Muito Amadas / Much Loved

3.0 out of 5.0 stars

Muito Amadas acompanha o dia-a-dia de três prostitutas, de forma frontal, direta, crua. Mostra, portanto, uma realidade dura, barra pesada, que inclui humilhação, violência, abuso, e também consumo de vários tipos de droga – álcool, cocaína, maconha, haxixe –, festas desregradas, bacanais, sacanagem, safadeza.

É muito duro, muito barra pesada. Apavorante, chocante mesmo – mas é também, ao mesmo tempo, usual, corriqueiro, comum. Se as três prostitutas de Muito Amadas vivessem em São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Madri, Moscou, Tóquio, Nova Délhi, Sydney, seria “apenas” duro, barra pesada, apavorante, chocante.

A questão que acaba ficando maior é que Noha, Randa e Soukaina são marroquinas, a ação se passa em Marrakesh, e o Reino do Marrocos, como se sabe, é um país de maioria árabe, muçulmana. Está perto demais da Europa (apenas 14,4 km o separam da Espanha), é banhado pelo Mediterrâneo em torno de que nasceu a cultura ocidental, foi colonizado pelos franceses da pátria do iluminismo, liberdade igualdade fraternidade, é visitado por milhões de turistas europeus – mas é um país de maioria árabe, muçulmana.

E então Muito Amadas – co-produção França-Marrocos de 2015, dirigida por Nabil Ayouch, francês radicado em Casablanca, com atrizes e atores marroquinos – virou, além de um bom filme, um documento importante. Um documento que comprova o óbvio: em países de maioria muçulmana também há – como em todos os países do Ocidente decadente, doente, satânico – prostituição, orgias, consumo de todo tipo de droga, sacanagem, safadeza.

O filme foi proibido no Marrocos por “sério desprezo pelos valores morais e pelas mulheres marroquinas” e por “flagrante violação da imagem do Reino”.

A atriz Loubna Abidar, que interpreta Noha, a protagonista da história, foi processada por profanação, ameaçada de morte no twitter. Chegou a ser atacada fisicamente à saída de um clube de Casablanca, a maior cidade do país.

O diretor não economiza em crueza. Os diálogos são fortes, pesados

O autor e diretor Nabil Ayouch – que entrevistou dezenas de prostitutas marroquinas para escrever o roteiro de Muito Amadas – não economiza em crueza nos diálogos. Mesmo antes de qualquer imagem, quando na tela ainda rolam os nomes das empresas produtoras, do diretor e dos produtores, em francês e em árabe, lado a lado, começamos a ouvir a conversa das três principais personagens da história.

– “Os homens são como os carros. Há os de luxo, os comuns e os porcaria. O que importa são os dólares. Grana, grana, entende?”

Quem fala isso é Noha (o papel da já citada Loubna Abidar), a mais velha das três – será dito mais tarde que ela está com 28 anos.

A mais nova delas, para quem Noha está contando histórias, vantagens, é Soukaina (Halima Karaouane).

A do meio, a única das três que usa cabelo mais curto, é Randa (Asmaa Lazrak), e é a primeira que vemos, levando algo ao nariz – a tomada é rápida, mas veremos ao longo do filme que Randa gosta de cocaína, enquanto Noha é mais chegada a álcool.

As três estão sentadas à mesa, dentro da casa em que moram, e estão sendo servidas de comida por um homem mais velho, Said (Abdellah Didane) – o que dá ao espectador um estranhamento, pois é algo oposto a tudo que a gente imagina sobre o universo dos árabes.

Noha conta de uma vez em que ela e Randa foram a uma festa de aniversário de um rapper americano. Comenta que o lugar tinha mais seguranças que a entrada do Paraíso, e todo mundo queria entrar. – “Eu vi uns americanos e me enfiei no meio deles, tipo ‘Hello? How are you?’ Eles não entenderam nada.”

E conta que Randa foi de minissaia, e perto da piscina levantou a saia e pronto, transou ali mesmo.

– “Olha quem está falando”, diz Randa. “Ela (apontando para Noha) trepou em todos os cantos. No banheiro, na cozinha. Ficou com a bunda colada no boxe. Ela pegou todos os caras. Mas o último negão detonou a xana dela. Até sangrou.”

A jovem Soukaina exclama, como para mostrar que sabe das coisas: – “Ficou arrombada!”

E Noha: – “Minha buceta quer que você se foda.”

Randa: – “A gente correu pro hospital.”

Noha: – “O pior é que fiquei seis meses fora de serviço.”

Se os diálogos são explícitos, a câmara, bem ao contrário, é cuidadosa

Depois desse diálogo, as três jovens mulheres se vestem em belas roupas de noite, e vão, no táxi dirigido por Said, até uma imensa mansão, já fora da cidade, em que se realiza uma festa de arromba, com bem mais de uma dúzia de prostitutas, para recepcionar um grupo de homens muito ricos da Arábia Saudita.

Bebe-se demais, na festa; há muita música. As mulheres dançam, exibem-se para os homens, fazem os movimentos mais sensuais que conseguem.

Pelo que o filme mostra, ali o costume é haver muita bebida, muita dança, muita exibição de sensualidade das mulheres antes de se partir para as vias de fato.

Nessa noite de orgia para recepcionar os sauditas, Randa arranja uma briga e acaba sendo expulsa da mansão e voltando para casa, levada por Said; Soukaina é escolhida por um dos sauditas cheio da grana, Ahmad (Danny Boushebel), que, no quarto, recita poemas para ela, reconhece que bebeu demais e dorme; já Noha é comida diversas vezes por outro dos sauditas.

É fascinante: se nos diálogos o diretor e o roteirista Nabil Ayouch é absolutamente cru, explícito, nas imagens ele é cuidadoso. A câmara dele e de sua diretora de fotografia Virginie Surdej evita explicitudes.

Não que a câmara procure ser propriamente pudica, envergonhada. Não é isso: a câmara evita explicitudes.

Há uma única sequência em que vemos uma mulher nua – e é uma sequência suave, elegante, em que Noha trepa com seu amante francês, um homem mais velho, casado, mas que parece adorar a moça (o papel de Carlo Brandt).

As quatro atrizes têm desempenho extraordinário. E foi o primeiro filme da protagonista

Ao longo de todo o filme, fala-se demais nos órgãos sexuais – mas a câmara não os mostra.

Haverá, já quando o filme se encaminha para o fim, uma sequência forte, violenta, em que um policial come Noha à força, brutalmente, dentro de uma delegacia. A câmara fica parada no rosto da atriz Loubna Abidar – o que amplifica o impacto, a força da cena, a brutalidade do ato. Mas não há explicitude, não se mostram, de forma alguma, os órgãos sexuais.

Nessa sequência impressionante, lancinante, Loubna Abidar (na foto abaixo) dá um show de interpretação. É muito difícil entender como essa jovem pode ter tamanho talento se esse foi seu filme de estréia.

Todos os atores estão muito bem. As atrizes Asmaa Lazrak e Halima Karaouane (na foto acima), que fazem Randa e Soukaina, também têm desempenho admirável, assim como Sara Elhamdi Elalaoui, que interpreta Hlima,

personagem que só aparece quando o filme já passou da metade – uma moça do interior, que ficou grávida e por isso teve que fugir da sua aldeia, foi parar em Marrakesh e lá passou a se prostituir.

É muito impressionante essa coisa do elenco. Como é possível que, em um país sem uma grande indústria cinematográfica, o diretor Nabil Ayouch tenha achado tanta gente talentosa?

As moças se esforçam para ir alegres para o trabalho – e voltam imersas na tristeza

Uma característica marcante do filme do filme é como oscila violentamente o humor das três protagonistas – principalmente o de Noha, que afinal é a principal personagem da história.

Noha, Randa e Soukaina estão sempre muito alegres antes de ir para uma festa, uma balada – antes do trabalho, em suma. Bebem, cheiram, e falam alto, contam histórias, riem.

Voltam para casa caladas, cansadas, exauridas.

É uma belíssima sacada essa do diretor e roteirista Nabil Ayouch. Sem falar uma palavra, só pelas imagens, pelo comportamento das personagens, ele mostra que aquelas jovens mulheres procuram de todas as maneiras se animar, para parecerem alegres para conquistar os fregueses. Trabalho feito, são tomadas por profunda tristeza.

Talentoso para montar sua história, para compor seus personagens, Nabil Ayouch mostra uma característica interessante neste Muito Amadas. Ele não se preocupa em explicar tudo para o espectador. Deixa muitas coisas absolutamente em aberto.

Por exemplo: ele não se preocupa em explicar como foi que Noha e Randa se conheceram, como foi que ficaram amigas, a ponto de dividir a casa. Já pelo diálogo inicial que transcrevi em parte – em que Noha conta para Soukaina fatos acontecidos com ela mesma e com Randa – percebe-se que a mais jovem das três veio depois, juntou-se às duas em época mais recente. Mas o roteiro não tem qualquer interesse em dizer como Soukaina apareceu na vida das outras duas.

Não há, também, nenhuma preocupação em tentar explicar por que motivos aquelas moças escolheram a prostituição.

Há várias pontas que ficam soltas. Não se explica qual é de Said, aquele senhor mais velho que trabalha com uma dedicação quase canina para as três mulheres – depois para as quatro, com o advento de Hlima.

Não se explica também qual é a relação entra Noha e aquele policial que a extorque e depois a violenta na delegacia e em seguida toma um café com ela numa mesa de bar da calçada. Fica óbvio que há todo um passado entre os dois, que se conhecem faz tempo, e o espectador pode perfeitamente inferir que ele toma dinheiro de Noha para dar algum tipo de proteção a ela – mas o filme não se preocupa em explicar, explicitar nada.

Essa coisa das pontas soltas não me pareceu uma falha do roteiro, de forma alguma. Parece que foi essa mesmo a intenção do diretor e roteirista – não ficar explicitando o que não precisa ser explicitado.

“Jamais voyeurista, nem hipócrita, nem obsceno, Nabil Ayouch respeita as mulheres”

Segundo o site AlloCiné, que tem tudo sobre o cinema francês, Nabil Ayouch conversou com mais de 200 prostitutas marroquinas antes de escrever o roteiro do filme. Em entrevistas, ele diz que a maioria das mulheres abriu o coração para ele: “Elas me contaram suas vidas, falaram de sua solidão, suas feridas, como elas chegaram onde estão. E também sobre a maneira com que elas se vêem, com evidentemente uma perda de amor próprio terrível… Essas mulheres são guerreiras, são as amazonas dos tempos modernos.”

Ayouch nasceu em Paris em 1969, filho de uma judia francesa de origem tunisiana e um marroquino rico, dono de uma empresa de comunicação do Marrocos. Estudou teatro e direção na França, mas radicou-se em Casablanca. Seu primeiro longa metragem, Mektoub (1997), foi recordista de bilheteria no Marrocos e foi o escolhido para participar da corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Muito Amadas é seu sexto longa metragem, e foi apresentado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Loubna Abidar obteve a indicação para o César de melhor atriz por seu fantástico desempenho como Noha.

Quando o filme foi lançado na França, em setembro de 2015, Le Nouvel Observateur escreveu uma bela apresentação do filme aos leitores, na seção “Os filmes a ver (ou não) esta semana”. Começa assim: “Não há nada chocante neste filme que choca tanto o país onde foi rodado. Nabil Ayouch não é Gaspar Noé. Aqui, nada de cena de sexo. Nada que possa enrubescer ou excitar os conservadores, a não ser alguns diálogos.”

(Gaspar Noé, nascido em Buenos Aires em 1963 e radicado na França, é o diretor de Irreversível, 2002, Viagem Alucinante, 2009, e Sozinho Contra Todos, 1998).

E o texto do Nouvel OPbservateur termina com brilho: “Este filme não é ‘um atentado flagrante à imagem do reino’, como pretendem as autoridades marroquinas. É uma defesa das mulheres e de sua dignidade. Jamais voyeurista, nem hipócrita, nem obsceno, Nabil Ayouch as respeita. Sua câmara demonstra compaixão e seu filme é sensível. Quanto às atrizes, não têm apenas talento, elas têm também coragem.”

Perfeito. É exatamente isso.

Anotação em setembro de 2017

Muito Amadas/Much Loved

De Nabil Ayouch, França-Marrocos, 2015

Com Loubna Abidar (Noha), Asmaa Lazrak (Randa), Halima Karaouane (Soukaina), Sara Elhamdi Elalaoui (Hlima)

e Abdellah Didane (Said), Danny Boushebel (Ahmad), Carlo Brandt (o amante francês de Noha), Camélia Montassere (a cliente de Randa)

Argumento e roteiro Nabil Ayouch

Fotografia Virginie Surdej

Música Mike Kourtzer

Montagem Damien Keyeux

Produção Les Films du Nouveau Monde, New District, Barney Production, Ali n’ Productions.

Cor, 104 min (1h44)

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