O Violonista/The Violin Player, produção indiana de 2016, tem apenas 72 minutos, de 10 a 20 minutos menos que a imensa maioria dos longa-metragens de hoje em dia, e essa característica tem grande importância. No entanto, as primeiras sequências do filme são longas, bem longas – e nelas acontecem poucas coisas. Nada, ou quase nada de importante, na verdade.
Na primeira sequência, a câmara está fixa em um tripé, na cozinha de um apartamento pequeno, pobre. Não é dito expressamente hora alguma, mas o apartamento fica numa periferia de Mumbai, ex-Bombaim, a cidade mais populosa da Índia, centro de uma região metropolitana com mais de 21 milhões de habitantes. Centro, também, da mais prolífica indústria de cinema do mundo, Bollywood, que bate de longe o número de produções a cada ano daquele outro lugar de nome parecido.
Diante da câmara parada, imóvel, um homem lê o jornal. Mais atrás, uma mulher se movimenta pela cozinha, faz perguntas ao homem, que responde apenas por monossílabos ou frases bem curtas.
O homem é o violinista do título, o personagem central da história. Não ficaremos sabendo seu nome – não ficaremos sabendo o nome de qualquer um dos poucos personagens da história. Ele é interpretado por Ritwick Chakraborty, jovem ator de Bengala Ocidental, mais de 40 filmes no currículo.
O espectador não vê o rosto da mulher – e esse detalhe é importantíssimo, embora, é claro, quem vê o filme não possa ter idéia disso naquele momento.
Quando o protagonista mergulha em pensamentos, a tela fica toda negra
Ela pergunta se ele não vai trabalhar, ele diz que só precisa sair ao meio-dia. Ela pergunta se ele tem dinheiro, porque sempre que passa perto de fulano de tal ele cobra o que o casal está devendo. Precisa de 720. Ele diz que só tem 250.
Ela sai para o trabalho.
Em algum momento dessa primeira longa sequência, há um fade out, a imagem desaparece, a tela fica toda negra durante um bom tempo, talvez um minuto inteiro. Um minuto de tela toda negra é um tempo bastante longo – ainda mais num filme que só dura 72 minutos.
Esse blecaute irá se repetir algumas vezes, ao longo de The Violin Player. É uma bossa, um criativol, um punhado de fogos de artifício. Diretores jovens, ou muito pretensiosos, adoram encher seus filmes de bossas, criativóis, fogos de artifício. O espectador mais experiente perceberá bem rapidamente que o diretor, Bauddhayan Mukherji, ele também o autor da história e do roteiro, é sem dúvida alguma muito pretensioso. É jovem, também: nasceu em 1973. Se fizer uma pesquisinha após ver o filme, o espectador ficará sabendo que Bauddhayan Mukherji foi um dos mais respeitados diretores de filmes publicitários da Índia. Este The Violin Player foi seu segundo longa-metagem…
O blecaute, a tela toda negra, acontece quando o violinista fecha os olhos, mergulha em pensamentos – ou sons, melodias, acordes que lhe vêm à cabeça.
É tudo maravilhosamente bem feito, em termos de técnica
Depois que a mulher sai para o trabalho, o violinista cuida das tarefas domésticas. Lava a louça, lava a roupa, tarefas que não são nada fáceis num prédio de periferia de país superpopuloso e pobre que não tem água encanada.
Depois que executa as duras tarefas domésticas, ele vê uma barata na parede. Tenta matá-la mediante o arremesso da sandália, mas qualquer pessoa que já tentou matar uma barata sabe que a chance de acertar uma sandália no inseto é de uma em um milhão, e então a barata some.
É longa a sequência em que o violonista procura a barata. Levando-se em consideração que o filme tem apenas 72 minutos, é uma sequência extremamente longa.
A barata sai debaixo do lugar em que havia se escondido e pára no chão, desprotegida. O violonista bate a sandália no chão. E continua batendo duas, três, quatro, cinco, dez golpes de sandália no chão.
O violinista vai para o estúdio de gravação. Vai participar da gravação de uma peça executada por cerca de 25 violonistas. Em uníssono – 25 violinistas executando exatamente as mesmas notas.
O volume com que ouvimos os acordes dos 25 violinos é bem alto.
Mas o som é interrompido, desaparece, enquanto, em silêncio, vemos o título do filme sobre fundo negro.
Nova tomada dos 25 violinistas – o protagonista da história está na quarta fileira. Nova interrupção, para novo letreiro dos créditos iniciais.
Música bem alta – interrompe, novo letreiro com mais nomes de atores, do diretor, do designer de som.
Pensei: meu, que maravilhoso trabalho do designer de som!
É tudo extremamente bem feito, em termos técnicos. É tudo artesanalmente brilhante, como um filme publicitário em que cada pequena tomada é estudada e refeita durante semanas.
É de fato como se estivesse escrito na tela que o diretor Bauddhayan Mukherji veio da publicidade.
“Começa como um fraco adagio, mas termina num eletrizante vibrato.”
Quando o filme vai aí por 15 minutos, o violinista está numa estação de trem, à espera do seu, do que o levará para perto de casa. É uma estação de grande movimento (o que não é de grande movimento, num aglomerado urbano de 21 milhões de pessoas?), com diversas linhas diferentes de trem (uma das boas heranças dos colonizadores ingleses).
Do outro lado das linhas de trem, na plataforma em frente àquela em que está o violinista, há um homem que olha fixamente para ele. Usa óculos, calça social preta, camisa de mangas curtas branca, bem limpa, bem passada. Parece um homem de algumas posses.
O estranho é interpretado por Adil Hussain (na foto abaixo), um dos principais atores do cinema indiano hoje, mais de 50 títulos na filmografia; já trabalhou no teatro, na televisão, no rádio.
The Violin Player é um filme bem curto, repito mais uma vez – mas as coisas acontecem bem lentamente. Leva 5 minutos para que o estranho se aproxime do violinista e faça uma proposta de trabalho a ele: – “Pode tocar para mim?”
Os fatos principais da história só vão acontecer depois dos 45 minutos de projeção do filme. Quando faltam apenas 27 minutos para o fim.
Não teria sentido algum relatar mais nada da trama – seria um absurdo spoiler.
Mas o fato é que poucas vezes vi uma definição tão perfeita de um filme quanto a que o tradicional The Hollywood Reporter fez deste filme do indiano Bauddhayan Mukherji. Tão curta, tão eloquente – e tão perfeita.
“Começa como um fraco adágio, mas termina num eletrizante vibrato.”
Meu, que maravilha, que inteligência!
“Começa como um fraco adagio, mas termina num eletrizante vibrato.”
O diretor a princípio pensou em contar sua história em um curta-metragem
The Violin Player pode ser um interessante material de estudo por profissionais ligados à criação na literatura e no cinema.
Oferece muitos elementos para a discussão sobre o que é um conto, o que é um romance. O que é um curta-metragem, o que é um longa-metragem.
O primeiro longa-metragem do diretor Bauddhayan Mukherji – após as dezenas e dezenas de curtíssimos filmes publicitários que fez na carreira elogiada – chamou-se Teenkahon (2014), Three Obsessions no mercado americano, e tinha 124 minutos. Mas, nestes 124 minutos, contava três histórias diferentes, três episódios.
The Violin Player foi pensado como um curta-metragem. O plano do diretor e de sua produtora e, ao que tudo indica, também sua mulher, Monalisa Mukherji, era fazer um curta-metragem.
Ele mudou de idéia depois de uma conversa com o grande realizador iraniano Mohsen Makhmalbaf – e relata como foi no site oficial do filme . Em novembro de 2014, ele foi a Goa participar do Festival Internacional do Filme da Índia, em que era apresentado seu filme Three Obsessions no Panorama Indiano. Makhmalbaf era o convidado especial do festival naquele ano, e seu filme O Presidente – realizado na Geórgia – foi o escolhido para a abertura.
Por uma golpe de sorte, conta o indiano, os dois ficaram no mesmo hotel, e encontraram-se um dia no café da manhã. “Nos anos iniciais, Makhmalbaf tinha feito filmes mais longos. Gradualmente, enquanto ele ia ficando mais velho, o comprimento de seus filmes foi diminuindo para alguma coisa entre 70 e 75 minutos. Perguntei a ele a razão. Sua resposta foi simples. Dê à história o tempo de que ela precisa. E assim, em uma pincelada, nasceu The Violin Player longa-metragem.”
E mais adiante o realizador explica:
“Na Índia, não acreditamos em filmes de 70 minutos de duração. ‘Você não vai conseguir lançar o filme’, me afirmaram categoricamente. Eu decidi ignorar o que diziam as pessoas do meio. The Violin Player chegaria com a duração que fosse necessária. Vamos em frente, vamos fazer o filme sem preocupar com o tamanho, o lançamento e a indústria.”
O diretor oferece dois finais para a sua história. O espectador pode escolher
Como já disse, não vou, é óbvio, relatar o que rola nos 27 minutos finais do filme, quando ele deixa de ser um fraco adágio para se tornar um eletrizante vibrato. Mas não chega a ser spoiler registrar que Bauddhayan Mukherji resolveu oferecer aos espectadores de seu primeiro longa-metragem de uma história só não um final – mas dois.
Depois que se torna o eletrizante vibrato, a peça de câmara composta pelo diretor oferece um final. E em seguida um outro, completamente diferente.
O distinto público pode escolher qual prefere.
Aqui de minha parte, devo dizer que achei sensacional a sequência em que o violinista, depois de perguntar se o estranho quer uma música oriental ou ocidental, e ouvir que a preferência é por uma ocidental, se põe a imaginar que peça irá executar – e aí então ouvimos alguns acordes de melodias criadas por Beethoven, Brahms, Vivaldi, Tchaikovski,
Assim como achei belíssima a melodia que o violonista acaba criando ali na hora, no clímax da história – melodia escrita pelos músicos Arnab Chakraborty e Bhaskar Dutta e executada por este último.
De resto, entre uma canção de 4 minutos e aquela mesma canção sampleada por um DJ, incrementada, energizada por outros sons, para atingir aí uns 8, 10 minutos na pista de dança, eu, quieto aqui no meu cantinho, prefiro a versão original, curtinha, perfeita.
The Violin Player seguramente daria um curta-metragem de uns 30, 35 minutos extraordinário, belíssimo, maravilhoso, obra-prima.
Anotação em janeiro de 2018
O Violinista/The Violin Player
De Bauddhayan Mukherji, Índia, 2016
Com Ritwick Chakraborty (o violinista), Adil Hussain (o estranho), Nayani Dixit (a atriz), Sonam Stobgais (o ator), Jayant Gadekar (o vendedor de jornal),
Argumento e roteiro Bauddhayan Mukherji
Fotografia Avik Mukhopadhyay
Música Arnab Chakraborty e Bhaskar Dutta
Montagem Arghakamal Mitra
Casting Sambhav Daffu
Produção Kedhhar Barrve, Monalisa Mukherji, Little Lamb Films.
Cor, 72 min (1h12)
**1/2