Estreou bem, muito bem, na direção de longa de ficção o diretor de fotografia e documentarista Joshua Z Weinstein. Menashe é um ótimo filme, um drama familiar feito com extrema sensibilidade e muita competência em todos os aspectos formais.
É ainda um filme um tanto corajoso, ousado – e também fascinante, raro, revelador. Corajoso, ousado porque tem pouquíssimos diálogos em inglês – é quase inteiramente falado em iídiche, e sabe-se que o público americano não é chegado a ver filmes com legendas. Fascinante, raro, revelador porque se passa na comunidade de judeus ultra-ortodoxos de Nova York, os hassídicos, um ambiente em geral fechado ao mundo exterior, que se revela muito pouco a quem é de fora.
E ainda mais corajoso, ousado, porque questiona, de forma firme, forte, vários dogmas daquela comunidade.
Um caso raro de filme americano não falado em inglês
Joshua Z Weinstein (é assim que ele gosta de assinar, sem ponto final após o Z) tinha mais de 20 títulos em sua filmografia como operador de câmara e diretor de fotografia quando lançou este Menashe, em 2017.Tinha também sete títulos como diretor – todos documentários, dos quais quatro são curtas e três longas.
Dedicou-se durante dois anos às filmagens desta sua estréia na ficção. Foi o diretor, um dos produtores, um dos três autores da história e do roteiro (juntamente com Alex Lipschultz e Musa Syeedm), um dos diretores de fotografia (ao lado de Yoni Brook) e um dos operadores de câmara.
Vários dos atores do filme jamais haviam atuado antes – não são atores profissionais. Isso é algo raro em todo o mundo; foi utilizado por diretores do neo-realismo italiano, por alguns realizadores franceses – Jean Renoir, François Truffaut em Na Idade da Inocência/L’Argent de Poche (1976), por Luís Buñuel em alguns de seus filmes. Nos Estados Unidos, então, isso é raríssimo.
E Weinstein, judeu, claro, como o nome indica, não é da comunidade hassídica, e sequer fala iídiche: teve que usar intérprete para dirigir o filme.
Algo que só tem paralelo nas últimas décadas, creio (mas posso, claro, estar esquecendo de algum outro filme), com Kevin Costner em Dança com Lobos, um filme americano não falado em inglês, e sim em língua indígena, perdão, nativa-americana, e exibido com legendas, subtitles, essa coisa que as platéias de lá costumam detestar.
Pela guarda do filho, o pai luta contra mais de 6 mil anos de tradição
Menashe é um filme sobre a guarda de filho, sobre quem tem o direito de ter a guarda de uma criança.
Lá pela metade dos curtos 82 minutos de duração do filme, me peguei pensando em Kramer vs. Kramer (1979), passado na mesma metrópole em que vivem o Menashe do título e seu filho Rieven – embora aparentemente seja em outro continente, em outra civilização, em outro planeta.
Mas a rigor o filme não tem nada a ver com Kramer vs. Kramer – um drama familiar em que pai e mãe disputam a guarda do garoto na Justiça porque se separaram e não se entendem mais, em absolutamente nada. Nem com Preto e Branco/Black or White (2014) ou O Destino de uma Vida/Losing Isaiah (1995) – dramas familiares em que pessoas disputam a guarda de filhos ou netos na Justiça porque além de tudo ainda há questões de cor de pele envolvidas.
Não se trata, aqui, de disputa na Justiça pela guarda de filho – dessa coisa maluca que é parentes da criança não conseguirem resolver as coisas entre eles mesmo e entregarem a questão nas mãos do Estado, de juízes, de advogados.
Não. Aqui se trata de algo ainda pior que brigar na Justiça. Aqui se trata de brigar contra a tradição. Contra o que mandam o histórico de uma organização social, a tradição daquele grupo, a religião, a decisão do líder religioso – no caso, o rabino.
Brigar contra mais de 6 mil anos de História, de costumes.
Nesse sentido, este filme americano, todinho passado num pedaço do Brooklyn, na cidade que é o umbigo, a capital do mundo ocidental, nos remete ao absurdo que é a história de uma judia que quer se separar do marido, mas não consegue, contada com brilho na obra-prima O Julgamento de Viviane Amsalem /Gett /Le Procès de Viviane Amsalem (2014), um filme que demonstra, muitíssimo bem demonstrado, que, quando se trata de casamento, Israel é uma sociedade teocrática. Exatamente como um de seus maiores inimigos, o Irã do intolerável regime dos aitolás.
Para ter a guarda do filho, pai viúvo tem que se casar de novo
O filme começa com uma sequência impressionante, fascinante, bela. Plano de conjunto de uma rua do Brooklyn apinhada de gente – a imensa maioria judeus ultraortodoxos, com as tradicionais vestimentas, paletó e calça pretas, o tradicional solidéu, o tradicional cabelo longo, com aquelas tradicionais mechas entre cada ouvido e uma das faces.
São muitos, muitos, muitos judeus ultraortodoxos. É uma concentração imensa delas – talvez seja a maior do mundo, maior até mesmo que em Tel Aviv, em Jerusalém.
No meio daquela multidão está Menashe, o protagonista da história – interpretado por Menashe Lustig, um fervoroso discípulo do Rabino Twersky, o rabino chefe do movimento hassídico de Nova York, segundo informa o IMDb .
Um ano antes da época em que se passa a ação, Menashe havia perdido a mulher. Ele – o filme vai nos mostrar com extremos talento e competência – é um bom homem, uma boa pessoa, um bom caráter, um bom coração. No entanto, não é uma pessoa bem sucedida, bem resolvida, tranquila. Bem ao contrário. A vida de Menashe é uma grande bagunça. Ele trabalha em um supermercado do bairro dos hassídicos no Brooklyn, e não se dá bem com o gerente. Não tem um bom salário, não tem uma vida organizada. Ao contrário, tem algumas dívidas.
Como ficou viúvo, está sozinho, não tem uma mulher em casa, perdeu o direito de ficar com o filho que está aí com uns 8, talvez 10 anos, Rieven (Ruben Niborski, uma gracinha de criança). Rieven vive com o irmão da mãe, seu tio Eizik (Yoel Weisshaus), um sujeito bem sucedido em termos materiais, mas um chato de galocha, um tipo profundamente antipático, desagradável, emproado, conservador até os ossos, que fala mal do próprio pai para o garoto.
Menashe gosta demais do filho, e é um pai excelente, atento, prestativo, amante. O garoto gosta do pai, se dá muito bem com ele – mas o rabino da comunidade (Meyer Schwartz) rebate os insistentes pedidos de Menashe de poder ficar com a criança. É o que manda a tradição, diz ele. É que diz o Talmud. Para criar os filhos, o homem deve ter em casa uma mulher, que limpe tudo, que cozinhe, que cuide da casa.
O machismo daquela comunidade é algo de deixar gente como Lindomar Gatilho, perdão, Castilho, Doca Street, Pimenta Neves et caterva parecendo feministas de primeira hora.
O pobre Menashe é muito melhor que a sociedade opressora a que pertence
Fiquei impressionado com a forma com que Menashe me envolveu emocionalmente.
Tenho isso, sofro disso: quando o filme é bom, quando os personagens são simpáticos, agradáveis, me envolvo na trama. Passo a sofrer com os sofrimentos dos personagens. Sou, definitivamente, pré-brechtiano – mas, apesar de saber disso faz tempo, me impressionei com a intensidade com que fui sofrendo com Menashe diante de seus reveses. Pior ainda: como fui sofrendo por antecedência, já imaginando o pior que poderia vir – e o pior que a gente imagina parece sempre vir. No caso desse pobre pai que tem imensa dificuldade para ter junto de si o filho, parece que o pior imaginável sempre vem.
Tipo Lei de Murphy: podendo acontecer o pior, acontece mesmo.
Há muita gente que recusa religião de todas as formas – e chega mesmo a culpar religião por muito do que de pior é capaz a humanidade.
Não sou desse tipo – muitíssimo ao contrário.
Acho que a religião pode muito bem, pode perfeitamente ajudar as pessoas. Pode levar as pessoas a investirem no melhor que elas têm, a deixarem de lado o pior que existe nelas.
O ruim jamais é a religião, a fé, a crença. O ruim é o fanatismo, o fundamentalismo. A crença cega, irracional, em algo – seja um time de futebol, uma ideologia, um partido político, uma seita, uma religião.
Não conheço nada, ou quase absolutamente nada, do que são as crenças dos judeus ultraortodoxos – mas se são machistas ao extremo, se são trogloditas como este belo filme mostra, então não gosto delas.
Na verdade, me desagrada cada vez mais tudo o que é ultra, tudo o que excede, tudo o que é radical, fanático, fundamentalista.
Aquele pobre Menashe, tão enrolado, tão sempre confuso, nunca fazendo direito o que deveria fazer, é muito, muito, muito melhor que a sociedade rígida, rigorosa, opressora, a que pertence.
Anotação em janeiro de 2018
Menashe
De Joshua Z Weinstein, EUA, 2017
Com Menashe Lustig (Menashe)
e Ruben Niborski (Rieven, o filho de Menashe), Yoel Weisshaus (Eizik, o tio de Rieven), Meyer Schwartz (o rabino), Yoel Falkowitz (Fischel), Ariel Vaysman (Levi)
Argumento e roteiro Alex Lipschultz, Musa Syeedm, Joshua Z Weinstein
Fotografia Yoni Brook e Joshua Z Weinstein
Música Aaron Martin e Dag Rosenqvist
Montagem Scott Cummings
Produção Autumn Productions, Maiden Voyage Pictures, Shtick Film, Sparks Productions.
Cor, 82 min (1h22)
***1/2
Gostei também. Parece estar havendo um certo interesse pela vida das comunidades judias ortodoxas. A série “Shtisel” obteve boa repercussão e agora a “Nada Ortodoxa” também tem marcado pontos. Achei “Shtisel” muito boa nas duas temporadas que vi na Netflix, em parte porque gosto muito de Ayelet Zurer, mas não só por isso. Uma boa temática. Que não se vulgarize e se acrescente perseguições automobilísticas, tiroteios, combates em que os que querem salvar a cidade acabam por destruí-la e outras blockbustericices.