Em 1951, o mesmo ano do excelente, maravilhoso Uma Aventura na África/The African Queen, Humphrey Bogart interpretou um tipo raro em sua carreira cheia de papéis de vilão, bandido, aventureiro, solitário: em The Enforcer, no Brasil Um Preço para Cada Crime, ele faz um dedicado homem da lei, o enforcer do título original, um promotor público.
Martin Ferguson, o protagonista da história, passou anos atrás de provas ou testemunhos que pudessem garantir a condenação de Albert Mendoza (Everett Sloane), o chefão de um esquema de assassinatos de aluguel responsável por diversas mortes na cidade e na região. O filme não dá o nome da cidade – a melhor maneira de dizer que poderia ser qualquer cidade grande daquele país continental.
Bandido inteligente, esperto, experiente, Mendoza jamais deixava rastros, evidências.
Finalmente, Ferguson e seu amigo e companheiro Frank Nelson (Roy Roberts), o chefe da polícia, tinham conseguido o que queriam: um capanga de Mendoza, um dos principais homens da organização criminosa, Joseph Rico (Ted de Corsia), havia se entregado às autoridades e aceitado testemunhar contra o facínora.
A ação começa na noite anterior ao dia do julgamento de Mendoza. Uma grande operação policial é organizada para levar Rico até o prédio da promotoria. Dezenas de policiais armados vigiam a chegada do carro blindado que leva a testemunha-chave até o lugar.
Ao se encontrar com o promotor Ferguson e o capitão de polícia Nelson, no entanto, Joseph Rico demonstra que está arrependido por ter prometido testemunhar contra o ex-chefe. Está apavorado: tem certeza de que Mendoza mandará executá-lo, caso ele de fato compareça ao tribunal e preste testemunho.
O pavor de Joseph Rico não é infundado. De um quarto no hotel diante do próprio prédio da promotoria de Justiça, dois homens atiram na sala em que Rico está, teoricamente muito bem protegido por diversos policiais. Os tiros não acertam o bandido, mas deixam ferido um dos policiais.
“Não basta sabermos que um homem é culpado – nós temos que provar.”
O filme não chegou ainda a 15 minutos quando acontece um fato absolutamente inesperado. Embora se passe tão no começo da narrativa, acho que seria um grande spoiler descrever o fato, que é mesmo bastante surpreendente.
O que é necessário dizer é que Joseph Rico não mais vai testemunhar. E o testemunho dele era a peça chave do promotor Ferguson. Sem ele, seguramente o bandido Albert Mendoza não será condenado, sairá livre.
Há, então, uma frase fascinante dita pelo chefe de polícia Frank Nelson para o promotor Ferguson. É a síntese de uma discussão sem fim, o tema polêmico que divide as sociedades ao meio – os que defendem a lei, a civilização, e os que defendem que bandido bom é bandido morto.
– “O que há de errado com a lei que nos impede de condená-lo?”
E ele mesmo, depois de algum tempo, responde: – “Sim, eu sei, nosso tipo de leis é feito para proteger os inocentes. Não basta sabermos que um homem é culpado – nós temos que provar.”
O promotor então diz que deve ter alguma coisa, nos interrogatórios todos que fizeram a respeito dos crimes cometidos por Mendoza e sua quadrilha, que possa afinal servir como prova cabal no julgamento marcado para daí a poucas horas. E vão, os dois, para o arquivo onde está a papelada referente a Mendoza, para examinar mais uma vez os testemunhos, as narrativas das pessoas interrogadas.
Todo o resto do filme será a busca desesperada dos dois homens da lei por alguma prova que seja suficiente para convencer o júri da culpa do bandido.
Boa parte do filme foi feita por Raoul Walsh, mas seu nome não aparece
Na minha opinião, esse The Enforcer começa muito bem – mas vai perdendo a força, em especial do meio para o fim. Quando se revela para o espectador como funciona a máquina de matar pessoas do bandido Mendoza, a sensação que se tem é de que a organização é muito menor, muito menos poderosa, muito menos estruturada do que no início parecia. No princípio da narrativa, Mendoza parece ser um poderoso chefão, um Vito Corleone – para, no fim, parecer um bandido de um grupelho quase pé de chinelo.
Ao menos isto foi o que senti.
Boa parte de The Enforcer foi dirigida pelo grande Raoul Walsh – mas o nome do diretor não aparece nos créditos.
O que aconteceu foi que, depois de vários dias de filmagem, o diretor Bretaigne Windust ficou doente e teve que ser hospitalizado. Humphrey Bogart pediu então ao velho amigo Raoul Walsh que fosse tocando o filme, até que Windust se recuperasse. A recuperação durou meses, e foi Walsh que terminou as filmagens. Mas ele se recusou a ter seu nome dos créditos, dizendo que o filme a rigor era obra do colega.
Bretaigne Windust nasceu em Paris, em 1906, e radicou-se ainda jovem nos Estados Unidos. Foi um respeitado diretor de teatro na Broadway antes de ir para Hollywood, onde dirigiu filmes e também séries de TV. Sua filmografia é curta, de apenas 16 títulos, assim como sua vida – morreu com apenas 54 anos.
Uma belíssima atuação de Zero Mostel como um bandido medroso
Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4 para o filme, informa que a história foi inspirada por fatos reais, diz que é um thriller cheio de clima e que funciona, e acrescenta que Zero Mostel está particularmente bem como um criminoso amedrontado.
Ele tem toda razão: a atuação de Zero Mostel como Big Babe Lazick é uma das melhores coisas do filme. Como seu apelido indica, Big Babe é um sujeito grandão; ele se oferece para trabalhar na organização criminosa, mas não se dá bem. É um sujeito nervoso, tenso, e morre de medo até da própria sombra. É, de fato, uma bela atuação a desse grande ator que entraria logo depois deste filme na lista negra do macarthismo, acusado de ligações com o Partido Comunista.
Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, fez um comentário mais longo que o normal dela sobre o filme. O texto dela começa assim:
“Este melodrama de crime, inspirado por matérias de jornal sobre a organização de assassinos de aluguel conhecida como Murder, Inc, tem uma boa e tensa sequência de abertura, à noite, com Humphrey Bogart como um promotor distrital tentando proteger um gângster (Ted de Corsia), que vai ser sua testemunha pela manhã. Mas, enquanto o promotor revisa o caso, em flashback, o suspense vai se esvaindo. A narrativa segue em frente, mas não cresce, e os flashbacks são reunidos com muita engenhosidade – não tem graça. Bogart, que parece um investigador de polícia além de promotor, passeia por seu papel incolor; está muito menos interessante que os bandidos – uma coleção de desajustados abrutalhados que atafam uns aos outros. De Corsia, com seu sotaque sinistro e sua raiva impessoal e desprovida de humor, assume como astro.”
Anotação em dezembro de 2016
Um Preço para Cada Crime/The Enforcer
De Bretaigne Windust e Raoul Walsh, EUA, 1951
Com Humphrey Bogart (Martin Ferguson)
e Roy Roberts (Capitão Frank Nelson), Ted de Corsia (Joseph Rico), Zero Mostel (Big Babe Lazick), Everett Sloane (Albert Mendoza), Michael Tolan (Duke Malloy), King Donovan (sargento Whitlow), Susan Cabot (Nina Lombardo), Patricia Joiner (Teresa Davis / Angela Vetto), Bob Steele (Herman), Adelaide Klein (Olga Kirshen), Don Beddoe (Thomas O’Hara), Tito Vuolo (Tony Vetto), John Kellogg (Vince), Jack Lambert (Philadelphia Tom Zaca)
Argumento e roteiro Martin Rackin
Fotografia Robert Burks
Música David Buttolph
Montagem Fred Allen
Produção Milton Sperling, Warner Bros.
P&B, 87 min
**1/2
“Bretaigne Windust”, que nome onírico.
Há outro filme baseado na história real (e, dizem, mais conectado com os fatos reais). É “Murder Inc.”, com o Peter Falk.
Eu só passei aqui pra escrever “Peter Falk” 🙂
único blog que achei onde fala-se sobre esse filme noir, que hoje revi, depois de 15 anos, e continuo achando excelente, tanto que está no meu top 15 noir!
Bogart, perfeito, e um excelente elenco, numa história muito boa, com aula de direção, boa trilha, locações muito boas, iluminação mais do que adequada, e um roteiro super esperto! Está no meu top 10 Bogart!