Margareth von Trotta pertence àquele grupo de realizadores que têm uma espécie de marca registrada, que abordam basicamente os mesmos temas em diversos de seus filmes, e assim compõem uma obra coesa, coerente, harmônica.
Seus filmes em geral tratam das relações entre mulheres – mulheres fortes, de grande personalidade. “As complexidades dos vínculos femininos”, “os laços femininos, com uma sensibilidade política distintamente feminina”, como sintetiza o livro 501 Movie Directors.
O Mundo Fora do Lugar, de 2015, que a diretora alemã escreveu e dirigiu, é mais um dessa linhagem. As personagens centrais são duas mulheres fortes, de grande personalidade, interpretadas por duas atrizes magníficas, Katja Riemann e Barbara Sukowa. (Na foto logo abaixo, feita para a publicidade do filme, Katja está à esquerda e Barbara à direita. A segunda foto é de cena do filme.)
Barbara Sukowa, de 1950, faz já décadas que é um mito, uma gigante, desde seus trabalhos com Rainer Werner Fassbinder e a própria Margareth von Trotta nos anos 80. Katja Riemann, um tanto mais nova, de 1963, também tem bela carreira, atua e canta maravilhosamente – e parece incansável. Entre 2014 e 2015, fez nada menos que 10 filmes
Este O Mundo Fora do Lugar é um drama familiar, sobre pessoas que guardaram muitos esqueletos no armário, que esconderam grandes segredos. A realizadora montou o roteiro de tal forma que às vezes parece que estamos – nós, espectadores, assim como os personagens – num labirinto: parece que ali se abre uma porta, para em seguida se ter a sensação de que se avançou até um beco sem saída. A cada nova revelação, surgem novas dúvidas. Volta e meia esbarra-se em equívocos.
Uma mulher que não encontrou estabilidade, e uma mulher que não fala do passado
Katja Riemann faz o papel central; é Sophie, uma mulher que, já na meia-idade, não encontrou ainda estabilidade nem afetiva nem profissional. Seus namoros, como ela mesma diz a certa altura, nunca duram mais que dois anos; e seus empregos como cantora da noite, em bares, hotéis, também não resistem muito tempo. Para garantir o sustento, Sophie celebra casamentos em cerimônias não oficiais, alternativas, num esquema assim meio bicho-grilo.
Sophie vive – o espectador com o tempo verá – em Düsseldorf, a bela cidade às margens do Rio Reno, a terra de M, o assassino de crianças do clássico de Fritz Lang de 1931. Não é uma informação sem importância, esta: Düsseldorf é a cidade em que foi criada Margarethe von Trotta, nascida em Berlim em 1942, bem no meio na Segunda Guerra Mundial.
Barbara Sukowa interpreta Caterina, uma cantora lírica de grande fama, que vive em Nova York. Tem dinheiro, sucesso, um relacionamento amigável com o ex-marido, um ator que anda bebendo demais, um filho adolescente que não parece aborrescente. Apesar de ter tantos alicerces firmes, Caterina jamais admite falar de seu passado.
E o passado dos personagens, a procura por desvendar os segredos do passado, é que formam a espinha dorsal da história.
O pai de Sophie vê na internet foto de uma mulher idêntica à falecida esposa
Quem dá início a essa procura pelo que o passado esconde é Paul Kromberger (Matthias Habich, na foto abaixo), o pai de Sophie. Paul vive numa bela casa numa área um tanto distante da cidade, no meio do campo; um ano depois da morte de sua mulher, Evelyn, ele ainda a vê em sonhos recorrentes. E, de repente, fortuitamente, por acaso, vê, na internet, uma notícia sobre uma cantora lírica americana. A cantora da foto – Caterina Fabiani – é absolutamente idêntica a Evelyn. Absolutamente idêntica.
Paul pede a ajuda da filha Sophie. Suplica a ela que viaje a Nova York, converse com aquela mulher, descubra que laço pode uni-la à falecida Evelyn. A rigor, Paul quer – muitas vezes as pessoas querem coisas impossíveis – que Sophie convença Caterina a viajar à Alemanha, para que os dois se conheçam.
Sophie sabe que é loucura, que não tem qualquer lógica, sentido, razão – mas o pai, já velho, frágil, está tão abalado com a descoberta de uma sósia absolutamente perfeita da mulher morta, tão ansioso, que ela acaba atendendo aos pedidos dele, e embarca para Nova York. Ajuda na decisão, também, o fato de que Sophie havia acabado de perder o emprego de cantora num bar de hotel, e também o namorado que vivia em sua casa, que resolve de repente abandoná-la.
A demissão dela daquele emprego é a terceira sequência do filme.
Na primeira sequência, vemos um carro que anda numa estrada secundária em área de campo de país desenvolvido – a paisagem é linda, tudo é limpo, tudo parece perfeitamente organizado, e lá atrás há a torre de uma usina nuclear. No banco de trás do carro, há um maço de flores. Propositadamente, a câmara não mostra o rosto do motorista.
Corta, e vemos uma bela mulher – Sophie – entrevistando um jovem casal que se candidata a participar de uma cerimônia de casamento alternativa.
Uma sequência impressionante, forte, que mostra muito da personalidade de Sophie
O que é, o que significa aquela primeira sequência – um carro numa estrada no interior, um buquê de flores no banco de trás – é uma pecinha do quebra-cabeças que Margareth von Trotta expõe para o espectador. Só vamos encontrar o lugar em que aquela pecinha se encaixa bem perto do final do filme.
Essa segunda seqüência, um tanto longa, é de deixar o espectador intrigado. Talvez aquele tipo de coisa seja comum na Alemanha, em alguns lugares da Alemanha, não sei, mas eu fiquei intrigado: por que uma pessoa faz tantas perguntas a um casal, diacho? Perguntas um tanto invasivas. O que seria aquilo? Uma exigente denominação religiosa? Algum órgão estatal?
Nada – é apenas um tipo de cerimônia que Sophie realiza, mesmo não sendo juiz de paz, nem ministra ou sacerdotisa de qualquer igreja.
E então, depois dessa sequência de interrogatório do jovem casal, corta, e vemos Sophie cantando num amplo, moderno, belo bar. É acompanhada apenas por um jovem guitarrista. Canta, com uma voz fascinante, grave, forte, uma canção com letra – em inglês – nada convencional, forte, dura. Algo entre um rock, uma balada folk e uma canção típica de cabaré alemão, que poderia talvez estar no repertório de Ute Lemper, com letra não muito distante de Dylan ou Cohen.
Me permito me alongar um tanto aqui porque a sequência é muito bela, e revela bastante sobre a personagem central do filme. Sophie cantando se mostra uma mulher moderna, forte, anticonvencional, independente.
A canção se chama “Sandrevan Lullaby”, de Sixto Rodriguez, de quem eu jamais tinha ouvido falar. Começa assim:
The generals hate holidays / Others shoot up to chase the sun blues away / Another store front church is open / Sea of neon lights, a boxer his shadow fights / Soldier tired and sailor broken / Winter’s asleep at my window / Cold wind waits at my door / She asks me up to her place / But I won’t be down anymore.”
Generais odeiam feriados, outros atiram para espantar a tristeza, outra porta de loja de igreja está aberta, mar de luzes neon, um pugilista luta contra sua sombra, soldado cansado e marinheiro quebrado, o inverno adormecido na minha janela, o vento frio espera na minha porta, ela me convida para ir à casa dela, mas eu não vou lá mais.
Sophie-Katja Riemann está absolutamente envolvida pela canção forte que está cantando, o espectador muito provavelmente está intrigado, surpreso ou no mínimo impressionado com a música e a voz da atriz-cantora, quando de repente um sujeito chega e, falando com voz alta, diz a ela que ela está demitida.
É de uma brutalidade, uma agressividade incrível, apavorante.
Sophie está na rua, ainda completamente zonza após levar esse absurdo choque, quando o pai liga para o celular dela e pede sua ajuda para descobrir quem é aquela mulher idêntica à mãe dela.
Um belo filme, que merece ser visto, mas não teve sucesso, parece
E não tem sentido avançar mais do que isso no relato da trama de O Mundo Fora do Lugar. Virá o que já foi dito – muitos segredos que haviam sido guardados no armário, um labirinto em que personagens e espectadores se sentem bastante perdidos, até as revelações de tudo ao final.
É um quebra-cabeça intrigante, trágico, muito doído.
Todo o elenco está germanicamente perfeito, mas essas duas atrizes fenomenais é claro que se destacam. Uau. Dá vontade de sair à procura dos outros filmes de Katja Riemann e de Barbara Sukowa.
Devo confessar que eu mesmo me espantei em ver que Katja Riemann já está em dois filmes deste 50 Anos de Filmes: O Fim de Semana (2012), belo, denso, perturbador drama familiar com ecos do terrorismo de extrema esquerda que assolou a Alemanha nos anos 70 e 80, e Uma Outra Mulher (2006), também de Margareth von Trotta, que na época em que vi achei extremamente doentio.
Apesar da importância tanto da diretora quanto das duas atrizes principais, este O Mundo Fora do Lugar parece não ter feito grande sucesso – nem digo sucesso comercial, porque não seria mesmo o caso – no circuito dos festivais. O filme participou do Festival de Berlim, mas não levou prèmios, e também do Festival Internacional de Valladolid, na Espanha – apenas. Sequer consta dos excelentes sites AllMovie e AlloCiné.
Uma pena, porque é um bom filme, que merece ser visto.
Anotação em agosto de 2017
O Mundo Fora do Lugar/Die Abhandene Welt
De Margarethe von Trotta, Alemanha, 2015
Com Katja Riemann (Sophie), Barbara Sukowa (Caterina Fabiani / Evelyn Kromberger)
e Matthias Habich (Paul Kromberger), Robert Seeliger (Philip), Gunnar Möller (Ralf Kromberger), Karin Dor (Rosa), August Zirner (Georg), Tom Beck (Florian), Arne Jansen (Piet), Rüdiger Vogler (Sergej Orlov, o velho bailarino)
Argumento e roteiro Margareth von Trotta
Fotografia Axel Block
Música Sven Rossenbach e Florian van Volxem
Montagem Bettino Böhler
Produção Tele München, Clasart Film und Fernsehproduktion, Schenk Productions
Cor, 101 min (1h41)
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Título em inglês: The Misplaced World. Na Espanha: El Mundo Abandonado.
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