alerta que nem escoteiro, pega o carro e foge do local do crime.
No dia seguinte, o inspetor Vallois vai à boate, tem uma conversa com Marquis, que em seguida apresenta ao policial a amante da vítima.
A puta drogada e o policial.
Lucky, naquela mesma noite, quer porque quer dar para o policial que tem bem mais que o dobro da idade dela.
Quando saem, os dois, da boate, e vão caminhando pelas ruas de Paris à noite, era para apertar o botão de stop: os dois caminham bem devagarinho. Como se não estivessem indo a lugar algum. Como… como… como dois atores em um filme horroroso, um abacaxi azedo: nunca, em lugar algum do mundo, nenhum casal andou tão devagarinho quanto o policial e a puta drogada do filme de Gilles Grangier.
Aquela sequência, só aquela sequência do grande Gabin e da belíssima Nadja Tiller dando passinhos miúdos, devagarinho, devagarinho, já demonstra que para ser considerado ruim o filme teria que melhorar muito.
Não apertei a tecla stop porque sou louco – e afinal de contas tenho um site de filmes.
Sim, é corajoso falar de vício em 1958
Alguém poderia dizer, em defesa de Gilles Grangier, que Le Désordre et la Nuit ao menos foi um filme corajoso ao abordar a questão da dependência de drogas em 1958.
Sim, é preciso reconhecer isso.
Em 1955, o cinema americano – que, em termos de comportamento, costumes, ousadia, coragem, sempre esteve bem atrás do europeu de uma maneira geral e do francês em particular – já havia abordado o tema, em O Homem do Braço de Ouro, de Otto Preminger, um diretor sempre disposto a enfrentar temas polêmicos. Frank Sinatra fazia o papel de um músico de jazz viciado em drogas químicas; não se fala o nome da droga, mas fica um tanto implícito que é heroína, a droga que era usada por muitos músicos de jazz na época.
Mas tudo bem, é importante que um filme francês com grandes astros, Gabin e Danielle Darrieux, abordasse o tema, chamasse atenção para o tema.
Mas poderiam ter abordado de uma forma melhor. É muito inverossímil a forma com que a moça Lucky entra e sai do transe provocado pela droga, como ela definha e em seguida se liga. Bem, eu, pelo menos, achei bastante inverossímil tudo aquilo. E não me pareceu ter muito sentido falar de vício em morfina – muitíssimo menos comum, na época como também hoje, do que o vício em cocaína, heroína. Bom, posso estar completamente errado quanto a isso: entendo muito pouco dessas drogas.
Entendo um pouco de droga cinematográfica. O caso exato deste filme aqui.
E, já que estou com a mão na droga… Vamos lá. Gostaria ainda de registrar duas características do filme.
Um perfeito clichê do cinema sobre as francesas
Gilles Grangier parece ter tido um cuidado especial em mostrar números musicais, no pequeno palco da boate L’Oeuf do filme. A primeira tomada é do baterista, a primeira sequência é a pequena banda tocando um jazz suingado. Apresenta-se na boate uma ótima cantora de jazz, Valentine. Ela é interpretada por Hazel Scott (1920-1981, na foto acima), uma figura fascinante, nascida em Trinidad e Tobago, no Caribe, cantora erudita e de jazz, pianista, atriz – trabalhou em nove filmes, em vários deles fazendo papel dela própria.
A personagem Valentine mostra bem algumas das inconsistências do filme. Ela é amiga de Lucky, incentiva Lucky a cantar – e, numa determinada noite, o inspetor Vallois vai à casa de Valentine, para ouvir a apresentação da mocinha. É uma casa fabulosa, gigantesca, riquíssima. Há ali bem mais de uma dúzia de convidados, e rola uma bela festa, bebida a rodo. É absolutamente inexplicável como uma cantora de boate poderia ser tão rica, ter aquela aquela casa. E também é absolutamente inexplicável que, uma hora lá, de repente, todos aqueles caras que estavam ali enchendo a cara e ouvindo música sem pagar nada resolvem… ir para a boate L’Oeuf, onde, já havia sido dito, os preços eram exorbitantes!
Mas não era sobre a falta de verossimilhança que eu queria falar.
Gostaria de registrar o fato de que o filme apresenta diversos, diversos artistas negros que se apresentam na boate do tal Simoni.
E essa, na minha opinião, é uma qualidade do filme. Não era muito comum filmes dos anos 50 mostrarem tantos personagens negros na França, em Paris.
E, finalmente, gostaria de registrar um monólogo da personagem interpretada por Danielle Darrieux. O que ela diz me parece a essência da forma com que muitos realizadores franceses tratam as mulheres – nas várias gerações. Posso estar enganado, mas Claude Chabrol – que veio na geração da nouvelle vague, a que falava mal dos filmes dos diretores anteriores, como Claude Autant-Lara e Gilles Granjier – demonstrou em seus filmes essa mesma visão das mulheres demonstrada na fala da personagem de Danielle Darrieux. O que diz a Thérèse de Danielle Darrieux para o inspetor Vallois de Jean Gabin poderia perfeitamente ser dito em filmes como A Mulher Infiel (1968):
– “Você deve saber que amor e paixão são tão diferentes quanto o dia e a noite. Eu odiava aquele homem. Eu o desprezava. Mas não conseguia viver sem ele. (…) Ele era malvado, ganancioso e estúpido. Meu marido me fez feliz deurante anos; Simoni me deixou maluca desde o primeiro dia. Durante dez anos, fui uma mulher comum. Amorosa, fiel. Creio que Simoni se sentiu atraído pela minha fidelidade. As boas burguesas são as melhores vagabundas. Qualquer sedutor sabe disso.”
Anotação em setembro de 2018
Vício Maldito/Le Désordre et la Nuit
De Gilles Grangier, França, 1958
Com Jean Gabin (inspetor Georges Vallois)
e Nadja Tiller (Lucky Fridel), Danielle Darrieux (Thérèse Marken), Paul Frankeur (inspetor Chaville), Hazel Scott (Valentine Horse, a cantora), Robert Manuel (Blasco), Robert Berri (Marquis), François Chaumette (comissário Janin), Louis Ducreux (Henri Marken), Roger Hanin (Albert Simoni)
Roteiro Michel Audiard, Gilles Grangier e Jacques Robert
Baseado na novela de Jacques Robert
Fotografia Louis Page
Música Jean Yatove
Montagem Jacqueline Sadoul
Produção Lucien Viard, Orex, Les Films Corona.
P&B, 93 min (1h33)
1/2
Título em inglês: Night Affair. Na Itália: Il Vizio e la Notte.
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