A vida de Desmond Doss é uma história riquíssima, fascinante, fantástica. Era sem dúvida preciso contá-la no cinema, para que milhões e milhões de pessoas a ficassem conhecendo. Mel Gibson, essa figura que se tornou tão polêmica, fez um filme à altura da vida do homem. Uma vida espetacular, um filme espetacular.
Como resumem letreiros ao final do filme, antes dos créditos finais – em que o próprio Desmond Doss aparece, dando pequenos depoimentos –, ele foi “o primeiro objetor de consciência a receber a Medalha de Honra, a maior condecoração americana por coragem sob fogo”.
Um grande, um fantástico herói: durante uma das mais ferozes batalhas da Segunda Guerra Mundial, em Okinawa, no Japão, em maio de 1945, poucas semanas antes do final do conflito com a rendição japonesa, Desmond Doss salvou a vida de 75 homens.
Para contar a história da vida desse herói, e reconstituir, em sequências absolutamente deslumbrantes, incrivelmente bem realizadas – e de uma violência pavorosa, aterradora –, Mel Gibson contou com recursos nem tão fartos assim: o orçamento de Até o Último Homem, no original Hacksaw Ridge, foi de US$ 40 milhões. Pouco, comparado aos US$ 265 milhões de Avengers: Age of Ultron (2015), ou aos US$ 300 milhões de Liga da Justiça (2017).
Mas fez quase todo o filme na sua Austrália natal, onde os custos são menores. E o empreendimento foi tão complexo que foram necessários 35 executivos – entre produtores, produtores executivos e co-produtores.
Valeu a pena: o esforço resultou num filme tão de fato espetacular quanto o heroísmo desse Desmond Doss.
O filme dedica poucos minutos à infância do herói
Os roteiristas – Robert Schenkkan e Andrew Knight, creditados de forma a indicar que o segundo deu a forma final no trabalho iniciado pelo primeiro – usaram aquele velho e bom esquema de começar num momento chave da história, um momento de clímax. Para depois voltar atrás no tempo, e vir contando os eventos em ordem cronológica, até chegar de volta ao ponto inicial e aí seguir adiante.
Como se fosse um jogo de futebol mostrado a partir de um lance importantíssimo aos, digamos, 35 minutos do segundo tempo, e em seguida visto desde o início. O que eu chamo de narrativa-laço.
Até o Último Homem laceia o espectador mostrando, de cara, cenas impressionantes, fantásticas, pavorosas da batalha de Okinawa.
Um ferido é socorrido, e o companheiro que o carrega grita para ele: – “Fique comigo, Desmond!”
Corta, vemos uma paisagem linda, uma região montanhosa de matas de verde maravilhoso. Um letreiro informa: “Blue Ridge Mountains, Virginia. 16 anos antes”. Dois garotos andam por ali. Para que não sobre dúvida alguma para o espectador mais distraído, um deles chama o outro pelo nome: “Desmond!”
O garoto Desmond tinha a sorte de passar a infância num ambiente rural, em lugar especialmente belo – e aproveitava bem a infância com a liberdade de correr e brincar no meio do mato. Mas tinha, por outro lado, o azar de viver numa casa em que o pai, violento, agressivo, sempre triste, amargurado, batia nos dois filhos e também na mulher.
O Desmond garoto é interpretado por Darcy Bryce e jovem adulto por Andrew Garfield. Seu irmão Harold é vivido Roman Guerriero quando garoto e Nathaniel Buzolic quando adulto.
Tom, o pai, é o papel de Hugo Weaving, e Rachel Griffiths faz Bertha Doss, a mãe. Weaving e Rachel Griffiths têm, os dois, belos desempenhos. O detalhe interessante é que são ambos australianos, assim como o diretor Mel Gibson.
A primeira vez que o espectador vê Tom Doss ele está bebendo um destilado num cemitério, conversando com alguns dos mortos. Só bem mais tarde ficaremos sabendo que os mortos que ele visita no cemitério de sua cidadezinha na Virginia são amigos de infância, que se alistaram com ele para lutar na Primeira Guerra Mundial; dos quatro grandes amigos, só o próprio Tom voltou com vida.
Aquilo tudo, a experiência traumática toda, o deixou amargurado, duro, violento – e um virulento opositor do alistamento militar dos jovens.
O filme deixa isso bem claro nos poucos minutos que dedica à infância de Desmond. Quando estamos com apenas 10 minutos dos 139 que dura o filme, há um salto no tempo, e Desmond e seu irmão Hal já passaram dos 18 anos, os japoneses já mataram centenas de milhares de americanos em Pearl Harbor em dezembro de 1941 e o país, finalmente, já havia entrado na guerra iniciada em setembro de 1939.
Metade do filme se passa no campo de batalha
Para desespero do pai, primeiro Hal se alista. E, logo em seguida, Desmond faz o mesmo.
O rapaz havia jurado para si mesmo, e para Deus (era profundamente religioso), que jamais voltaria a encostar a mão em uma arma sequer. Mas quer servir a seu país em guerra como paramédico.
Não quer matar – quer salvar vidas.
O filme leva uns bons 50 minutos mostrando a duríssima luta de Desmond para ser aceito pelo exército americano. Terá que enfrentar os demais companheiros recém-alistados, o cabo, o sargento, o capitão, o coonel do regimento, na tentativa de convencê-los de que pode ser um bom soldado mesmo sem tocar num rifle.
É uma luta árdua, dificílima, dolorosíssima.
Mas o pior ainda está por vir – o campo de batalha na ilha de Okinawa.
A narrativa chega a Okinawa, onde o exército americano tenta tomar dos japoneses a Hacksaw Ridge do título original – um planalto sobre um grande penhasco – quando o filme está com 70 minutos. Bem no meio dos 139 minutos, 2 horas e 19, de duração.
Metade do filme, portanto, mostrará o campo de batalha.
Sequências antológicas, belíssimas, de batalhas
“A força da grana que ergue e destrói coisas belas.”
O verso genial de Caetano Veloso vem sempre à mente – e, no caso deste filme, não tem como a gente não se lembrar dele.
A capacidade que o bicho homem tem que erguer e destruir coisas belas.
A guerra é seguramente uma das piores invenções de que a humanidade foi capaz – talvez só comparável aos crimes de racismo e tortura.
E quantos belos filmes foram feitos mostrando os horrores da guerra (como também do racismo, aliás).
Umas poucas semanas antes de vermos este Até o Último Homem, tínhamos revisto Glória Feita de Sangue/Paths of Glory (1957), a primeira obra-prima de Stanley Kubrick. As sequências de batalha de Paths of Glory – os soldados franceses tentando avançar pela terra-de-ninguém entre as trincheiras inimigas durante a Primeira Guerra Mundial – são absolutamente belas, tão belas quanto apavorantes, horrorosas. São das mais antológicas sequências de guerra que o cinema já fez – e o cinema já fez muitas, muitas sequências de guerra.
Entre Paths of Glory e este Hacksaw Ridge, vimos Dunkirk (2017), de Christopher Nolan, sobre a retirada dos soldados britânicos de Dunquerque, em maio de 1940 – e há ali também sequências absolutamente antológicas, deslumbrantes, belíssimas, horrorosas.
Há a extraordinária abertura de O Resgate do Soldado Ryan (1998), de Steven Spielberg, mostrando o desembarque dos aliados na Normandia em 6 de junho de 1944. Há as sequências dos helicópteros no Vietnã, ao som da Cavalgada das Walkírias de Richard Wagner em Apocalypse Now (1979). Há o plano-sequência também de Dunquerque em 1940 em Desejo e Reparação/Atonement (2007), de Joe Wright.
Mel Gibson fez outras das sequências de campos de batalha mais antológicas de todos os tempos neste seu filme aqui.
O filme ganhou 49 prêmios e obteve outras 111 indicações.
Foram 6 indicações ao Oscar, incluindo as duas categorias principais, melhor filme e melhor direção, e ainda melhor ator para Andrew Garfield. Levou as estatuetas de melhor montagem e melhor mixagem de som.
Teve boa receptividade do público: só no mercado americano, faturou US$ 67 milhões; no total, o filme rendeu US$ 175 milhões, mais que quatro vezes o que custou.
Entre os milhares e milhares de leitores do IMDb, o mais completo, mais enciclopédico site de filmes, ficou em 175º lugar entre todos os filmes já realizados no mundo.
Desmond Doss foi contra um filme sobre sua vida
É forçoso lembrar que Mel Gibson e Desmond Doss, o realizador e o personagem mostrado no filme, têm uma forte, importante característica em comum: a extrema religiosidade.
Doss foi criado pela mãe dentro dos rigores dos adventistas do Sétimo Dias – e manteve-se firmemente ligado à religião, como bem mostram diversas passagens do filme. E Mel Gibson tem se identificado cada vez mais com um um apego quase fundamentalista ao cristianismo.
Em entrevistas, Mel Gibson disse que, ao encenar a batalha, no filme, ele foi influenciado por sonhos que teve na infância. Seu pai, Hutton Gibson, era um veterano da Segunda Guerra, que lutou em Guadacanal, e costumava contar para ele histórias das batalhas.
Desmond Doss morreu em 2006, aos 87 anos. Estava ainda vivo, portanto, quando, em 2004, foi lançado um documentário sobre sua vida, The Conscientious Objector, dirigido por Terry Benedict.
Muito antes, meio século antes, Hollywood já havia planejado fazer um filme sobre ele. Nos anos 50, o produtor Hal B. Wallis tentou comprar os direitos de filmar a história de Doss para um filme a ser estrelado por Audie Murphy, que fez vários filmes de guerra bem sucedidos nas bilheterias – mas o projeto não foi para a frente. Consta que Doss dizia que não queria ver sua história de vida transformada num típico filme de Hollywood.
Bem. Apesar de ser uma co-produção Autrália-EUA, Até o Último Homem é, sim, um típico filme de Hollywood. Até mesmo ao tomar algumas liberdades com relação aos fatos reais da vida de Desmond Doss. Por exemplo, sobre a forma com que ele conheceu a moça que viria a ser sua mulher para toda a vida, Dorothy Schutte.
No filme, ele conhece Dorothy (interpretada pela linda Teresa Palmer, mais uma australiana do elenco) quando vai ao hospital de Lynchburgh levar um rapaz que havia sido ferido num acidente de trânsito. Repara naquela enfermeira linda que está recolhendo sangue de doadores, vai até lá, se oferece para doar sangue – e se apaixona perdidamente por ela. Na vida real, Dorothy ainda não era enfermeira quando os dois se conheceram – ela foi à igreja que ele frequentava, para vender livros adventistas.
Apesar de liberdades como essa, a obra retrata muito bem a personalidade de Desmond. Foi o que disse o filho, Desmond, Jr., depois de assistir a uma projeção do filme, segundo Mel Gibson fez questão de contar na época do lançamento de Hacksaw Ridge.
Anotação em agosto de 2018
Até o Último Homem/Hacksaw Ridge
De Mel Gibson, Austrália-EUA, 2016
Com Andrew Garfield (Desmond T. Doss)
e Sam Worthington (capitão Glover), Luke Bracey (Smitty), Teresa Palmer (Dorothy Schutte), Hugo Weaving (Tom Doss, o pai), Rachel Griffiths (Bertha Doss, a mãe), Nathaniel Buzolic (Harold Doss, o irmão), Darcy Bryce (Desmond garoto), Roman Guerriero (Harold garoto), Vince Vaughn (sargento Howell), Matt Nable (tenente Cooney), Richard Roxburgh (coronel Stelzer), Tyler Coppin (médico em Lynchburg), Firass Dirani (Vito Rinnelli), Luke Pegler (Hollywood Zane), Goran Kleut (Ghoul, Assombração), Ben O’Toole (cabo Jessop), Sam Wright (soldado Dixon)
Roteiro Robert Schenkkan e Andrew Knight
Fotografia Simon Duggan
Música Rupert Gregson-Williams
Montagem John Gilbert
Casting Nikki Barrett
Produção Cross Creek Pictures, Demarest Films, Pandemonium Films, Permut Presentations, Vendian Entertainment.
Cor, 139 min (2h19)
***1/2
Que filme, espetacular, emocionante, que caráter e determinação de Desmond!!! Que interpretação do ator Andrew Garfield….admirável! Outro filme espetacular com esse grande ator foi SILÊNCIO, de Martin Scorsese! Imperdível!
Abracos
Que filme, espetacular, emocionante, que caráter e determinação de Desmond!!! Que interpretação do ator Andrew Garfield….admirável! Outro filme espetacular com esse grande ator foi SILÊNCIO, de Martin Scorsese! Imperdível!
Abraços