O Conto/The Tale, produção americana de 2018, é um filme extremamente pessoal e corajoso.
O cinema – aí incluídos os filmes feitos para a TV, como este aqui – é a arte mais estruturalmente coletiva que há. É uma criação de um grupo grande de pessoas – uma indústria. Assim, merecem respeito as obras que são pessoais, que expressam pontos de vista, sentimentos, sensações de uma pessoa, de um criador, já que o diretor, o realizador, é apenas um dos muito profissionais envolvidos na feitura de um filme. É o maestro – mas quem toca é toda a orquestra.
The Tale é extremamente pessoal. Conta episódios reais da vida de Jennifer Fox, a autora do roteiro e diretora do filme. Não há qualquer tentativa de disfarçar isso. Muito ao contrário. A personagem que Laura Dern interpreta – e interpreta muito bem – se chama Jennifer Fox. Vemos que ela é uma pessoa ligada ao cinema – é uma documentarista, e dá aula em uma faculdade sobre como fazer documentários.
Já de cara, logo após os nomes das empresas produtoras, antes que surja na tela a primeira tomada do filme, a voz de Laura Dern nos avisa: – “A história que você vai ver é real”. E, depois de uma rápida pausa: – “Até onde eu sei”.
Ao final dos 114 minutos de filme, nos créditos de encerramento, os letreiros especificam:
“Baseado em ‘O Conto’, escrito por Jennifer Fox aos 13 anos.”
“A diretora gostaria de agradecer à sua mãe, Geraldine Dietz Fox, por encorajá-la a contar ‘O Conto’, e por ter se tornado uma parceira na jornada.”
“Elementos identificáveis – personagens, lugares e eventos – foram mudados no filme. Todas as cenas mostrando sexualidade com menor de idade foram filmadas com um dublê adulto.”
A rigor, qualquer coisa que se diga sobre a trama é spoiler
É um filme extremamente pessoal, repito – e também extremamente corajoso. Conta episódios reais bastante íntimos da vida da diretora.
Por isso, entendo que devo avisar ao eventual leitor que ainda não viu o filme que seria melhor não continuar lendo este texto. Porque relatar – ainda que bem pouco, de forma concisa – o conteúdo da história real, de que tratam os episódios mostrados, é, a rigor, spoiler.
Não que o filme esconda do que se trata. Não, não esconde. Há uma frase, bem no início da narrativa, que já dá uma indicação do que virá. Mas o roteiro escrito pela própria Jennifer Fox, sua autobiografia, só vai abrir mesmo o assunto, escancarar de que se trata, quando o filme já se aproxima ali da metade.
Fica então o aviso, que repito: quem não viu o filme ainda não deveria continuar lendo este texto.
Quem não viu o filme ainda não deveria ler o que vai abaixo
Ao longo de todo o filme, a autora e realizadora Jennifer Fox mistura fatos do presente, os dias de hoje, os dias que a protagonista da história – ela mesma – está vivendo, aos 39 anos de idade, com fatos do passado, de quando ela estava com 13 anos.
É o que eu chamo de narrativa pingue-pongue – vai e volta, vai e volta, vai e volta, vai e volta.
Todos os principais personagens são, portanto, interpretados por dois atores – uma para os eventos do passado, um quarto de século atrás, outra para os eventos do tempo atual.
A Jennifer Fox adolescente de 13 anos é interpretada pela canadense Isabelle Nélisse. A mãe de Jennifer, Nettie, no presente é interpretada pela grande, maravilhosa Ellen Burstyn, e, 26 anos antes, por Laura Allen.
Mrs. G., uma personagem importantíssima da história, é interpretada por Elizabeth Debicki no passado, e por Frances Conroy no presente. Bill, outro personagem fundamental, por Jason Ritter no passado e por John Heard no presente.
Além de exagerar nas idas e vindas no tempo, no vai e volta, vai e volta, vai e volta, o roteiro às vezes coloca a Jeniffer Fox madura conversando com os personagens como eles eram no passado. E até mesmo com ela própria no passado.
É algo que lembra o que Ingmar Bergman usou, magistralmente, em Morangos Silvestres (1957), e que Woody Allen copiou algumas vezes, além de outros diretores. O protagonista da história mostrado como ele é nos dias de hoje olhando cenas do passado, às vezes até interagindo com as pessoas do passado.
Jennifer Fox usa bem esse recurso narrativo – mas ele chega a incomodar um pouco. Em especial na primeira metade do filme, antes de ela abrir o jogo, escancarar as partes mais íntimas de sua própria história.
Reler o texto que escreveu aos 13 anos muda a vida de Jennifer
O filme abre com Jennifer Fox em ação, filmando uma manifestação de mulheres em um país miserável do Terceiro Mundo. Quando volta para casa, vê – ainda no táxi que a leva do aeroporto – que a mãe deixou várias mensagens em sua caixa postal.
Jennifer está morando com o namorado já faz alguns anos; ele também é da área do cinema documental – chama-se Martin, e é interpretado por Common, um rapper que, parece, é bastante conhecido nos Estados Unidos, e também como ator (tem cerca de 60 títulos na filmografia). Ainda não falam, no entanto, em casamento de papel passado.
No meio de uma sequência que mostra uma trepada de Jennifer e Martin, surge uma imagem de uma jovem de biquíni. O espectador não sabe ainda quem é – é a tal Mrs. G., que aparecerá na história daí a pouco.
No pós-trepada – estamos com apenas 6 minutos de filme –, Jennifer parece absorta em pensamentos, e Martin pergunta onde ela está.
– “Estava pensando na minha mãe”, responde ela. “Ela tem me ligado. Ela leu uma história que eu escrevi quando era criança, sobre meu primeiro namorado. Eu não tinha contado para ela; ele era mais velho. E ela está doida para falar comigo.”
O pai de Jennifer era um bem sucedido empreendedor da construção civil. Quando Jennifer estava aí com 12, chegando aos 13 anos, ganhou de presente um cavalo. Os pais a colocaram para aprender equitação com uma inglesa que morava numa fazenda próxima da cidade deles (que nunca é identificada), a Mrs. G.
Mrs. G. era ótima professora de equitação, era estrangeira, tinha sotaque diferente, era linda – e a jovem Jennifer ficou fascinada com ela.
Mrs. G. a apresentou Billy, um jovem bonito, simpático, atleta, treinador de jovens em corrida, ginástica. Mrs. G e Billy demonstraram para Jennifer que, para aprender a cavalgar direito, seria bom ela treinar corrida – e assim a garota ganhou dois instrutores, uma de equitação, um de corrida.
Os dois adultos a tratavam excepcionalmente bem. Nas férias da garota, conviviam diariamente. Nos períodos letivos, viam-se todos os fins de semana.
Foi sobre a amizade cada vez mais íntima como Mrs. G . e com Bill que Jennifer escreveu uma história para a escola, à qual deu o título de “O Conto”. Vinte e seis anos mais tarde, Nettie, a mãe dela, descobriu o manuscrito, leu, ficou impressionadíssima, chocadíssima – e passou a dar diversos telefonemas para a filha. Queria conversar com ela sobre aqueles acontecimentos do passado já distante.
Pelo que dá para perceber, pelo que o filme mostra, Jennifer passara anos sem ficar pensando naqueles fatos do passado. Não tinha sido um trauma. Ao menos foi essa a sensação que eu tive ao ver o filme, e foi a mesma de Mary. Foi só a partir do momento em que Jennifer releu “O Conto”, enviado pela mãe, que ela passou a ficar absolutamente perturbada pelas lembranças que havia de alguma maneira esquecido, talvez soterrado no fundo da memória.
Não há muitas informações na internet sobre a diretora
O IMDb não traz muitas informações sobre Jennifer Fox. Ao contrário: no espaço que deveria ter a biografia, traz apenas duas linhas. “Jennifer Fox é uma produtora e diretora de fortografia, conhecida por The Tale (2018), Beirut: The Last Home Movie (1987) e My Reincarnation (2011)”.
Como produtora, ela tem 18 filmes no currículo – e vários são documentários. Como diretora, já fez cinco documentários. Este The Tale é seu primeiro filme… Eu iria dizer “de ficção”, mas não é um filme de ficção, é uma história real. Seu primeiro filme não documentário, então.
A Wikipedia não é muito mais farta em informações. Jennifer nasceu em 1959, em uma família de cinco filhos, e cresceu na região da Filadélfia.
Possui sua própria produtora, a Zohe Film Productions, e ganhou o grande prêmio do júri em um festival de documentários por seu primeiro longa-metragem, Beirut: The Last Home Movie.
A enciclopédia virtual afirma: “Quando ela tinha 13 anos, foi vítima de estupro nas mãos de seu treinador de corrida”.
O termo estupro não me parece apropriado. O que a própria Jennifer Fox mostra em seu filme autobiográfico é que não houve propriamente um estupro, com uso de força, contra a vontade da adolescente. Houve abuso, é claro, houve crime, porque ela estava apenas com 13 anos, mas a relação era toda consentida por ela.
Essa é uma questão delicadíssima. Polêmica a não mais poder. Mas não me parece correto usar a palavra estupro para designar sexo consentido – mesmo que seja com adolescente, o que, repito, é abuso, é crime.
Mas não é estupro. Não houve um ataque, um assalto, não houve uso de força. Não foi um episódio – foi um relacionamento, que foi evoluindo, evoluindo, até finalmente haver penetração.
A própria Jennifer, quando o filme está com 6 minutos, se refere a Bill como “primeiro namorado”.
Um filme corajoso, que merece respeito
O excelente AllMovie não traz uma crítica sobre The Tale – apenas a seguinte sinopse:
“A escritora e diretora Jennifer Fox examina a natureza da memória, de agressão sexual e resiliência mental neste thriller psicológico. Uma jornalista e professora de sucesso (Laura Dern) é forçada a reexaminar suas lembranças da infância quando sua mãe descobre um conto que ela escreveu quatro décadas antes, que ilustra uma relação sexual com dois treinadores adultos quando ela tinha 13.”
No site rogerebert.com, que mantém a memória do grande crítico que morreu em 2013, o filme ganhou 3 estrelas em 4. Transcrevo o que diz ali Sheila O’Malley no começo de seu texto escrito em maio de 2018:
“’Você não pode me deixar ficar com minhas próprias memórias?’ Este pedido de Jennifer (Laura Dern) para sua mãe (Ellen Burstyn) é um momento chave em The Tale, um extraordinário e perturbador novo filme dirigido por Jennifer Fox, baseado em sua própria experiência de abuso infantil. É chave porque The Tale é, em muitas maneiras, sobre a memória, e a não confiabilidade e a característica escorregadia da memória. A memória pode encobrir o trauma em outra narrativa ‘melhor’, nos poupando até que estejamos prontos a lidar com ela. Joan Didion escreveu a frase que ficou famosa: ‘Nós nos contamos histórias a fim de viver’. (Jennifer repete essa frase em The Tale durante uma aula para seus estudantes.) As palavras de Didion são muitas vezes usadas como um papo furado de auto-ajuda tipo ‘todas as nossas histórias são importantes’, mas não é isso que Didion quis dizer. Contar histórias pode ser uma coisa saudável, ou pode ser algo sinistro. Todos querem que sua própria narrativa ‘faça sentido’. Mas nossa mente joga conosco, e o que era uma proteção para uma criança traumatizada pode começar a destruir o adulto. O que é surpreendente no filme de Fox (seu primeiro longa de narrativa, embora ela venha fazendo documentários há anos) é como ele mostra – visualmente – como a memória opera, como é lembrar de alguma coisa. Normalmente, em filmes como esse, você tem flashbacks desvendando o passado numa forma linear, e os flashbacks, pedaço por pedaço, nos trazem até o presente. Mas não é assim que a memória trabalha. É de um jeito muito, mas muito mais confuso.”
Bem mais adiante, Sheila O’Malley escreve:
“O filme é uma longa interrogação, não apenas do ponto de vista da personagem Jennifer mas também do ponto de visto da diretora. Os personagens olham diretamente para a câmara, paralisados, em tablôs estranhos, como que pegas por uma câmara, fotos aprisionadas em um álbum, não contando história alguma. O tempo se fecha em si mesmo, enquanto Jennifer se move através de seu próprio passado. Ela vê o mesmo evento de perspectivas diferentes, adicionando nuances à medida em que mais informações se tornam acessíveis a ela. Jennifer questiona a atual Mrs. G, mas também interroga a Mrs. G. mais jovem, ou o Bill mais jovem, ou até ela mesma quando mais jovem, à queima roupa. ‘Eu não sou a vítima nessa história, eu sou o herói.’”
Não me pareceu um grande filme, não. Mas tem sem dúvida algumas características fortes, importantes: é extremamente pessoal, e extremamente corajoso. É um filme que merece respeito.
Anotação em agosto de 2018
O Conto/The Tale
De Jennifer Fox, EUA-Alemanha, 2018
Com Laura Dern (Jennifer Fox), Isabelle Nélisse (Jennifer aos 13 anos)
e Jessica Sarah Flaum (Jennifer aos 15 anos), Elizabeth Debicki (Mrs. G jovem), Frances Conroy (Mrs. G mais velha), Jason Ritter (Bill jovem), John Heard (Bill mais velho), Ellen Burstyn (Nettie, a mãe, mais velha), Laura Allen (Nettie, a mãe, jovem), Common (Martin, o namorado), Isabella Amara (Franny jovem), Tina Parker (Franny adulta), Madison David (Iris jovem), Gretchen Koerner (Iris adulta), Matthew Rauch (Aaron), Jaqueline Fleming (Margie), Jodi Long (Rebecca), Scott Takeda (Mr. Watada), Chelsea Alden (Samantha), Noah Lomax (Lucas)
Roteiro Jennifer Fox
Música Ariel Marx
Fotografia Denis Lenoir e Ivan Strasburg
Montagem Anne Fabini, Alex Hall, Gary Levy
Casting Matthew Maisto
Produção Gamechanger Films, A Luminous Mind Production, Untitled Entertainment, Blackbird Films, ONE TWO Films,
Fork Films.
Cor, 114 min (1h54)
**1/2
Eu assisti o filme e concordo com você em muitos aspectos, mas o que me deixou mais curiosa é sobre o caso real. Porque será que não houve uma repercussão após o relato da autora?
Eu assisti o filme e me vi nele, comigo também houve o abuso, mas não o estupro pq eu consentì, o cara também era mais velho, tinha 29 e eu 13, fiquei fascinada com ele, coisa de adolescente, de descobertas, de perigos. Graças a Deus estou bem e confesso que não me arrependi em nada, foi uma experiência inesquecível e foi com um parente que gosto muito!
O termo correto é estupro, quando existe sexo consentido ou não com menor de 14 anos, havendo uma diferenca igual ou mais que 4 anos entre as parters se chama estupro de vulnerável,
Estupro não precisa ter coerção física ou ataque. No caso da personagem aie era uma criança, ela foi coagida através da sua pouca idade e fragilidade emocional. Seu estuprador foi agindo sutilmente e lentamente o que mostra um predador experiente. No mais legalmente tbm é estupro. E banalizar isso é horrível.
Como assim não é estupro??? Manipular uma criança pra ter relação sexual é a mais pura definição de estupro! E a forma como o autor do post tenta minimizar isso é simplesmente nojento!